No dia 23 de março de 1998, em San
Diego, na Califórnia, 39 membros da seita Portão do Céu (“Heaven's
Gate”) se suicidaram voluntariamente, bebendo uma mistura de
vodca com fenobarbital. Os corpos foram encontrados em suas camas na
casa onde se reuniam, todos vestidos identicamente com blusa preta e
calças de ginástica, um pano violeta cobrindo seus rostos. Cada um
trazia exatamente US$ 5,75 no bolso e uma fita no braço que dizia
“Time de Partida Portão do Céu”. O momento do suicídio
coletivo foi decidido pelo líder da seita, um personagem misterioso
conhecido por “Do”. Sua referência foi o cometa Hale-Bopp,
quando atingiu o ponto mais próximo da Terra em sua órbita ao redor
do Sol.
Os membros da seita Portão do Céu
acreditavam na existência de uma civilização extraterrestre muito
superior à nossa tanto tecnológica quanto espiritualmente. Ao
avistar um ponto de luz que podia ser visto através da cauda
translúcida do cometa, Do e seus seguidores concluíram que era a
espaçonave dos extraterrestres, que viera recolhê-los na Terra para
transportá-los a um plano de existência puramente espiritual, livre
dos limites corpóreos. Astrônomos que estudavam o cometa
identificaram o “misterioso” ponto de luz como sendo uma estrela
conhecida como SAO 141894.
Infelizmente, Do e seus discípulos já
estavam mortos. No decorrer da história, não faltam exemplos de
seitas apocalípticas cujos membros optam pela morte. Algumas delas
são pacíficas, como no caso da Portão do Céu, enquanto outras são
extremamente agressivas, especialmente aos “outros”, aqueles que
não “pertencem”. (No livro O fim da Terra e do Céu,
ofereço uma breve história das seitas apocalípticas.)
“Pertencer” é o conceito-chave aqui,
tendo origem no nosso passado tribal, quando grupos de
caçadores-catadores lutavam para sobreviver em condições austeras,
provocadas tanto por desafios ambientais quanto por disputas
intertribais. Pertencer a uma tribo garantia proteção contra
agressores externos, animais ou humanos, ajudando à sobrevivência
do grupo.
A afiliação tribal fornecia, também,
um senso imediato de identidade, gerando uma ideologia de
exclusividade: “Pertenço a um grupo, a uma comunidade, cujos
integrantes têm os mesmos valores que eu. Juntos, somos mais fortes;
eu sou mais forte. Aqueles que não fazem parte do meu grupo, que não
compartilham dos mesmos valores, são uma ameaça. São nossos
inimigos. Se não os destruirmos, seremos destruídos por eles.
Portanto, devemos a todo custo tentar convertê-los aos nossos
valores. Se essa estratégia de conversão falhar, só nos resta
destruí-los.”
Existem diversas modalidades de
tribalismo. Apenas as tribos mais extremas adotam essa lógica
binária de considerar os que não pertencem como sendo inimigos, e
apenas as mais violentas entre estas optam por destruir seus
oponentes. A maior parte das tribos se beneficia de outras,
interagindo e colaborando entre si para atingir seus objetivos, sejam
eles positivos ou negativos. Por exemplo, em alianças militares para
combater um inimigo comum ou em trocas culturais ou econômicas.
Em seu livro Tribo, o jornalista
americano Sebastian Junger defende a importância desses valores, que
considera essenciais para cimentar relações sociais, citando a
“destribalização” da vida moderna como sendo a causa principal
da crise política e social em que vivemos. Junger usa o exemplo de
soldados, integrantes da tribo “exército” ou mesmo apenas de seu
pelotão de combate, cuja vida depende da interação positiva com os
outros, da sua proteção e aliança mútua: eu protejo sua vida e
você a minha.
Ao retornarem para casa, tentando retomar
a rotina do dia a dia, esses indivíduos se sentem perdidos,
isolados, longe da tribo que lhes foi tão essencial num período
dramático de suas vidas. Sob esse prisma, Junger conclui que o
tribalismo teve e tem um papel essencial na sociedade, funcionando
como uma espécie de amálgama. Por outro lado, levado ao extremo, o
tribalismo é uma força divisora, preconceituosa, combativa e, como
cansamos de ver nas notícias diárias, extremamente perigosa e
destruidora.
O antropólogo Scott Atran, diretor do
Instituto Jean Nicod em Paris e professor da Universidade de Michigan
em Ann Arbor, vem estudando há anos os movimentos islâmicos
radicais. Em particular, Atran tenta entender o que leva inúmeros
jovens de natureza pacífica e não religiosa a deixar seus países,
famílias e amigos para se filiar a organizações violentas como o
Estado Islâmico (ISIS). Os argumentos de Atran são semelhantes aos
que apontamos acima, justificando a atração que o radicalismo
tribal exerce em tanta gente: são jovens que se sentem perdidos num
mundo cada vez mais impessoal, destituídos de uma missão que os
motive.
