quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Aconteceu na ilha de Cat

Conversa de mulher que diz que vem, mas não vem, e talvez ainda venha, deixa um homem completamente no ora-veja, olhando a cara preta do telefone, sem cabeça para trabalhar nem coragem de sair. Liguei o rádio, coisa que raramente faço. Numa estação qualquer, um sujeito com voz de evangelista se dirigia a mim, querido irmão, e tomava intimidades, dizia que eu estava atolado em pecados, principalmente em concupiscência. Ah, quem me dera! Quem me dera concupiscenciar a esmo nesta sexta-feira chuventa e quase fria. Será que o telefone não vai tocar? Abri a carta de uma leitora. Ela me perguntava se resolver palavras cruzadas era bom para enriquecer o vocabulário. Não sei; também não sei se vale a pena enriquecer o vocabulário, talvez seja melhor a gente reduzi-lo, usar somente poucas palavras e usá-las muito pouco. Mas a carta me deu uma inspiração doentia: matar o tempo com palavras cruzadas. Fui à esquina, comprei três revistinhas especializadas. Quando eu ia chegando de volta, o telefone estava tocando.
Quando consegui abrir a porta e corri para atender, ele parou de tocar; bolas! Peguei um dicionário, entreguei-me de corpo e alma às palavras cruzadas.
Enfrentei cerca de 20 problemas; isto não é vantagem, porque as tais revistinhas trazem no fim, para ajudar a gente, uma lista de palavras difíceis. Estimada leitora: decifrar palavras cruzadas ajuda muito a enriquecer o vocabulário... de decifrador de palavras cruzadas.
Explico-me: as pessoas que fazem palavras cruzadas têm um vocabulário especial, e não apenas um vocabulário como uma História, uma Geografia e todo um tipo de cultura. Para elas as palavras não têm o sentido comum que nós, os leigos, entendemos, mas um sentido especial, cavado no dicionário, de preferência em um dicionário especializado em palavras cruzadas. A princípio a gente acha difícil — antigo navio de combate é ram; arrieira é má; filho de Jacó é Gad; rio da Sibéria é Om; da Polônia é Ros; da Holanda é Aa; afluente do Reno é Aar; 10? letra do alfabeto árabe é ra; medida de Amsterdã para líquidos é aam; medida sueca é só am; e — coisa espantosa! — luz que emana da ponta dos dedos é od; dificílimo, como se vê. Mas não tanto: porque os rios são sempre aqueles mesmos, o cabo do Canadá, Or, a cidade da Caldéia é sempre Ur, a antiga cidade da ilha de Creta é sempre Aso, por mais cretinizante que isto possa parecer. Em matéria de tecidos, tudo o que você precisa saber é que um tecido fino como escumilha chama-se ló; provavelmente você sabe que pedra de moinho é mó, mas esta palavra só aparece nos problemas mais fáceis, nos outros o que se usa é cano de moinho, cal. No terreno da coreografia, não quebre a cabeça: espécie de dança é sempre ril; e porco é sempre to, uma das ilhas Lucaias é exatamente, infalivelmente, Cat. Imagino que haja outras Lucaias, mas só aquela é usada, assim como do calendário hebreu só usamos o derradeiro mês, Adar, e de todo o material de guerra antigo dos turcos só enfrentamos uma flecha denominada oc; o único abrigo para o gado é ramada; gato selvagem é marisco; nadar é remar; e folha de palma é ola. Enfim, adquiri preciosos conhecimentos e pensei mesmo em escrever um conto começando assim: “Na ilha de Cat, vestida de ló, ela dançava o ril, e das pontas de seus dedos emanava o od, quando chegou um ram vindo de Or com turcos atirando ocs...” Mas felizmente o telefone tocou.

Rubem Braga, in Recado de primavera

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