terça-feira, 1 de junho de 2021

Os espaços

Eu e a galinha. Ela, deitada no ninho, me olhava com seus olhos cor de laranja. Eu, agachado diante dela, a observava. Ela não se mexia. Tinha um ovo para ser botado. Não se mexia talvez porque estava ciente da gravidade do momento. Ou, talvez, porque soubesse que não precisava ter medo de mim. Crianças não matavam galinhas para fazer canja. Só os adultos. Ela tinha se recolhido de suas ciscações e correrias em fugas fingidas do galo. Estava no seu pequeno espaço, o ninho. O ninho, leito redondo feito com palha de milho rasgada, estava dentro de um balaio. Fascinava-me a galinha botando ovo. Fascinava-me aquele pequeno espaço, o ninho. Bachelard dedicou ao ninho catorze páginas do seu livro A poética do espaço.

Descobrir um ninho leva-nos de volta à nossa infância, a uma infância. A infância que deveríamos ter tido. [...] Como compreendo agora a página que Toussel escreveu: “A lembrança do primeiro ninho de pássaros que encontrei completamente sozinho ficou mais profundamente gravada em minha memória do que a do primeiro prêmio de redação que obtive no colégio. Fui imediatamente invadido por uma comoção de prazer indizível que me paralisou durante mais de uma hora o olhar e as pernas”. [O ninho é espaço mínimo,] sonho da proteção mais próxima, da proteção ajustada ao nosso corpo.

Um psicanalista sensível sugeriria que o ninho nos reconduz ao útero. Pois o útero não é um ninho? Pequeno espaço ajustado ao corpo, sem ansiedades. Talvez seja daí que venha o fascínio das crianças pelos pequenos espaços. Os pequenos espaços são espaços de aconchego. O colo. O colo envolve e aperta suavemente. Lembro-me com alegria das brincadeiras na cama, as cobertas transformadas em tenda sustentada pelo dedão do pé. O sonho da casa no alto da árvore, onde os adultos não podem subir. Sim, a terrível intromissão dos adultos que estragam o espaço das crianças! “Não gosto de falar da infância”, escreveu Guimarães Rosa. “É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos... Tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta” (Guimarães Rosa, Jardins e riachinhos, Rio de Janeiro, Salamandra, 1983, p. 71-2). Quarto trancado é ninho.
Na roça havia também essa solidão grande... Não estava longe. Bastava olhar para cima pra ver o mar sem fim. “O mar de Minas não é no mar. O mar de Minas é no céu, prô mundo olhar pra cima e navegar, sem nunca ter um porto onde chegar... ” Minha memória navegou. Me vi menino. Mas não era eu. Era outro. Eu sou aquele que agora se lembra depois de mais de sessenta anos. Mas o menino não se lembrava de nada. Vejo um menino de cinco anos e pés descalços deitado na relva. Goza a felicidade de não haver nenhum adulto por perto. Sem passado, sem futuro, ele é todo presente. Com as mãos entrelaçadas sob a cabeça seus olhos brincam. Seguem o voo dos urubus, pontos negros no céu. Circulam sem bater as asas. Deixam-se ser levados pelos ventos em curvas tranquilas. Como são belos os urubus em voo, ele pensa. Pousados sobre os galhos das árvores são aves feias, desajeitadas. Nas alturas são belas. A beleza dos urubus não está neles. Está no seu voo, que desenha círculos nos céus. Muitos anos mais tarde o menino se lembrará dessa manhã e compreenderá que aquilo que vale para os urubus vale também para as pessoas. As pessoas são belas não pelo seu rosto mas pelos desenhos que fazem com seus gestos. Muito mais altas que os urubus são as nuvens que navegam no céu azul, o mar de Minas. Que seres misteriosos são as nuvens, sempre deixando de ser o que são para serem outras. Também desenham como os urubus. Desenham rostos, coisas, monstros... O menino se pergunta filosoficamente sobre o ser das nuvens. Uma menina de quatro anos, muitos anos depois, filha do então menino, espantada diante do absurdo das coisas, perguntou ao seu pai, menino que crescera: “As coisas não se cansam de serem coisas?”. Filosofa: das nuvens vem a chuva — isso ele sabe. Mas ele já viu chuvas que não são água. Chuvas que são pedras de gelo. As pedras de gelo se amontoam no chão. São frias e se derretem com o calor, transformando-se em água. Então ele pensa que, antes de serem chuvas de água, as nuvens são blocos de gelo. Aquelas formas no céu serão gelo? Se são gelo por que não caem como todas as coisas pesadas? Que poder desconhecido as manterá lá em cima? Mas, e se caírem por causa do seu peso? Se caírem de repente vão fazer um grande desastre aqui embaixo... Aí o seu pensamento pára. Flutua carregado pelos urubus e pelas nuvens. O menino de pés descalços…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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