sábado, 4 de setembro de 2021

As marcas do sangue azul

A importância de Lambari na minha infância se deve a uma ação do meu irmão Ismael, em claro desafio à autoridade de minha mãe. Mas, para chegar a esse acontecido, é preciso começar longe.
A psicanálise ensina que, para se descobrir segredos, é preciso prestar atenção a pequenas coisas a que ninguém atribui importância. Por exemplo: aqui, na cidade onde vivo, Campinas, há pessoas que falam “casa de Aurélia”, “o livro de Pedro”, “o aniversário de Margarida”... Quando ouço esse “de” já sei que se trata de pessoa ligada à nobreza dos grandes barões do café. E me cubro de cerimônias por me sentir na sala de visitas de um casarão colonial... É nesse insignificante “de” que se encontra a revelação.
Pois as diferenças entre a família do meu pai e a família de minha mãe se revelam no insignificante e banalíssimo ato de chupar laranja. Ah! Vocês pensavam que uma laranja é simplesmente uma laranja! Não é não. Laranjas do mesmo pé podem ser nobres ou plebeias. Depende do jeito como são comidas. A família de minha mãe chupava laranja de gomo, a família do meu pai chupava laranja de tampa. Você pode imaginar uma senhora da alta sociedade chupando laranja de tampa num jantar? Jamais! Chupar laranja de tampa é coisa de plebeus: a laranja enfiada entre os beiços e os dentes, comprimida pelas mãos para lhe extrair o caldo, as sementes enchendo a boca para serem cuspidas para o lado. Pode-se dizer que chupar laranja de tampa é gostoso e descontraído. Mas elegante é que não é. Laranja de tampa pode-se chupar de pé e mesmo andando. O que não é possível fazer quando se chupa uma laranja de gomo. Há duas formas de se chupar uma laranja de gomo. A primeira, plebeia, consta das seguintes operações. Descascar a laranja. Tirar a pele branca que cobre os gomos. Abrir a laranja em duas. Ir enfiando os gomos um a um na boca para serem mastigados, o caldo engolido, as sementes cuspidas e o bagaço engolido ou cuspido, conforme o gosto ou as necessidades da pessoa. Digo “necessidades” porque há pessoas que engolem o bagaço por ordem médica, por causa da prisão de ventre. A segunda, nobre, é diferente. É preciso estar assentado à mesa. Primeiro é o cuidadoso ato de descascar. Descascada a laranja segue-se a operação de retirar-lhe a película branca que a cobre. A seguir, abre-se a mesma em duas metades e separam-se os seus gomos. Tomam-se então os gomos, um a um, e vagarosamente executa-se a operação cirúrgica de retirar a pele translúcida em que vêm revestidos, o que se faz por meio de uma incisão ao longo da linha fina do gomo. Desnudados os gomos, retiram-se-lhes com a ponta da faca os caroços, que são colocados num prato. Finalmente, come-se a sua carne enquanto se conversa. É trabalhoso comer uma laranja de gomo. Trata-se de um elaborado strip-tease. Todos da família da minha mãe comiam as laranjas de gomo, do jeito nobre. Curioso sobre esse costume, procurei explicações com a minha mãe. Ela me respondeu: “É para aproveitar melhor”. De fato, aproveita-se melhor. Mas eu não via razão para se aproveitar tanto, quando as laranjeiras estavam cheias de laranjas que se perdiam, comidas pelos passarinhos e insetos e apodrecidas no chão. Não, não fazia sentido. Essa estória de “aproveitar melhor” só faz sentido quando laranjas são poucas e raras, frutas nobres e caras, possivelmente importadas... Mas lá no interior de Minas não se importavam laranjas, não eram raras nem eram caras. Havia um descompasso entre a abundância das laranjas e a necessidade de comê-las de sorte a aproveitar todas as suas garrafinhas. Se você não sabe, as garrafinhas de uma laranja são aquelas minúsculas gotas de caldo que compõem o gomo. Isso não era costume brasileiro. Era costume que vinha das cortes reais da Europa. Lá os nobres, ricos, comiam caras laranjas importadas, de gomo, elegantemente. O povo pobre não comia laranjas, talvez nem soubesse o que eram laranjas... Assim, ao comer as laranjas de gomo, os membros da família de minha mãe anunciavam suas origens de sangue azul.