Juntam-se ao ISIS e a outros movimentos
extremos em busca de uma identidade, de uma tribo que lhes dê um
senso de comunidade e de propósito, dividido com outros em situação
semelhante. O extremismo oferece uma solução a um intenso desespero
pessoal. “A ascensão do Estado Islâmico como movimento
revolucionário tem, hoje, uma dimensão histórica. Muitos de seus
membros agem movidos por uma fé apocalíptica, acreditando que para
salvar o mundo devem antes destruí-lo”, disse Atran ao jornalista
Bruce Bower da publicação americana Science News. Não
existe espaço para o compromisso com o “outro”, tamanha a
incompatibilidade de valores.
O preço alto, muitas vezes a vida como
soldado ou como suicida, é visto como parte de uma missão que
transpõe essa existência, dada a crença numa outra, atemporal, num
paraíso prometido aos mártires. Na sua maioria, o comportamento
tribal mais extremo é capitalizado por ameaças aos valores que o
grupo considera como sendo sagrados - verdadeiras ou percebidas pela
liderança do grupo como sendo verdadeiras. “Sagrado”, aqui, não
significa necessariamente um valor de cunho religioso. Segundo Atran,
“valores seculares sagrados”, aqueles que não são religiosos,
mas que fazem parte da identificação mais essencial do grupo,
também têm um papel essencial. Por exemplo, noções políticas ou
éticas como “direitos humanos”, que mobilizam a ação de grupos
muitas vezes seculares, ou ideologias que tentam salvar a
“humanidade” através de movimentos políticos revolucionários,
como o socialismo radical, o anarquismo, o comunismo, o fascismo etc.
Fundamentalmente, toda tribo se organiza
em torno de um sistema ou código de valores. A partir dele, emergem
duas funções primárias para seus membros: a proteção desses
valores e sua difusão para os “outros”, os integrantes de outras
tribos. Podemos identificar aqui o que chamo de paradoxo tribal,
visto que nós, seres humanos, temos uma necessidade inerente de
pertencer a um ou mais grupos. Somos animais sociais, e fazer parte
de um grupo com o qual nos identificamos é essencial para uma vida
emocional sadia.
O eremita é uma anomalia social:
escolher o isolamento social é uma forma de agressão, de rejeição.
Passamos a vida buscando tribos diferentes, com as quais nos
identificamos melhor, desde o grupinho de amigos na escola ou no
parquinho, ou a torcida de times, com caras pintadas e vestindo
orgulhosamente a camisa do clube, ou a proliferação de igrejas,
seguindo esse ou aquele pastor. Muitas vezes, a adesão e dedicação
às tribos acabam por provocar comportamentos extremos, que incitam a
violência. No Brasil, vemos isso no futebol, por exemplo, em que o
torcedor do “outro” clube é visto no mínimo com suspeita, e em
geral com desprezo.
Como o fulano pode ter um sistema de
valores aceitável se escolhe torcer por outro time? Exemplos de
torcedores em conflitos violentos não faltam. Ou veja a polarização
extrema nas eleições presidenciais recentes, seja no Brasil ou nos
EUA. Tribos diferentes, com sistemas de valores diferentes,
disputando o poder, o território abstrato da política. O tribalismo
é inseparável da dinâmica social. Seria ingênuo imaginar que
podemos escapar dele. Precisamos dessa adesão; adoramos nossas
tribos; criticamos, ou mesmo odiamos, outras. No entanto, o que leva
ao comportamento tribal extremo é algo diverso. Esse tipo de
comportamento destrutivo vem de um senso radicalizado de
“pertencimento”, de uma adesão cega a um objetivo central que
impede a percepção do “outro”.
O comportamento extremo olha apenas para
si mesmo. Intolerante, não tem espaço para crescer, para olhar e
aprender com o que existe fora. Pelo contrário, o que existe fora é
imediatamente taxado como sendo uma ameaça à sobrevivência do
grupo, não muito diferente das tribos de caçadores-pegadores que
disputavam territórios 20 ou 30 mil anos atrás. A necessidade de
pertencimento se sobrepõe a qualquer possibilidade de abertura, a
qualquer outro sistema de valores. No tribalismo extremo, a devoção
à causa está até mesmo acima do direito à vida, o sacrifício do
indivíduo, como nas formigas, visto como bem comum.
Os líderes se alimentam da devoção de
seus discípulos, enquanto os discípulos se alimentam da devoção
de seu líder e da causa que ele ou ela representa. Após milênios
de civilização agrária, continuamos moralmente nas cavernas,
muitos de nós cegos pelo tribalismo radical. O budismo, uma tribo
decididamente não radical, prega o desapego, visto como o caminho
para a paz pessoal, insistindo que a fonte de nossas ansiedades é o
nosso apego extremo a valores, a bens, a pessoas. Essa é uma lição
decididamente difícil de ser digerida, atabalhoados que somos numa
vida corrida, cheia de compromissos e relações. Por outro lado, se
redirecionarmos esse convite ao desapego a uma abertura ao outro, a
outros valores, não apenas como tolerância, mas como uma
curiosidade de aprender com outras visões de mundo, criamos a
oportunidade de ao menos iniciar o processo de cura.
Podemos nos comprometer a objetivos sem
radicalizá-los, podemos nos filiar a grupos sem demonizar outros.
Podemos seguir sistemas de valores sem a exclusão daqueles que
preferem seguir outros. Corinthians e Flamengo, esquerda e direita,
muçulmanos e judeus, jogamos todos no mesmo campo.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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