segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Por um bife (trecho II)

 


[...]
Lá dentro, a caminho do vestiário, encontrou o secretário, um jovem de olhos penetrantes e rosto esperto, que lhe deu um aperto de mão.
Como está se sentindo, Tom?”, perguntou ele.
Perfeitamente em forma”, respondeu King, embora soubesse que estava mentindo e que, se tivesse uma libra, teria dado tudo ali mesmo em troca de um bom bife.
Quando emergiu de seu vestiário, com os segundos atrás dele, e desceu o corredor até o ringue quadrado no centro do salão, ouviu-se uma explosão de aplausos e saudações da plateia que o esperava. Respondeu a cumprimentos à direita e à esquerda, embora só reconhecesse poucos rostos. Na maioria, eram rostos de meninos que nem tinham nascido quando já conquistava suas primeiras vitórias no ringue. Deu um salto ágil para a plataforma e se abaixou para passar por sob as cordas e se dirigir ao seu corner, onde sentou num banquinho dobrável. Jack Ball, o juiz, aproximou-se e lhe deu um aperto de mão. Ball era um pugilista acabado que não subia ao ringue para lutar havia mais de dez anos. King gostou de tê-lo como juiz. Os dois eram velhos. Se ele exorbitasse um pouco das regras com Sandel, sabia que podia contar com a tolerância de Ball.
Jovens aspirantes a peso-pesado, um depois do outro, subiam ao ringue e eram apresentados à plateia pelo juiz, que também anunciava seus desafios. “O jovem Pronto”, anunciou Ball, “do norte de Sydney, desafia o vencedor a uma aposta particular de cinquenta libras.”
O público aplaudiu, e tornou a aplaudir quando o próprio Sandel passou entre as cordas e se instalou no seu corner. Tom King olhou curioso para ele do outro lado do ringue, pois dali a poucos minutos estariam enlaçados num combate inclemente, cada um usando toda a sua força para, a socos, tentar deixar o outro inconsciente. Mas não conseguiu ver muita coisa, pois Sandel, como ele próprio, estava de calças e suéter por cima de seu traje de combate. Seu rosto era de uma beleza forte, coroado por encaracolados cabelos louros, enquanto seu pescoço grosso e musculoso indicava o esplendor de sua forma física.
O jovem Pronto foi a um dos cantos e depois ao outro, trocando apertos de mão com os lutadores, e depois desceu do ringue. Os desafios se sucediam. A Juventude atravessava as cordas — sempre a Juventude, desconhecida mas insaciável — clamando para a humanidade que, com força e talento, dispunha-se a enfrentar quem vencesse hoje. Alguns anos antes, no apogeu de sua própria invencibilidade, Tom King acharia graça e se entediaria com todas essas preliminares. Mas agora se sentia fascinado, incapaz de afastar dos olhos aquela visão da Juventude. Sempre havia jovens como aqueles entrando no boxe, pulando por entre as cordas e emitindo seus brados de desafio; e sempre havia os velhos que eles derrubavam. Ascendiam ao sucesso escalando os corpos dos velhos. Nunca paravam de chegar, mais e mais jovens — a Juventude, insaciável e irresistível — e nunca paravam de afastar os velhos, eles próprios se transformando em velhos e percorrendo o mesmo caminho ladeira abaixo, enquanto atrás deles, sempre empurrando para abrir caminho, vinha a Juventude eterna — os novos bebês, que se tornavam ambiciosos e atropelavam os mais velhos, com mais bebês atrás deles, e assim até o fim dos tempos —, a Juventude, que precisa fazer valer sua vontade e nunca há de morrer.
King olhou para o camarote da imprensa e trocou acenos de cabeça com Morgan, do Sportsman, e Corbett, do Referee. Em seguida estendeu as mãos, enquanto Sid Sullivan e Charley Bates, seus segundos, calçavam-lhe as luvas e as atavam com firmeza, observados de perto por um dos segundos de Sandel, que antes examinou em detalhe as ataduras que protegiam os nós dos dedos de King. Um dos segundos dele tinha ido até o corner de Sandel, desincumbindo-se de função semelhante. As calças de Sandel foram tiradas, e, quando se levantou, seu suéter foi puxado por cima da sua cabeça. E Tom King, ao olhar para ele, viu a Juventude encarnada, com o peito largo e os tendões reforçados, com os músculos que escorriam e se deslocavam como criaturas vivas por baixo da pele de um branco acetinado. Todo aquele corpo fervilhava de vida, e Tom King sabia que era uma vida que nunca deixava de emanar seu frescor pelos poros doloridos durante as longas lutas nas quais a Juventude paga seus tributos, saindo delas menos jovem do que entrava.