A família do meu pai, que chupava laranjas de tampa, nada tinha de nobreza. Era gente comum, sem etiquetas. Mas a família da minha mãe se julgava diferente, era de “sangue azul”, e se meu avô permitiu que minha mãe se casasse com o meu pai, acho que foi porque meu pai era rico. O dinheiro faz perdoar um homem que chupa laranjas de tampa... Referiam-se desdenhosamente às pessoas da “prateleira de baixo” e, quando uma delas tinha antecedentes negros, coçavam discretamente a bochecha com o dedo indicador — gesto que era conhecido de todos — para advertir quem não soubesse: “Tem sangue de preto...” .
Havia vários outros artifícios para estabelecer com clareza sua superioridade sobre a plebe. Um deles eram os nomes que se davam aos filhos. A plebe batizava seus filhos de João, José, Antônio, Manuel, Maria, Conceição, Tereza, nomes vulgares que logo eram reduzidos a apelidos. Mas, para que não houvesse confusões, nossa diferença nobre já estava anunciada em nossos nomes: Aloísio, Augusto, Silvestre, Jorge, Eugênio, Noêmia, Eliza, Delminda...
Uma outra marca de nobreza estava nas roupas que tínhamos de vestir. Os meninos da plebe muito cedo começavam a usar calças compridas. Mas a família da minha mãe achava que os filhos nobres tinham de usar calças curtas. Meu irmão me contou da sua vergonha: já tinha catorze anos, suas pernas eram peludas e tinha de usar calças curtas. Ele andava pelas ruas se espremendo contra as paredes para que ninguém o visse. Naqueles tempos, filho não tinha vontade. Minha mãe se justificava dizendo que os meninos do Rio de Janeiro usavam calças curtas.
Foi muito depois, no Rio de Janeiro, que descobri que a razão era outra. Mãe que tem filho de calças curtas é mulher jovem. A idade de uma mulher se media pelo comprimento das calças do filho... Eu tinha doze anos. Só usava calças curtas. Meu pai e minha mãe me levaram para comprar um terno. Em tudo eu era apenas um observador. Minha mãe pediu um terno de calças curtas. O vendedor respondeu que, para um jovem da minha idade, não havia ternos de calças curtas. Ri de felicidade! Finalmente iria realizar o meu desejo de ter um terno de calças compridas! Concluída a compra, minha mãe disse ao vendedor: “Por favor, mande cortar as pernas...” . O remédio era continuar a usar as calças compridas de brim cáqui do uniforme da escola. Ela não podia mandar cortar as pernas das calças do uniforme...
Na família do meu pai as portas da rua das casas tinham um buraco pelo qual se passava um barbante amarrado ao trinco. Não era preciso bater. Bastava puxar o barbante que a porta se abria e a pessoa podia entrar pela casa indo até a cozinha, onde havia sempre uma cafeteira sobre a chapa do fogão de lenha. No sobradão do meu avô ninguém passava da sala de visitas, que ficava na frente, ao fim da escadaria. Era lá que as visitas eram cerimoniosamente recebidas e confinadas.
Mas, de todas as marcas de nobreza, havia uma que me humilhava mais: os meninos da plebe tinham os seus cabelos raspados à escovinha, com uma franja na testa. Como tínhamos de nos diferenciar dos meninos da “prateleira de baixo”, nosso cabelo havia de ser comprido. O que era motivo de muita vergonha porque, naqueles tempos, cabelo comprido era coisa de menina. Cabelo comprido e calças curtas: era demais...
Aconteceu que o meu irmão Ismael, já moço, já havendo ultrapassado a humilhação das calças curtas, já havendo ultrapassado a humilhação do cabelo comprido, veio nos visitar. Ele estava no internato do Instituto Gammon, em Lavras. Ele não disse nada. Me pegou pela mão e disse: “Vamos passear!”. Ao passar por uma barbearia, ele entrou, assentou-me na cadeira e ordenou ao barbeiro: “Escovinha”…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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