sexta-feira, 16 de julho de 2021

Dos micróbios ao homem: a vida tem um objetivo?

Primeiro, um esclarecimento: “objetivo”, aqui, não significa viver uma vida com objetivo, cheia de significado. Este é um tema para outra hora. Aqui, examino se a vida na Terra, desde sua origem primordial ao surgimento do Homo sapiens (nós), tem um objetivo e, se tiver, qual seria. O tema gera confusão. Afinal, a vida não é uma entidade com uma agenda. Não podemos afirmar que a vida, como um todo, tem uma espécie de inteligência coletiva, um plano de aonde quer chegar. Isto seria acreditar no que os filósofos chamam de teleologia, que existe um plano final e que os meios (a evolução da vida na Terra) justificam este fim (nós).
Muitos cientistas acreditam nesse “excepcionalismo humano”, alguns até bem conhecidos, como Simon Conway Morris, da Universidade de Cambridge. Mas não há qualquer evidência concreta nesta direção. A vida, em sua definição mais fundamental, é um conjunto de reações químicas complexas que podem tanto extrair energia do ambiente à sua volta como se reproduzir, evoluindo de acordo com o processo de seleção natural. Simplificando, a vida é uma espécie de química faminta, capaz de se duplicar. Esta química vai de relativamente simples (organismos unicelulares) à complexa (lagostas, águias, nós).
Existe, entretanto, algo muito incrível com relação à vida, o fato de que toda a vida na Terra tem a mesma raiz. Como vimos anteriormente, todas as criaturas, das plantas e insetos a pessoas, são descendentes do mesmo progenitor, conhecido como LUCA (do inglês, Last Universal Common Ancestor, último ancestral comum universal), que viveu em torno de 3 bilhões de anos atrás. Todos os seres vivos estão interconectados pela sua história evolucionária. De acordo com a biologia moderna, e conforme Darwin intuiu no seu clássico A origem das espécies, a mãe de todas as criaturas vivas foi uma bactéria.
A questão que surge para muitos, especialmente após sabermos da existência do LUCA, é se a vida tem um objetivo. Por que a vida foi ficando cada vez mais complexa até chegar a nós? O dogma da biologia tradicional vai contra isso. A vida evolve através de mutações aleatórias nos genes das criaturas, sem uma direção específica. Algumas dessas mutações são benéficas, mas a vasta maioria é nociva. De vez em quando, uma mutação leva a uma vantagem seletiva: o mutante é mais rápido, ou mais forte, ou mais esperto, e isto lhe permite viver por mais tempo e se reproduzir mais, deixando uma prole de “mutantinhos” mais poderosos do que seus primos. Eventualmente, após muito tempo, a espécie inteira será diferente de seus ancestrais de gerações passadas.
Obviamente, LUCA é a melhor ilustração do poder das mutações, aliadas ao tempo muito longo. De acordo com o dogma, portanto, a vida não tem um objetivo final, querendo apenas sobreviver. O tempo passa, os organismos se modificam através de mutações e aqueles com maiores chances de sobrevivência são os mais bem-sucedidos. Por outro lado, se a vida tem um objetivo, ela certamente precisa se proteger contra cataclismos naturais que levariam à sua extinção. Por exemplo, os dinossauros estavam aqui por 150 milhões de anos e foram aniquilados pela colisão de um asteroide 65 milhões de anos atrás. De lá para cá, as coisas certamente mudaram; nós entramos na história.
Talvez cientistas não consigam ainda prever exatamente quando um terremoto ou uma erupção vulcânica irá ocorrer, mas estamos chegando lá e já nos protegemos muito bem de variações climáticas. Ao contrário dos dinossauros, podemos até nos proteger de cometas e asteroides, se tivermos tempo suficiente para nos preparar. (Veja meu livro O fim da Terra e do Céu para mais detalhes.) Será que somos nós o objetivo da vida? Para complicar a questão, o dogma da biologia vem sendo contestado ao menos em parte pelo advento da epigenética. A epigenética diz que, no longo código genético de uma criatura, certos genes (pedaços desse código) podem ser ativados ou desativados por circunstâncias diversas, ligadas ao ambiente e à qualidade de vida da criatura, independentes de mutações.
É bom lembrar que os genes carregam instruções para as células produzirem proteínas, moléculas complexas que arquitetam os processos bioquímicos necessários à vida. Portanto, quando certos genes são ativados ou desativados, a produção das proteínas é afetada e, com isso, o organismo também é afetado. Algumas dessas mudanças podem até ser passadas para futuras gerações. No entanto, ao contrário das mutações genéticas, que são permanentes, as modificações epigenéticas duram por apenas algumas gerações.
Mesmo assim, isso significa que existe outro mecanismo que afeta os organismos ao nível genético, e, com isso, como populações vão se adaptando, acelerando o processo evolucionário. Em termos humanos, o que você come, o seu estilo de vida em geral, se você se exercita ou não, suas interações sociais, os estresses emocionais da sua vida podem, potencialmente, impactar sua expressão genética e serem passados para a sua prole. Usei itálicos aqui porque ainda não sabemos muito sobre os mecanismos epigenéticos e, infelizmente, tem muita pseudociência já se aproveitando disso, do tipo “sua mente pode curar seu câncer”. Isso seria genial, sem dúvida, mas infelizmente não parece ser possível reprogramar genes com a mente.
De volta à questão de a vida ter ou não um objetivo, mesmo com a epigenética, devemos concluir que não. Nossa inteligência não é parte de um grande plano, mas, sim, resultado de bilhões de anos de evolução num ambiente complexo e sempre em transformação. O objetivo que encontramos na vida vem a posteriori, resultado da nossa presença neste planeta extremamente raro. Agora que estamos aqui, e somos uma espécie capaz de produzir conhecimento, devemos aceitar nosso papel como expressão rara da vida e repensar nossa relação com as outras criaturas e com o planeta. Sendo um otimista, espero que o objetivo da vida – sua permanência – se transforme no objetivo coletivo da nossa espécie, e que nos tornemos os guardiões da vida e não o seu carrasco.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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