No dia 14 de fevereiro de 1990, a sonda
espacial Voyager I tirou uma fotografia do planeta Terra de uma
distância recorde de 6 bilhões de quilômetros, cerca de quarenta
vezes e meia a distância entre o Sol e a Terra. Essa é a distância
aproximada até Plutão. Na foto, nosso planeta mal preenche um
pixel, um “pálido ponto azul” contra a vasta imensidão do
espaço.
A ideia da foto foi do astrônomo e
divulgador de ciência Carl Sagan, que convenceu os técnicos da NASA
a girar a sonda, reorientando-a para que tirasse uma última foto da
Terra. Num pronunciamento público no dia 13 de outubro de 1994,
proferido na Universidade de Cornell, onde lecionava, Sagan refletiu
sobre o significado da imagem: “Ela deveria inspirar mais compaixão
e bondade nas nossas relações, mais responsabilidade na preservação
desse precioso pálido ponto azul, nossa casa, a única que temos.”
Quando medido contra as distâncias
cósmicas, e considerando a enorme quantidade de mundos espalhados
pelo vazio do espaço sideral, esse pequeno planeta é
insignificante, apenas mais um entre trilhões de outros. Por outro
lado, essa esfera girando em torno do Sol é tudo o que temos. Aqui
vivemos, e é aqui que continuaremos a viver por muitas gerações.
“Nessa vastidão, não temos qualquer indicação de que existe
alguém para nos salvar de nós mesmos”, disse Sagan. “A
responsabilidade do que ocorre aqui é inteiramente nossa.” A
imagem de nossa casa cósmica ocupando um mero pixel flutuando em
meio ao nada elucida sua fragilidade.
A Terra é um planeta finito, com
recursos limitados. Indiferente e ignorante disso, nos últimos
noventa anos a população mundial cresceu de 2 para 7 bilhões e
meio de habitantes. (Os interessados podem consultar o relógio da
população mundial, que calcula o valor aproximado da população em
tempo real: worldometers.info/world-population.)
Em outubro de 2011, o Fundo Populacional
das Nações Unidas projetou que a população chegará a 8 bilhões
em 2025. A taxa de crescimento da população mundial vem
desacelerando, mas os números são assustadores e continuarão a
crescer, mesmo que mais lentamente do que no passado. No final do
século XVIII, o inglês Thomas Malthus argumentou que a taxa de
crescimento da população era incompatível com a capacidade de o
nosso planeta prover a subsistência necessária a tanta gente: “O
poder da população é tão superior ao poder da Terra de prover
sustento ao homem que a morte prematura deverá, de alguma forma,
visitar a espécie humana”, escreveu.
Em sua previsão um tanto sombria,
Malthus não considerou a habilidade que temos, demonstrada inúmeras
vezes no decorrer da história, para resolver nossos problemas de
natureza tecnológica através da implementação de ideias
científicas na prática, no caso, a otimização e mecanização das
técnicas utilizadas na agricultura, responsáveis por um aumento
pronunciado da produção alimentícia nos últimos 150 anos. Por
outro lado, o fato é que a Terra tem apenas uma quantidade finita de
terra arável, cerca de 31 milhões de quilômetros quadrados. (Mesmo
que o planeta tenha em torno de 150 milhões de quilômetros
quadrados de terra firme – aproximadamente 29% de sua superfície
total –, temos que descontar regiões montanhosas de grande
altitude, desertos, regiões pantanosas e outras áreas não
irrigáveis ou utilizáveis para fins agrários.)
Em 2013, apenas 14 milhões de
quilômetros quadrados eram considerados aráveis, cerca de 10% do
total. Considerando a taxa de produção agrária atual, essa
quantidade de terra arável pode produzir em torno de 2 bilhões de
toneladas de grãos por ano. Isso é comida suficiente para alimentar
cerca de 10 bilhões de vegetarianos, mas apenas cerca de 2 bilhões
e meio de onívoros. A diferença de 75% vem da quantidade imensa de
grãos necessários para sustentar o gado e as aves consumidos pela
população mundial. Desses números, vemos que uma população
vegetariana é bem mais sustentável globalmente do que uma população
carnívora.
A estimativa acima faz duas suposições
essenciais: primeiro, que o abastecimento de água continuará
ocorrendo ao nível atual, isto é, que não haverá secas
prolongadas, ataques terroristas que comprometam a qualidade da água
em grandes reservatórios, ou conflitos sociopolíticos decorrentes
do desvio de rios para irrigação. Segundo, que o aquecimento
global, resultado de mudanças climáticas exacerbadas, não irá
interferir na quantidade de terra arável ou na produção agrícola
mundial. O aumento da temperatura do planeta é um fator essencial
aqui, pois impacta não apenas a área da superfície terrestre que é
arável, como, também, a possível perda de regiões costeiras e
fluviais extremamente férteis decorrente da subida do nível do mar
e das águas em geral.
