terça-feira, 13 de julho de 2021

Reconheça os privilégios da branquitude

Quando publiquei O que é lugar de fala?, muitos me perguntaram se pessoas brancas também podem se engajar na luta antirracista. Como explico naquele livro, todo mundo tem lugar de fala, pois todos falamos a partir de um lugar social. Portanto, é muito importante discutir a branquitude.
Pessoas brancas não costumam pensar sobre o que significa pertencer a esse grupo, pois o debate racial é sempre focado na negritude. A ausência ou a baixa incidência de pessoas negras em espaços de poder não costuma causar incômodo ou surpresa em pessoas brancas. Para desnaturalizar isso, todos devem questionar a ausência de pessoas negras em posições de gerência, autores negros em antologias, pensadores negros na bibliografia de cursos universitários, protagonistas negros no audiovisual. E, para além disso, é preciso pensar em ações que mudem essa realidade.
Se a população negra é a maioria no país, quase 56%, o que torna o Brasil a maior nação negra fora da África, a ausência de pessoas negras em espaços de poder deveria ser algo chocante. Portanto, uma pessoa branca deve pensar seu lugar de modo que entenda os privilégios que acompanham a sua cor. Isso é importante para que privilégios não sejam naturalizados ou considerados apenas esforço próprio.
Perceber-se é algo transformador. É o que permite situar nossos privilégios e nossas responsabilidades diante de injustiças contra grupos sociais vulneráveis. Pessoas brancas, por exemplo, devem questionar por que em um restaurante, muitas vezes, as únicas pessoas negras presentes estão servindo mesas, ou se já foram consideradas suspeitas pela polícia por causa de sua cor. Trata-se de refutar a ideia de um sujeito universal — a branquitude também é um traço identitário, porém marcado por privilégios construídos a partir da opressão de outros grupos. Devemos lembrar que este não é um debate individual, mas estrutural: a posição social do privilégio vem marcada pela violência, mesmo que determinado sujeito não seja deliberadamente violento.
Os homens brancos são maioria nos espaços de poder. Esse não é um lugar natural, foi construído a partir de processos de escravização. Alguém pode perguntar: “Mas e no caso de homens brancos pobres ou homossexuais, que não necessariamente possuem todos os privilégios sociais de homens brancos heterossexuais ricos?”. De fato, é sempre importante levar em consideração outras intersecções. Porém, o debate aqui é sobre uma estrutura de poder que confere privilégio racial a determinado grupo, criando mecanismos que perpetuam desigualdades.
Nesse sentido, mulheres brancas são discriminadas por serem mulheres, mas privilegiadas estruturalmente por serem brancas. O mesmo ocorre com homens brancos homossexuais, que são discriminados pela orientação sexual, mas, racialmente falando, fazem parte do grupo hegemônico. Isso de forma alguma exclui as opressões que sofrem, mas o localizam socialmente no lugar da branquitude.
O conceito de lugar de fala discute justamente o locus social, isto é, de que ponto as pessoas partem para pensar e existir no mundo, de acordo com as suas experiências em comum. É isso que permite avaliar quanto determinado grupo—dependendo de seu lugar na sociedade—sofre com obstáculos ou é autorizado e favorecido. Dessa forma, ter consciência da prevalência branca nos espaços de poder permite que as pessoas se responsabilizem e tomem atitudes para combater e transformar o perverso sistema racial que estrutura a sociedade brasileira.
O racismo é uma problemática branca, provoca Grada Kilomba. Até serem homogeneizados pelo processo colonial, os povos negros existiam como etnias, culturas e idiomas diversos—isso até serem tratados como “o negro”. Tal categoria foi criada em um processo de discriminação, que visava ao tratamento de seres humanos como mercadoria. Portanto, o racismo foi inventado pela branquitude, que como criadora deve se responsabilizar por ele. Para além de se entender como privilegiado, o branco deve ter atitudes antirracistas. Não se trata de se sentir culpado por ser branco: a questão é se responsabilizar. Diferente da culpa, que leva à inércia, a responsabilidade leva à ação. Dessa forma, se o primeiro passo é desnaturalizar o olhar condicionado pelo racismo, o segundo é criar espaços, sobretudo em lugares que pessoas negras não costumam acessar.

Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista

Nenhum comentário:

Postar um comentário