terça-feira, 17 de agosto de 2021

A originalidade

Não creio na originalidade, que é mais um fetiche criado em nossa época de demolição vertiginosa. Acredito na personalidade através de qualquer linguagem, de qualquer forma, de qualquer sentido da criação artística. Mas a originalidade delirante é uma invenção moderna e uma fraude eleitoral. Existem os que querem ser eleitos Primeiro Poeta de seu país, de sua língua ou do mundo. Correm então em busca de eleitores, insultam os que acreditam com possibilidades de lhes disputar o cetro, e desse modo a poesia se transforma em uma mascarada.
No entanto é essencial conservar a diretriz interior, manter o controle do crescimento que a natureza, a cultura e a vida social ocasionam para desenvolver as excelências do poeta.
Antigamente os mais nobres e rigorosos poetas, como Quevedo por exemplo, escreveram poemas com esta advertência: “Imitação de Horácio”, “Imitação de Ovídio”, “Imitação de Lucrécio”.
De minha parte conservo meu tom próprio, que foi se fortalecendo por sua própria natureza, como crescem todas as coisas vivas. É indubitável que as emoções fazem parte principal de meus primeiros livros – e ai do poeta que não responde com seu canto aos ternos ou impetuosos chamados do coração. No entanto, depois de quarenta anos de experiência, creio que a obra poética pode chegar a um domínio mais substancial das emoções. Creio na espontaneidade dirigida. Para isto são necessárias reservas que devem estar sempre à disposição do poeta, digamos em seu bolso, para qualquer emergência. Em primeiro lugar, a reserva de observações formais, virtuais de palavras, sons e figuras, dessas que passam perto da gente como abelhas. É preciso caçá-las de imediato e guardá-las no bolso interno. Sou muito preguiçoso neste sentido mas sei que estou dando um bom conselho. Maiakovski tinha um caderninho e corria incessantemente para ele. Existe também a reserva de emoções. Como são guardadas? Tendo consciência delas quando surgem. Logo, diante do papel, recordaremos essa nossa consciência mais vivamente do que a emoção em si.
Em boa parte de minha obra quis provar que o poeta pode escrever sobre tudo o que lhe for indicado, sobre aquilo que seja necessário para uma coletividade humana. Quase todas as grandes obras da antiguidade foram feitas sobre a base de estritas reivindicações. As Geórgicas são a propaganda dos cultivos no campo romano. Um poeta pode escrever para uma universidade ou para um sindicato, para as associações e para os ministérios. Nunca se perdeu a liberdade com isso. A inspiração mágica e a comunicação do poeta com Deus são invencionices interesseiras. Nos momentos de maior transe criador, o produto pode ser parcialmente alheio, influído por leituras e pressões exteriores.
Inopinadamente interrompo estas considerações um tanto teóricas e me ponho a rememorar a vida literária de minha mocidade. Pintores e escritores se agitavam surdamente. Havia um lirismo outonal na pintura e na poesia. Cada um tratava de ser mais anárquico, mais desagregante, mais desordenado. A vida social chilena se alterava profundamente. Alessandri pronunciava discursos subversivos. Nos pampas salitreiros se organizavam os operários que criariam o movimento popular mais importante do continente. Eram os sacrossantos dias de luta. Carlos Vicuna, Juan Gandulfo. Aderi logo à ideologia anarco-síndicalista estudantil. Meu livro favorito era o Sacha Yegulev, de Andreiev. Outros liam as novelas pornográficas de Arzivachev e lhe atribuíam conseqüências ideológicas, exatamente como acontece hoje com a pornografia existencialista. Os intelectuais se refugiavam nos bares. O velho vinho fazia brilhar a miséria que reluzia como ouro até a manhã seguinte. Juan Egaña, poeta extraordinariamente dotado, debilitava-se até morrer. Contava-se que ao herdar uma fortuna, deixou todo o dinheiro sobre uma mesa, numa casa abandonada. Os companheiros de boêmia, que dormiam de dia, saíam de noite para buscar vinho em barris. No entanto, o raio lunar da poesia de Juan Egaña é um estremecimento desconhecido de nossa “selva lírica”. Este era o título romântico da grande antologia modernista de Molina Núñes e O. Segura Castro. É um livro completo, cheio de grandeza e de generosidade. É a Suma Poética de uma época confusa, assinalada por imensos vazios e por um esplendor puríssimo. A personalidade que mais me impressionou foi a do ditador da jovem literatura. Ninguém lembra mais dele. Chamava-se Alirio Oyarzún, um desnutrido baudelairiano, um decadente cheio de qualidades, um Barba-Jacob do Chile, atormentado, cadavérico, bonito e lunático. Falava com voz cavernosa do alto da sua alta estatura. E inventou essa maneira hieroglífica de propor os problemas estéticos, tão peculiar em certa parte de nosso mundo literário. Elevava a voz e sua fronte parecia uma cúpula amarela do templo da inteligência. Dizia por exemplo: “o circular do círculo”, “o dionisíaco de Dionísios”, “o obscuro dos obscuros”. Mas Alirio Oyarzún não era nenhum tolo. Resumia em si o paradisíaco e o infernal de uma cultura. Era um cosmopolita que por teorizar foi matando sua essência. Dizem que para ganhar uma aposta escreveu seu único poema, e não compreendo por que esse poema não figura em todas as antologias da poesia chilena.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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