terça-feira, 24 de agosto de 2021

Conheça seus desejos e afetos

As mulheres negras são ultrassexualizadas desde o período colonial. No imaginário coletivo brasileiro, propaga-se a imagem de que são “lascivas”, “fáceis” e “naturalmente sensuais”. Essa ideia serve, inclusive, para justificar abusos: mulheres negras são as maiores vítimas de violência sexual no país.
Obviamente a questão não é sobre a sensualidade de determinada mulher, mas sim sobre necessidade de enquadrar mulheres negras nesse estereótipo. É importante refutar a visão colonial, que via os corpos negros como violáveis. Respeito muito o importante trabalho de passistas de escola de samba, por exemplo, que lutam para perpetuar o verdadeiro legado do samba. O nu só deveria ser problematizado quando utilizado dentro da lógica colonial.
Quando Gilberto Freyre, em Casa-grande & senzala, faz afirmações como: “O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com a sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço”, ele contribui para a fetichização. As mulheres negras escravizadas eram tratadas como mercadoria, propriedade, portanto não tinham escolha. Nesse contexto, não há como negar que elas eram estupradas pelos senhores de engenho.
Ao afirmar que “nós carregamos a marca”, Luiza Bairros exemplifica bem a ultrassexualização dos corpos negros femininos, que faz com que a imagem das mulheres negras seja vista sob o prisma da exotização. Luiza denunciou de forma obstinada a violência mascarada pelo mito da democracia racial. Ou pior que mascarada: a “marca”, em vez de ser problematizada, é vista como um elogio da beleza negra.
Essa sexualização retira a humanidade das mulheres, pois deixamos de ser vistas com toda a complexidade do ser humano. Somos muitas vezes importunadas, tocadas, invadidas sem a nossa permissão. Muitas vezes temos nossos nomes ignorados, sendo chamadas de “nega”. São atitudes que parecem inofensivas, mas que para mulheres negras são recorrentes e violentas.
O racismo somado ao machismo já me fez passar por situações absurdas. Enquanto eu cursava filosofia, um colega, metido a engraçado, perguntou: “Por que você, uma negra bonita, está queimando seus neurônios estudando filosofia?”. Outro me questionou por que eu não “arrumava um gringo rico pra casar”. Na cabeça deles, por eu ser uma “negra bonita”, meu lugar não era na universidade.
A poeta e escritora Elisa Lucinda tem uma frase forte, mas muito pertinente: “Deixar de ser racista não é comer uma mulata”. A autora chama atenção para o fato de que se relacionar com uma pessoa negra não significa ter uma consciência antirracista. Primeiro, porque é necessário entender como essa relação se dá. Se ela segue signos racistas, como a ideia de que mulheres negras são “quentes” e “naturalmente sensuais”, ou ainda se a pessoa só procura pessoas negras para relações casuais, e não para um compromisso duradouro, a relação é pautada pelo racismo.
Recentemente, o tema da solidão da mulher negra se tornou objeto de pesquisas acadêmicas. Em sua dissertação de mestrado, posteriormente publicada em livro com o título Virou regra?, Claudete Alves discute como o racismo é um fenômeno que abarca a dimensão afetiva e sexual da mulher negra, que fica à margem das escolhas afetivas de homens brancos e negros. Ana Cláudia Lemos Pacheco aborda o mesmo assunto em sua tese de doutorado, “Branca para casar, mulata para f..., negra para trabalhar”: Escolhas afetivas e significados de solidão entre mulheres negras em Salvador. Numa sociedade racista, machista e heteronormativa, as mulheres negras ficaram relegadas ao papel de servir: seja na cozinha, seja na cama.
Dados do Censo 2010 mostram que as mulheres negras são as que menos se casam e, entre as com mais de cinquenta anos, elas são maioria na categoria “celibato definitivo”, ou seja, que nunca viveram com um cônjuge.2 Obviamente não pretendo sugerir com quem as pessoas devem se relacionar. A questão é revelar os processos históricos que fazem com que as mulheres negras, sobretudo as retintas, sejam sistematicamente preteridas, como se não fossem dignas de serem amadas. É preciso questionar padrões estéticos que desumanizam as mulheres negras.
Em seu ensaio “Vivendo de amor”, bell hooks ressalta a importância do amor na vida das mulheres negras, sobretudo o amor-próprio. “Quando nos amamos, sabemos que é preciso ir além da sobrevivência”, ela afirma. Esse é um entendimento fundamental para que mulheres negras possam perceber que merecem amor em suas vidas.
Em outra esfera, há a relação de afeto por conveniência, que ocorre, por exemplo, com a trabalhadora doméstica. Apesar do avanço da legislação nos anos 2000, muitas vezes essa profissional não tem seus direitos assegurados nem condições dignas de trabalho, já que, segundo seus patrões, ela “é quase da família”. É mais fácil amar pessoas negras quando elas estão “no seu devido lugar”. Minha mãe foi empregada doméstica por alguns anos, antes de conhecer meu pai. Quando anunciou que se casaria e que, a partir daquele momento, não trabalharia mais, sua antiga patroa tentou fazê-la desistir do relacionamento, inclusive inventando histórias sobre o futuro marido. Portanto, minha mãe só podia ser amada enquanto permanecesse no lugar que julgavam ser o dela.
Em relacionamentos inter-raciais, muitas vezes as pessoas de fora dizem esperar que o filho do casal carregue traços mais parecidos com o genitor de pele branca. No entanto, atribuir uma qualidade negativa ao fenótipo negro, falando coisas como “cabelo ruim”, diz muito sobre os padrões de beleza racistas impostos em nossa sociedade. Como a norma é branca, tudo que difere é visto como o que não é bom.
Dessa forma, é fundamental que pessoas brancas compreendam os mecanismos pelos quais o racismo opera, pois podem reproduzi-los acreditando estarem imunes por terem um marido, uma esposa ou um filho negros. Estar atento ao que a pessoa negra da família relata é um passo importante. Fala-se muito em empatia, em colocar-se no lugar do outro, mas empatia é uma construção intelectual, ética e política. Ao amar alguém de um grupo minorizado, deve-se entender a condição do outro, para que se possa, de fato, assumir ações para o combate de opressões das quais a pessoa amada é vítima. É uma postura ética: questionar as próprias ações em vez de utilizar a pessoa amada como escudo. A escuta, portanto, é fundamental.

Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista

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