Conversa de mulher que diz que vem, mas
não vem, e talvez ainda venha, deixa um homem completamente no
ora-veja, olhando a cara preta do telefone, sem cabeça para
trabalhar nem coragem de sair. Liguei o rádio, coisa que raramente
faço. Numa estação qualquer, um sujeito com voz de evangelista se
dirigia a mim, querido irmão, e tomava intimidades, dizia que eu
estava atolado em pecados, principalmente em concupiscência. Ah,
quem me dera! Quem me dera concupiscenciar a esmo nesta sexta-feira
chuventa e quase fria. Será que o telefone não vai tocar? Abri a
carta de uma leitora. Ela me perguntava se resolver palavras cruzadas
era bom para enriquecer o vocabulário. Não sei; também não sei se
vale a pena enriquecer o vocabulário, talvez seja melhor a gente
reduzi-lo, usar somente poucas palavras e usá-las muito pouco. Mas a
carta me deu uma inspiração doentia: matar o tempo com palavras
cruzadas. Fui à esquina, comprei três revistinhas especializadas.
Quando eu ia chegando de volta, o telefone estava tocando.
Quando consegui abrir a porta e corri
para atender, ele parou de tocar; bolas! Peguei um dicionário,
entreguei-me de corpo e alma às palavras cruzadas.
Enfrentei cerca de 20 problemas; isto não
é vantagem, porque as tais revistinhas trazem no fim, para ajudar a
gente, uma lista de palavras difíceis. Estimada leitora: decifrar
palavras cruzadas ajuda muito a enriquecer o vocabulário... de
decifrador de palavras cruzadas.
Explico-me: as pessoas que fazem palavras
cruzadas têm um vocabulário especial, e não apenas um vocabulário
como uma História, uma Geografia e todo um tipo de cultura. Para
elas as palavras não têm o sentido comum que nós, os leigos,
entendemos, mas um sentido especial, cavado no dicionário, de
preferência em um dicionário especializado em palavras cruzadas. A
princípio a gente acha difícil — antigo navio de combate é ram;
arrieira é má; filho de Jacó é Gad; rio da Sibéria é Om; da
Polônia é Ros; da Holanda é Aa; afluente do Reno é Aar; 10? letra
do alfabeto árabe é ra; medida de Amsterdã para líquidos é aam;
medida sueca é só am; e — coisa espantosa! — luz que emana da
ponta dos dedos é od; dificílimo, como se vê. Mas não tanto:
porque os rios são sempre aqueles mesmos, o cabo do Canadá, Or, a
cidade da Caldéia é sempre Ur, a antiga cidade da ilha de Creta é
sempre Aso, por mais cretinizante que isto possa parecer. Em matéria
de tecidos, tudo o que você precisa saber é que um tecido fino como
escumilha chama-se ló; provavelmente você sabe que pedra de moinho
é mó, mas esta palavra só aparece nos problemas mais fáceis, nos
outros o que se usa é cano de moinho, cal. No terreno da
coreografia, não quebre a cabeça: espécie de dança é sempre ril;
e porco é sempre to, uma das ilhas Lucaias é exatamente,
infalivelmente, Cat. Imagino que haja outras Lucaias, mas só aquela
é usada, assim como do calendário hebreu só usamos o derradeiro
mês, Adar, e de todo o material de guerra antigo dos turcos só
enfrentamos uma flecha denominada oc; o único abrigo para o gado é
ramada; gato selvagem é marisco; nadar é remar; e folha de palma é
ola. Enfim, adquiri preciosos conhecimentos e pensei mesmo em
escrever um conto começando assim: “Na ilha de Cat, vestida de ló,
ela dançava o ril, e das pontas de seus dedos emanava o od, quando
chegou um ram vindo de Or com turcos atirando ocs...” Mas
felizmente o telefone tocou.
Rubem Braga, in Recado de primavera
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