quarta-feira, 14 de julho de 2021

O poder da poesia

Foi em Lota, há muitos anos. Dez mil mineiros tinham acorrido ao comício. A zona do carvão, sempre agitada em sua secular pobreza, tinha enchido de mineiros a praça de Lota. Os oradores políticos falaram longamente. Pairava no ar quente do meio-dia um cheiro de carvão e de sal marinho. Muito próximo estava o oceano, sob cujas águas se estendem por mais de dez quilômetros os túneis sombrios em que aqueles homens cavavam o carvão.
Agora escutavam em pleno sol. A tribuna era muito alta e dela eu divisava um mar de chapéus e capacetes de mineiros. Coube a mim falar por último. Quando foi anunciado meu nome e meu poema “Novo canto de amor a Stalingrado” aconteceu algo insólito, uma cerimônia que nunca vou esquecer.
A imensa multidão, assim que escutou meu nome e o título do poema, se descobriu silenciosamente. Descobriu-se porque, depois daquela linguagem categórica e política, ia falar minha poesia, a poesia. Vi, da elevada tribuna, o movimento imenso de chapéus: dez mil mãos que baixavam em uníssono, num marulho indescritível, num golpe de mar silencioso, numa espuma negra de reverência silenciosa.
Meu poema cresceu então e readquiriu como nunca seu tom de luta e de liberação.

Outro fato se passou em minha juventude. Era eu aquele poeta estudantil de capa escura, magro e desnutrido como os poetas desse tempo. Acabava de publicar Crepusculario e pesava menos do que uma pluma negra.
Entrei com meus amigos num cabaré ordinário. Era a época dos tangos e da valentia rufianesca. De repente o baile parou e o tango se quebrou como uma taça estilhaçada contra a parede. No centro da pista gesticulavam e se insultavam mutuamente dois famosos valentões. Quando um avançava para agredir o outro, este retrocedia e com ele recuava a multidão no mesmo compasso, entrincheirando-se atrás das mesas. Aquilo parecia uma dança de duas bestas primitivas em uma clareira da selva primordial.
Sem pensar muito me adiantei e os repreendi apesar de minha fraqueza magricela.
Miseráveis valentões, sujeitos torvos, insetos desprezíveis, deixem em paz as pessoas que vieram aqui para dançar e não para presenciar esta comédia!
Olharam-se surpreendidos como se não acreditassem no que escutavam. O mais baixo, que tinha sido pugilista antes de ser valentão, dirigiu-se para mim a fim de me assassinar. E o teria conseguido se não fosse a aparição repentina de um punho certeiro que deitou por terra o gorila. Era seu contendor que finalmente se decidiu a acabar com ele.
Quanto ao campeão derrotado, arrastavam-no como a um saco. Das mesas nos estendiam garrafas e as bailarinas nos sorriam entusiasmadas. O grandalhão que tinha dado o golpe de misericórdia quis compartilhar justificadamente com o regozijo da vitória mas eu o apostrofei, catoniano:
Retira-te daqui! Tu és da mesma laia!
Meus minutos de glória terminaram pouco depois. Após atravessar um estreito corredor, divisamos uma espécie de montanha com cintura de pantera que obstruía a saída. Era o outro pugilista da malandragem, o vencedor golpeado por minhas palavras, que nos interceptava o caminho em busca de vingança.
Estava te esperando – disse.
Com um leve empurrão me fez desviar até uma porta enquanto meus amigos corriam desconcertados. Fiquei desamparado diante de meu verdugo. Olhei rapidamente o que poderia agarrar para me defender. Nada. Não havia nada. Os pesados tampos de mármore e as cadeiras de ferro eram impossíveis de levantar. Nem uma jarra de flores, nem uma garrafa ou uma mísera bengala esquecida.
Vamos conversar – disse o homem.
Compreendi a inutilidade de qualquer esforço e pensei que queria me examinar antes de me devorar como o tigre diante de um almiscareiro. Percebi que toda a minha defesa estava em não demonstrar o medo que sentia. Devolvi-lhe o empurrão que me dera mas não consegui tirá-lo um milímetro do lugar. Era um muro de pedra.
Subitamente lançou a cabeça para trás e seus olhos de fera mudaram de expressão.
É você o poeta Pablo Neruda? – disse.
Sou sim.
Baixou a cabeça e continuou:
Que desgraçado que eu sou! Estou diante do poeta que tanto admiro e é ele quem me lança na cara o miserável que eu sou!
E continuou lamentando-se com a cabeça entre as mãos:
Sou um rufião e o outro que lutou comigo é um traficante de cocaína. Somos o que há de mais baixo. Mas em minha vida há uma coisa limpa. É minha noiva, o amor de minha noiva. Veja-a, D. Pablito. Olhe seu retrato. Algum dia lhe direi que você o teve entre as mãos. Isso a fará feliz.
Estendeu-me a fotografia de uma moça sorridente.
Ela gosta de mim pelo senhor, D. Pablito, por seus versos que aprendemos de memória.
E sem mais aquela começou a recitar:
– “Do fundo de ti e ajoelhado, um menino triste como eu nos olha...”
Nesse momento a porta se abriu de supetão. Eram meus amigos que voltavam com reforços armados. Vi as cabeças que se ajuntavam atônitas à porta.
Saí lentamente. O homem ficou só sem mudar de atitude, dizendo “por essa vida que arderá em suas veias teriam que matar as minhas mãos”, derrotado pela poesia.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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