Foi em Lota, há muitos anos. Dez mil
mineiros tinham acorrido ao comício. A zona do carvão, sempre
agitada em sua secular pobreza, tinha enchido de mineiros a praça de
Lota. Os oradores políticos falaram longamente. Pairava no ar quente
do meio-dia um cheiro de carvão e de sal marinho. Muito próximo
estava o oceano, sob cujas águas se estendem por mais de dez
quilômetros os túneis sombrios em que aqueles homens cavavam o
carvão.
Agora escutavam em pleno sol. A tribuna
era muito alta e dela eu divisava um mar de chapéus e capacetes de
mineiros. Coube a mim falar por último. Quando foi anunciado meu
nome e meu poema “Novo canto de amor a Stalingrado” aconteceu
algo insólito, uma cerimônia que nunca vou esquecer.
A imensa multidão, assim que escutou meu
nome e o título do poema, se descobriu silenciosamente. Descobriu-se
porque, depois daquela linguagem categórica e política, ia falar
minha poesia, a poesia. Vi, da elevada tribuna, o movimento imenso de
chapéus: dez mil mãos que baixavam em uníssono, num marulho
indescritível, num golpe de mar silencioso, numa espuma negra de
reverência silenciosa.
Meu poema cresceu então e readquiriu
como nunca seu tom de luta e de liberação.
Outro fato se passou em minha juventude.
Era eu aquele poeta estudantil de capa escura, magro e desnutrido
como os poetas desse tempo. Acabava de publicar Crepusculario
e pesava menos do que uma pluma negra.
Entrei com meus amigos num cabaré
ordinário. Era a época dos tangos e da valentia rufianesca. De
repente o baile parou e o tango se quebrou como uma taça estilhaçada
contra a parede. No centro da pista gesticulavam e se insultavam
mutuamente dois famosos valentões. Quando um avançava para agredir
o outro, este retrocedia e com ele recuava a multidão no mesmo
compasso, entrincheirando-se atrás das mesas. Aquilo parecia uma
dança de duas bestas primitivas em uma clareira da selva primordial.
Sem pensar muito me adiantei e os
repreendi apesar de minha fraqueza magricela.
– Miseráveis valentões, sujeitos
torvos, insetos desprezíveis, deixem em paz as pessoas que vieram
aqui para dançar e não para presenciar esta comédia!
Olharam-se surpreendidos como se não
acreditassem no que escutavam. O mais baixo, que tinha sido pugilista
antes de ser valentão, dirigiu-se para mim a fim de me assassinar. E
o teria conseguido se não fosse a aparição repentina de um punho
certeiro que deitou por terra o gorila. Era seu contendor que
finalmente se decidiu a acabar com ele.
Quanto ao campeão derrotado,
arrastavam-no como a um saco. Das mesas nos estendiam garrafas e as
bailarinas nos sorriam entusiasmadas. O grandalhão que tinha dado o
golpe de misericórdia quis compartilhar justificadamente com o
regozijo da vitória mas eu o apostrofei, catoniano:
– Retira-te daqui! Tu és da mesma
laia!
Meus minutos de glória terminaram pouco
depois. Após atravessar um estreito corredor, divisamos uma espécie
de montanha com cintura de pantera que obstruía a saída. Era o
outro pugilista da malandragem, o vencedor golpeado por minhas
palavras, que nos interceptava o caminho em busca de vingança.
– Estava te esperando – disse.
Com um leve empurrão me fez desviar até
uma porta enquanto meus amigos corriam desconcertados. Fiquei
desamparado diante de meu verdugo. Olhei rapidamente o que poderia
agarrar para me defender. Nada. Não havia nada. Os pesados tampos de
mármore e as cadeiras de ferro eram impossíveis de levantar. Nem
uma jarra de flores, nem uma garrafa ou uma mísera bengala
esquecida.
– Vamos conversar – disse o homem.
Compreendi a inutilidade de qualquer
esforço e pensei que queria me examinar antes de me devorar como o
tigre diante de um almiscareiro. Percebi que toda a minha defesa
estava em
não demonstrar o medo que sentia. Devolvi-lhe o empurrão que me
dera mas não consegui tirá-lo um milímetro do lugar. Era um muro
de pedra.
Subitamente lançou a cabeça para trás
e seus olhos de fera mudaram de expressão.
– É você o poeta Pablo Neruda? –
disse.
– Sou sim.
Baixou a cabeça e continuou:
– Que desgraçado que eu sou! Estou
diante do poeta que tanto admiro e é ele quem me lança na cara o
miserável que eu sou!
E continuou lamentando-se com a cabeça
entre as mãos:
– Sou um rufião e o outro que lutou
comigo é um traficante de cocaína. Somos o que há de mais baixo.
Mas em minha vida há uma coisa limpa. É minha noiva, o amor de
minha noiva. Veja-a, D. Pablito. Olhe seu retrato. Algum dia lhe
direi que você o teve entre as mãos. Isso a fará feliz.
Estendeu-me a fotografia de uma moça
sorridente.
– Ela gosta de mim pelo senhor, D.
Pablito, por seus versos que aprendemos de memória.
E sem mais aquela começou a recitar:
– “Do fundo de ti e ajoelhado, um
menino triste como eu nos olha...”
Nesse momento a porta se abriu de
supetão. Eram meus amigos que voltavam com reforços armados. Vi as
cabeças que se ajuntavam atônitas à porta.
Saí lentamente. O homem ficou só sem
mudar de atitude, dizendo “por essa vida que arderá em suas veias
teriam que matar as minhas mãos”, derrotado pela poesia.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi
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