Os dois homens avançaram um contra o outro e, quando o gongo soou e os segundos, carregando os banquinhos dobráveis, deixaram o ringue, trocaram um aperto de mão e imediatamente assumiram a postura de luta. No mesmo instante, como um mecanismo de aço e molas acionado por um gatilho muito sensível, Sandel avançou e recuou, e depois avançou de novo, soltando uma esquerda nos olhos, uma direita nas costelas, se esquivando de uma resposta, dançando leve para longe e dançando ameaçadoramente de novo para perto. Era rápido e inteligente. Sua apresentação foi deslumbrante, e o público gritou de aprovação. Mas King não se deslumbrava. Já tinha disputado lutas demais e enfrentado muitos jovens. Sabia exatamente como eram aqueles golpes — rápidos e elegantes demais para trazer algum perigo. Era evidente que, desde o início, Sandel queria apressar as coisas. Já era de se esperar. Era assim que lutava a Juventude, desbaratando sua energia e sua excelência numa insurgência louca e em ataques furiosos, derrotando o adversário com seu ilimitado esplendor de força e desejo.
Sandel se aproximava e se afastava, aqui, ali e acolá, com os pés ligeiros e o coração faminto, um esplendor vivo de carne branca e força muscular que tecia uma teia esplêndida de ataques, fintas e saltos como dardos em pleno voo, de gesto em gesto por mil gestos, todos destinados a destruir Tom King, que ousava se interpor entre ele e a fortuna. E Tom King, paciente, resistia. Sabia o que estava fazendo e conhecia a Juventude, agora que não a possuía mais. Não havia nada a fazer até o outro extravasar boa parte de seu vapor, pensava ele, e sorriu para si mesmo ao curvar-se deliberadamente para receber um golpe fortíssimo no topo da cabeça. Era uma coisa maldosa, mas totalmente de acordo com as regras do esporte. Cada um cuidava dos seus dedos, e, se o outro insistia em golpear o adversário no topo da cabeça, era por sua própria conta e risco. King podia ter se abaixado mais e deixado o soco passar sibilando por cima da cabeça, mas lembrou-se de suas próprias primeiras lutas e de como tinha fraturado a primeira falange de um dedo contra a cabeça do Terror de Gales. Estava só jogando o jogo. Aquela cabeça abaixada devia ter dado conta de uma das falanges de Sandel. Não que agora este fosse lhe dar importância. Iria continuar, num ritmo soberbo apesar da contusão, batendo forte como sempre até o fim da luta. Mas, mais tarde, quando as longas batalhas no ringue começassem a produzir seu efeito, ele se lamentaria por aquela falange e se lembraria de como a tinha fraturado socando o topo da cabeça de Tom King.
O primeiro round foi todo de Sandel, e o público aclamava a rapidez de suas séries de golpes ofensivos. Ele deixava King sem ação com avalanches de socos, e King não fazia nada. Não respondeu nem uma vez, limitando-se a fechar a guarda, bloquear os socos, esquivar-se e apelar para o clinch, de modo a evitar um castigo maior. Fazia alguma finta ocasional, sacudia a cabeça quando recebia o peso de um soco e se deslocava vagarosamente pelo ringue, nunca pulando nem dando botes ou desperdiçando um grama de força. Todos os movimentos de King eram lentos e metódicos, e seus olhos de pálpebras pesadas e movimentos lentos davam a impressão de que estava meio adormecido ou mesmo tonto. No entanto, eram olhos que enxergavam tudo, que tinham sido treinados para enxergar tudo ao longo de vinte e tantos anos no ringue. Eram olhos que não piscavam nem se desviavam antes de um golpe iminente, mas enxergavam friamente e calculavam distâncias.
Sentado em seu corner para o descanso de um minuto ao final do primeiro round, inclinou-se para trás com as pernas estendidas, os braços apoiados no canto das cordas, seu peito e seu abdômen exibindo francamente seu esforço profundo para respirar, enquanto engolia o ar empurrado pelas toalhas de seus segundos. Ouvia com os olhos fechados as vozes da plateia. “Por que você não luta, Tom?”, gritavam muitas delas. “Não está com medo dele, ou está?”
Está com a musculatura presa”, ouviu um homem comentar na primeira fila. “Não consegue se mexer mais depressa. Dois contra um em Sandel, de uma libra para cima.”