Outra séria consequência do aquecimento
global é o deslocamento em massa de populações costeiras para o
interior, criando não só uma perda de mão de obra local como,
também, enormes pressões socioeconômicas nas regiões longe da
costa. Imagine como a população de São Paulo reagiria à invasão
de 2 ou 3 milhões de cariocas. As estimativas acima são
necessariamente aproximadas, e supõem a continuidade da estabilidade
geopolítica mundial. Por exemplo, escrevi acima sobre a
possibilidade concreta de conflitos termonucleares globais e locais,
que teriam consequências absolutamente devastadoras, não só em
termos de mortalidade humana e animal como, também, devido ao
comprometimento do solo pela radiação.
Mesmo assim, os argumentos acima mostram
que, a menos que cientistas consigam alterar radicalmente os níveis
de produção agrícola (provavelmente através do desenvolvimento de
soluções baseadas em alimentos geneticamente modificados, tópico
que atrai ceticismo e mesmo uma rejeição a priori injustificada
cientificamente), uma estimativa razoável para a população total
que nosso planeta pode sustentar gira em torno dos 10 bilhões. De
acordo com o Fundo Populacional das Nações Unidas, esse número
será atingido em 2083.
Mesmo considerando as incertezas nas
estimativas, me parece claro que estamos marchando resolutamente em
direção a um ponto de saturação, em que nossas práticas de
extração e de exploração do solo e a demanda de uma população
crescente e com afluência maior irá exaurir os recursos
planetários. A fé cega na ciência e na criação de soluções
tecnológicas é uma posição perigosa, dado que é impossível
basear o sucesso futuro no sucesso passado: a ciência e suas
aplicações práticas não avançam linearmente ou de forma
previsível, mesmo supondo que o fomento à pesquisa continuará
inalterado tanto em nível governamental quanto privado.
Existem algumas medidas que podem ser
tomadas para atenuar a pressão inexorável de uma população cada
vez maior e com maiores demandas sobre o ecossistema global.
Iniciativas educacionais devem ser instituídas de modo a educar um
número cada vez maior de pessoas sobre os perigos de um crescimento
populacional desmedido.
Entre elas, deve ser incluído o acesso
fácil e pouco oneroso aos contraceptivos, sobrepujando barreiras
culturais e religiosas; o consumo desmedido da carne, base da
alimentação de bilhões de habitantes, precisa ser redirecionado a
uma dieta orientada ao consumo maior de frutas e vegetais; fontes de
energia renováveis precisam tornar-se economicamente viáveis de
modo a atrair um número maior de usuários na população e nas
empresas e órgãos governamentais; uma nova ética planetária
baseada na sustentabilidade global deve ser incluída no currículo
escolar e fazer parte da ética corporativa.
Toda criança precisa ser educada a
respeito do planeta onde vive e toda empresa precisa agir de acordo
com parâmetros que reflitam a realidade global em que vivemos. Cada
um desses passos gera sérias controvérsias, e é debatido
arduamente pelos diversos grupos de interesse, de órgãos
governamentais a lideranças religiosas e comunitárias.
Com frequência, são rotulados como
parte de uma agenda política liberal. Me parece que essa atitude
tradicionalista é profundamente equivocada e, em grande parte,
responsável pela situação atual. Educar a população sobre os
perigos de um crescimento populacional desenfreado (que, como
sabemos, afeta com frequência regiões já extremamente pobres), ou
sobre o que comemos e de onde vem essa comida, ou sobre a necessidade
urgente de protegermos o meio ambiente e, de modo mais geral, nosso
planeta, para o benefício mútuo da população mundial e de todas
as outras criaturas que dividem esse espaço conosco, deveria
suplantar as divisões políticas que impedem uma mudança profunda
na nossa atitude com relação ao planeta.
Deveríamos considerar essa nova atitude
como uma extensão direta – do humano a qualquer forma de vida e ao
planeta como um todo – da regra ética mais essencial que temos:
trate todas as formas de vida como quer ser tratado; trate do planeta
como quer que sua casa seja tratada. Por quê? Muito simples. Esse
pálido ponto azul é a única casa que temos e que teremos por um
longo tempo. A Terra existiu e continuaria a existir por bilhões de
anos sem a gente. Por outro lado, nós não podemos existir sem ela.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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