Primeiro, um esclarecimento: “objetivo”,
aqui, não significa viver uma vida com objetivo, cheia de
significado. Este é um tema para outra hora. Aqui, examino se a vida
na Terra, desde sua origem primordial ao surgimento do Homo sapiens
(nós), tem um objetivo e, se tiver, qual seria. O tema gera
confusão. Afinal, a vida não é uma entidade com uma agenda. Não
podemos afirmar que a vida, como um todo, tem uma espécie de
inteligência coletiva, um plano de aonde quer chegar. Isto seria
acreditar no que os filósofos chamam de teleologia, que existe um
plano final e que os meios (a evolução da vida na Terra) justificam
este fim (nós).
Muitos cientistas acreditam nesse
“excepcionalismo humano”, alguns até bem conhecidos, como Simon
Conway Morris, da Universidade de Cambridge. Mas não há qualquer
evidência concreta nesta direção. A vida, em sua definição mais
fundamental, é um conjunto de reações químicas complexas que
podem tanto extrair energia do ambiente à sua volta como se
reproduzir, evoluindo de acordo com o processo de seleção natural.
Simplificando, a vida é uma espécie de química faminta, capaz de
se duplicar. Esta química vai de relativamente simples (organismos
unicelulares) à complexa (lagostas, águias, nós).
Existe, entretanto, algo muito incrível
com relação à vida, o fato de que toda a vida na Terra tem a mesma
raiz. Como vimos anteriormente, todas as criaturas, das plantas e
insetos a pessoas, são descendentes do mesmo progenitor, conhecido
como LUCA (do inglês, Last Universal Common Ancestor, último
ancestral comum universal), que viveu em torno de 3 bilhões de anos
atrás. Todos os seres vivos estão interconectados pela sua história
evolucionária. De acordo com a biologia moderna, e conforme Darwin
intuiu no seu clássico A origem das espécies, a mãe de
todas as criaturas vivas foi uma bactéria.
A questão que surge para muitos,
especialmente após sabermos da existência do LUCA, é se a vida tem
um objetivo. Por que a vida foi ficando cada vez mais complexa até
chegar a nós? O dogma da biologia tradicional vai contra isso. A
vida evolve através de mutações aleatórias nos genes das
criaturas, sem uma direção específica. Algumas dessas mutações
são benéficas, mas a vasta maioria é nociva. De vez em quando, uma
mutação leva a uma vantagem seletiva: o mutante é mais rápido, ou
mais forte, ou mais esperto, e isto lhe permite viver por mais tempo
e se reproduzir mais, deixando uma prole de “mutantinhos” mais
poderosos do que seus primos. Eventualmente, após muito tempo, a
espécie inteira será diferente de seus ancestrais de gerações
passadas.
Obviamente, LUCA é a melhor ilustração
do poder das mutações, aliadas ao tempo muito longo. De acordo com
o dogma, portanto, a vida não tem um objetivo final, querendo apenas
sobreviver. O tempo passa, os organismos se modificam através de
mutações e aqueles com maiores chances de sobrevivência são os
mais bem-sucedidos. Por outro lado, se a vida tem um objetivo, ela
certamente precisa se proteger contra cataclismos naturais que
levariam à sua extinção. Por exemplo, os dinossauros estavam aqui
por 150 milhões de anos e foram aniquilados pela colisão de um
asteroide 65 milhões de anos atrás. De lá para cá, as coisas
certamente mudaram; nós entramos na história.
Talvez cientistas não consigam ainda
prever exatamente quando um terremoto ou uma erupção vulcânica irá
ocorrer, mas estamos chegando lá e já nos protegemos muito bem de
variações climáticas. Ao contrário dos dinossauros, podemos até
nos proteger de cometas e asteroides, se tivermos tempo suficiente
para nos preparar. (Veja meu livro O fim da Terra e do Céu
para mais detalhes.) Será que somos nós o objetivo da vida? Para
complicar a questão, o dogma da biologia vem sendo contestado ao
menos em parte pelo advento da epigenética. A epigenética diz que,
no longo código genético de uma criatura, certos genes (pedaços
desse código) podem ser ativados ou desativados por circunstâncias
diversas, ligadas ao ambiente e à qualidade de vida da criatura,
independentes de mutações.
É bom lembrar que os genes carregam
instruções para as células produzirem proteínas, moléculas
complexas que arquitetam os processos bioquímicos necessários à
vida. Portanto, quando certos genes são ativados ou desativados, a
produção das proteínas é afetada e, com isso, o organismo também
é afetado. Algumas dessas mudanças podem até ser passadas para
futuras gerações. No entanto, ao contrário das mutações
genéticas, que são permanentes, as modificações epigenéticas
duram por apenas algumas gerações.
Mesmo assim, isso significa que existe
outro mecanismo que afeta os organismos ao nível genético, e, com
isso, como populações vão se adaptando, acelerando o processo
evolucionário. Em termos humanos, o que você come, o seu estilo de
vida em geral, se você se exercita ou não, suas interações
sociais, os estresses emocionais da sua vida podem, potencialmente,
impactar sua expressão genética e serem passados para a sua prole.
Usei itálicos aqui porque ainda não sabemos muito sobre os
mecanismos epigenéticos e, infelizmente, tem muita pseudociência já
se aproveitando disso, do tipo “sua mente pode curar seu câncer”.
Isso seria genial, sem dúvida, mas infelizmente não parece ser
possível reprogramar genes com a mente.
De volta à questão de a vida ter ou não
um objetivo, mesmo com a epigenética, devemos concluir que não.
Nossa inteligência não é parte de um grande plano, mas, sim,
resultado de bilhões de anos de evolução num ambiente complexo e
sempre em transformação. O objetivo que encontramos na vida vem a
posteriori, resultado da nossa presença neste planeta extremamente
raro. Agora que estamos aqui, e somos uma espécie capaz de produzir
conhecimento, devemos aceitar nosso papel como expressão rara da
vida e repensar nossa relação com as outras criaturas e com o
planeta. Sendo um otimista, espero que o objetivo da vida – sua
permanência – se transforme no objetivo coletivo da nossa espécie,
e que nos tornemos os guardiões da vida e não o seu carrasco.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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