O gongo soou e os dois homens avançaram na direção do corner oposto. Sandel percorreu quase três quartos da distância, ansioso por recomeçar, mas King se contentou em percorrer a distância mais curta. Era a linha que adotara em sua política de economia. Não estava bem-treinado nem tinha comido o suficiente, e cada passo contava. Além disso, já tinha andado três quilômetros para chegar até ali. E o que se viu foi uma repetição do primeiro round, com Sandel atacando como um moinho de vento e o público perguntando indignado por que King não reagia. Além de algumas fintas e de vários golpes desferidos com lentidão e sem eficiência, ele se limitava a bloquear, ganhar tempo e apelar para o clinch. Sandel queria acelerar o ritmo, enquanto King, por experiência, recusava-se a aceitar. Sorria com alguma tristeza em seu semblante maltratado pelo ringue e continuava a poupar energia com o zelo de que só a idade é capaz. Sandel era a Juventude, e esbanjava energia com o perdulário abandono da Juventude. A King cabia o domínio do ringue, a sensatez adquirida em demoradas e dolorosas batalhas. Observava com a cabeça e os olhos frios, deslocando-se devagar e esperando que a espuma de Sandel começasse a se desmanchar. Para a maioria dos observadores, parecia que King estava irreversivelmente dominado, e essa opinião era externada em apostas de até três contra um a favor de Sandel. Mas havia alguns que sabiam, uns poucos que conheciam King dos velhos tempos e que aceitaram o que lhes parecia dinheiro fácil.
O terceiro round começou como os outros, de um lado só, com Sandel tomando toda a iniciativa e desferindo todos os golpes. Meio minuto tinha passado quando Sandel, por excesso de confiança, deixou uma abertura. Os olhos de King e seu braço direito reagiram no mesmo instante. Foi seu primeiro soco de verdade — um gancho, com o arco do braço torcido para dar-lhe rigidez, e tendo por trás dele todo o peso do corpo, que fizera meio giro. Era como se um leão aparentemente adormecido de repente soltasse uma patada relâmpago. Sandel, atingido do lado do maxilar, desabou como um touro abatido. O homem não estava com a musculatura presa, no final das contas, e era capaz de soltar socos que tinham a força de um bate-estacas.
Sandel ficou abalado. Rolou e tentou levantar-se, mas os gritos altos de seus segundos, recomendando que aproveitasse toda a contagem, o fizeram esperar. Apoiou-se num dos joelhos, pronto para se levantar, e aguardou enquanto o juiz, bem perto dele, contava os segundos em voz alta no seu ouvido. À contagem de nove, ele se levantou com sua postura de boxeador, e Tom King, de frente para ele, lamentou que o soco não tivesse pegado mais três centímetros na direção da ponta do queixo. Nesse caso teria sido nocaute, e ele podia ter voltado para casa levando as trinta libras para a mulher e as crianças.
O round continuou até o fim de seus três minutos, com Sandel pela primeira vez respeitando o adversário e King sempre se deslocando com lentidão e com seus olhos sonolentos. Quando o round se aproximava do fim, King, percebendo que a hora estava para chegar ao ver os segundos que se acocoravam do lado de fora, prontos para pular para o ringue por entre as cordas, conduziu a luta para seu próprio corner. Quando o gongo soou, sentou-se imediatamente no banquinho que o esperava, enquanto Sandel precisou percorrer toda a diagonal do quadrado até seu canto. Era uma coisa à toa, mas era a soma de pequenas coisas como aquela que contava. Sandel foi obrigado a percorrer mais aqueles passos, a gastar mais aquele tanto de energia e a perder parte do precioso minuto de descanso. No começo de cada round, King avançava muito devagar a partir de seu corner, o que forçava seu adversário a percorrer a distância maior. No final de cada round, a luta era conduzida por King para perto de seu próprio corner, para assim sentar-se sem demora.
Passaram-se mais dois rounds em que King poupava seus esforços e Sandel se mostrava pródigo. A tentativa que este fazia de forçar um ritmo mais acelerado incomodava King, pois uma boa porcentagem da miríade de golpes que choviam sobre ele acabava por atingi-lo. Ainda assim, ele persistia em sua obstinada lentidão, contrariando os gritos dos jovens esquentados da plateia, que o mandavam começar a lutar logo. Mais uma vez, no sexto round, Sandel se descuidou, e mais uma vez a temível direita de Tom King foi disparada contra seu maxilar, e mais uma vez Sandel esperou a contagem chegar a nove.
No sétimo round, o auge da condição física de Sandel passara e ele aceitou que aquela era a luta mais difícil de toda a sua experiência. Tom King era velho, mas o melhor velho que ele já tinha enfrentado — um velho que nunca perdia a cabeça, que tinha uma defesa incrível, cujos socos tinham o impacto de um porrete e que seria capaz de nocauteá-lo com qualquer das duas mãos. Ainda assim, Tom King não se atrevia a golpear o tempo todo. Nunca se esquecia de suas falanges maltratadas, e sabia que cada soco que desse precisava ter efeito, para que suas mãos pudessem aguentar até o fim da luta. Quando estava sentado em seu corner, de frente para o adversário, ocorreu-lhe que a soma de sua experiência com a juventude de Sandel poderia produzir um campeão mundial dos pesos-pesados. Mas era este o problema. Sandel nunca chegaria a ser um campeão mundial. Faltava-lhe a experiência, que só podia adquirir ao preço da Juventude; por outro lado, quando conquistasse a experiência, toda a Juventude teria sido gasta no processo. [...]

Jack London, in Nocaute

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