Desanuviou em mim a ideia de que as
coisas existiam alheias a meu desejo. Viver exigia legendar o mundo.
Cabia-me o trabalho exaustivo de atribuir sentidos a tudo. Dar
sentido é tomar posse dos predicados. Trabalho incessante, este de
nomear as coisas. Chamar pelo nome o visível e o invisível é
respirar consciência. Dar nome ao real que mora escondido na
fantasia é clarear o obscuro. Ainda criança eu carregava o peso da
terra, sem estar no bem fundo.
O irmão triturador de vidro, a irmã que
bordava mares, a que deixara o gato órfão, a nascida em todas as
manhãs no globo terrestre aninhavam-se, agora, apenas em minha
memória. Jamais podia pensá-los em alguma paisagem. Restava-me
reinventá-los dispersos, indignados com a vitória amarga do tomate
maduro. Havia, sim, havia lugares que meu compasso aberto não
alcançava. O padre me emprestava sua bicicleta, por eu decorar os
dez mandamentos. Tudo exigia um preço. Eu pedalava pelas ruas
buscando encontrar-me em cada fim de estrada, no depois da última
saudade, na outra margem do rio. Mas também lá eu não estava. A
velocidade fortificava a força do vento que varria meus pensamentos,
provisoriamente.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
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