quinta-feira, 2 de setembro de 2021

— Cristo nasceu!

Havíamos tomado o caminho que levava a Madame Hortência e esticávamos o passo como cavalos famintos que cheiravam a estrebaria.
São muito malandros, os padres da igreja! — disse Zorba. — eles pegam você pelo estomago; então, como escapar? Durante quarenta dias, eles dizem: você não comerá carne, não beberá vinho.
Ah! Que espertalhões, eles conhecem todos os truques.
Apertou ainda mais o passo.
Depressa, patrão! — disse ele. — a perua deve estar no ponto!
Quando entramos no quarto pequeno de nossa boa senhora, com o grande leito tentador, a mesa estava coberta por uma toalha branca, o peru fumegava, de patas para o ar e abertas; do braseiro aceso subia um calor muito doce.
Madame Hortência havia feito cachinhos em seu cabelo, e vestia um robe de chambre cor-de-rosa, desbotado, com largas mangas e rendas desfiadas. Uma fita de dois dedos de largura, amarelo vivo essa noite, apertava seu pescoço enrugado. Ela havia perfumado as axilas com água de flor de laranjeira.
Como tudo é bem distribuído na terra! Pensei. Como a terra é bem distribuída no coração do homem! Aí está esta velha cantora que levou uma vida de pau-para-toda-obra; agora, encalhada nesta costa solitária, ela concentra nesse quarto miserável toda a solicitude santa e o calor da mulher.”
A ceia, abundante e cuidada, o braseiro aceso, o corpo paramentado, adornado, o perfume de flores de laranjeira, todas essas pequenas alegrias corporais tão humanas, com que rapidez e simplicidade elas se transformam em uma grande alegria para a alma!
Subitamente, meus olhos se encheram de lágrimas. Senti que não estava, nessa noite solene, completamente só, aqui na beira do mar deserto. Uma criatura feminina vinha a meu encontro, cheia de devotamento, de ternura e paciência: era a mãe, a irmã, a mulher. E eu, que acreditava não precisar de nada, vi subitamente que precisava de tudo.
Zorba devia, ele também, sentir essa doce emoção, pois apenas entramos, adiantou-se e apertou em seus braços a cantora arrebica.
Cristo nasceu! — disse ele. — saúde a você, mulher!
Virou-se para mim rindo:
Repare que criatura cheia de artimanhas é a mulher! Conseguiu enrolar até o dom de Deus!
Fomos para a mesa, jogamo-nos sobre a comida, bebemos vinho; nosso corpo se sentiu satisfeito, e nossa alma estremeceu de bem-estar. De novo Zorba se inflamou:
Coma e beba — me dizia ele a cada instante. — coma e beba, patrão, farte-se. Cante você também, amigo, cante como os pastores: “glória a Deus Altíssimo!...” Cristo nasceu, e isso não é pouca coisa. Solta a sua canção, que o bom Deus a ouça e se alegre!
Ele havia tomado embalagem, e estava solto.
Cristo nasceu, meu arranhador de papel, meu grande sábio. Não se meta a fazer perguntas nem a pesquisar muito: ele nasceu ou não nasceu? Meu velho, ele nasceu, não seja tolo! Se você pega uma lente para olhar a água que bebemos — foi um engenheiro que me disse isso — você verá que a água é cheia de vermes, pequenininhos, que você não consegue ver a olho nu. E ao vê-los você não beberá mais a água. Não beberá e vai morrer de sede. Quebre a lente, patrão, quebre-a, e os pequenos vermes desaparecerão e você poderá voltar a beber e a se refrescar!
Ele se virou para a nossa companheira toda enfeitada, e levando seu copo cheio:
Eu — disse ele, — minha querida Bubulina, velha companheira de lutas, vou beber esse copo à sua saúde! Em minha vida vi muitas figuras de proa: elas estão pregadas nas proas dos barcos, com os seios altos e tem as faces e os lábios pintados em vermelho fogo. Percorrem todos os mares, entram em todos os portos, e quando o barco está podre, elas desembarcam em terra firme e ficam até o fim de seus dias apoiadas na parede de um bar de pescadores onde os capitães vão beber. Minha Bubulina, essa noite em que a vejo sobre essas praias, agora que comi e bebi bem, que meus olhos estão abertos, você surge como a figura de proa de um grande navio. E eu sou o seu último porto, minha franguinha, eu sou o bar onde os capitães vem beber. Venha, apoie-se em mim, traga as velas! Eu bebo esse copo de vinho, minha sereia, à sua saúde!
Madame Hortência, emocionada, transportada, pôs-se a chorar e apoiou-se sobre os ombros de Zorba.
Você vai ver — soprou-me Zorba ao ouvido. — com meu bonito discurso eu vou ter amolações. A miserável não vai me deixar sair esta noite. Mas, o que quer você, eu tenho pena delas, coitadinhas, sim, tenho pena delas!
Cristo nasceu! — gritou alto a nossa velha sereia. — à nossa saúde!
Ele passou seu braço sob o da boa senhora e ambos esvaziaram os copos em um trago, os braços enlaçados, olhando-se em êxtase.
A madrugada não estava longe quando deixei sozinho o pequeno quarto quente com o grande leito e tomei o caminho de volta. Toda a aldeia havia festejado e agora dormia, portas e janelas fechadas, sob as grandes estrelas de inverno.
Fazia frio, o mar mugia, Vênus estava suspenso no oriente, dançante e travesso. Ia pela beira da praia, brincando com as ondas: elas se precipitavam para me molhar e eu fugia; estava feliz e me dizia:
Eis a verdadeira felicidade: não ter ambição alguma e trabalhar como um escravo, como se tivesse todas as ambições. Viver longe dos homens, não precisar deles e amá-los. Estar no Natal e, depois de ter comido e bebido bem, escapar sozinho para longe das armadilhas, ter em cima as estrelas, a terra à esquerda e à direita o mar; e subitamente verificar que no coração a vida praticou seu último milagre: que ela se transformou em um conto de fadas.”

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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