sábado, 18 de setembro de 2021

À casa da mãe porquinho-de-leite


Levantei-me alegre como se tivesse ganho presentes de ano novo. O vento estava frio, o céu puro e o mar brilhava.
Tomei o caminho da aldeia. A missa devia ter terminado. No caminho perguntava-me com uma perturbação absurda quem seria a primeira pessoa — boa? Má? — que eu veria nesse começo de ano. Se pudesse ser uma criança, dizia-me, com os braços carregados de brinquedo de ano novo; ou um velho vigoroso com sua camisa branca de largas mangas bordadas, contente e orgulhoso de haver corajosamente cumprido seu dever na terra! E quanto mais avançava e me aproximava da aldeia mais aumentava a absurda perturbação.
Subitamente meus joelhos me faltaram: no caminho da aldeia, sob as oliveiras, andando com um passo balançando, toda corada, sua mantilha preta sob a cabeça, esbelta e bem lançada, apareceu a viúva.
Seu andar ondulante era realmente de uma pantera negra, e pareceu-me que se espalhava no ar um acre perfume de almíscar. Se eu pudesse fugir! Pensei. Eu sabia que essa fera irritada não tinha piedade e que a única vitória possível com ela era a fuga. Mas, como fugir? A viúva se aproximava. Parecia que o cascalho gemia como com a passagem de um exército. Ela me viu, balançou a cabeça, sua mantilha escorregou e seus cabelos apareceram, brilhantes, um negro de ébano. Percorreu-me com um olhar lânguido e sorriu.
Seus olhos tinham uma doçura selvagem. Às pressas, reajustou sua mantilha, como envergonhada de ter-me deixado ver o profundo segredo da mulher — seus cabelos.
Quis falar, desejar-lhe “feliz ano novo”, mas sentia a garganta seca, como no dia em que a galeria ruiu e eu tivera a vida em perigo.
As folhagens da cerca de seu jardim se agitaram, o sol de inverno caiu sobre os limões de ouro e as laranjeiras de folhas escuras. Todo o jardim resplandeceu como um paraíso.
A viúva parou, estendeu o braço, empurrou com violência a porta e abriu-a. Nesse momento eu passava diante dela. Ela voltou-se, olhou-me e mexeu as sobrancelhas.
Deixou a porta aberta e eu a vi desaparecer, mexendo as ancas, atrás das laranjeiras.
Atravessar o portal, aferrolhar a porta, correr atrás dele, apanhá-la pela cintura e, sem uma palavra, levá-la para o seu leito, eis o que se chama agir como homem! Era o que faria o meu avô, e o que espero venha fazer meu neto. Eu, eu ficava parado lá, a pensar e refletir.
Numa outra vida, murmurei, sorrindo amargamente, numa outra vida eu me comportarei melhor!
Enfiei-me pela depressão cheia de árvores e sentia um peso no coração com se tivesse cometido um pecado mortal. Andei de cá para lá, fazia frio, eu tremia. Não conseguia espantar de meu pensamento o balanço, o sorriso, os olhos, o busto da viúva; eles voltavam sempre, e eu perdia o fôlego.
As árvores ainda não tinham folhas, mas já se sentiam os brotos incharem-se, estourando, cheios de seiva. Sentia-se em cada broto a presença dos galhos novos, das flores, dos frutos futuros, emboscados, concentrados, prestes a se lançarem em direção à luz.
Sob as cascas secas, sem barulho, em segredo, dia e noite, tramava-se no coração do inverno o grande milagre da primavera.
Subitamente dei um grito de alegria. Diante de mim, num recanto abrigado, uma amendoeira cheia de audácia havia florescido no meio do inverno, abrindo caminho a todas as árvores e anunciando a primavera.
Tive um grande alívio. Respirei profundamente o ligeiro odor apimentado, afastei-me do caminho e fui esconder-me sob seus ramos floridos.
Fiquei lá um longo momento, sem pensar em nada, sem nenhuma preocupação, feliz. Estava sentado, na eternidade, sob uma árvore do paraíso.
Subitamente uma voz grossa e selvagem me atirou sobre a terra.
Que está fazendo neste buraco, patrão? Há horas estou procurando você. Daqui a pouco bate o meio-dia, vamos!
Onde?
Onde? Você pergunta? À casa da mãe porquinho-de-leite, ora! Você não tem fome? O leitãozinho saiu do forno! Um perfume, meu velho... de dar água na boca. Vamos!
Levantei-me, acariciei o tronco duro da amendoeira, cheio desse mistério que havia sabido produzir aquele milagre florido.
Zorba ia na frente, rápido, cheio de impulso e de apetite. As necessidades fundamentais do homem — comida, bebida, mulher, dança — permaneciam inesgotáveis e frescas no seu corpo ávido e robusto.
Levava na mão um objeto envolvido em papel cor-de-rosa, amarrado com um cordão dourado.
Presentes? — perguntei sorrindo.
Zorba se pôs a rir, esforçando-se para esconder a emoção.
Eh! Para mimá-la um pouco, coitada! — disse ele sem se voltar.
isso lhe lembrará o bom tempo... é uma mulher, já se disse, e, portanto, uma criatura que se queixa sempre.
É uma fotografia?
Você verá... você verá, não se apresse. Fui eu mesmo que fiz. Vamos mais rápido.
O sol do meio-dia estava tão forte que alegrava os próprios ossos. O mar também se esquentava ao sol, feliz. Ao longe, a pequena ilha deserta, envolvida por uma leve bruma, parecia haver-se levantado e estar flutuando.
Nós nos aproximamos da aldeia. Zorba chegou-se a mim, e baixando a voz:
Sabe, patrão — disse ele, — a tal pessoa estava na igreja. Eu estava na frente, perto do púlpito, quando de repente vi os santos ícones se iluminarem. O Cristo, a Virgem Santa, os doze apóstolos, tudo brilhava... que será isto? Pensei comigo, fazendo o sinal da cruz.
O sol? Volto-me, era a viúva.
Basta de conversa, Zorba, chega — disse eu apertando o passo.
Mas Zorba correu atrás de mim:
Eu a vi de perto, patrão. Ela tem um sinalzinho no rosto. É de perder a cabeça. Mais um mistério, os sinais nos rostos das mulheres.
Ele franziu os olhos, com ar estupefato.
Não, mas você viu isto, patrão? A pele é lisinha e de repente aparece uma mancha preta. Pois bem, isso é quanto basta para fazer perder a cabeça. Você entende alguma coisa disso, patrão? Que é que seus livrecos dizem?
Para o diabo, meus livrecos!
Zorba se pôs a rir, contente.
Isso mesmo — disse ele, — aí está, você começa a compreender.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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