A disputa mais antiga em filosofia (ao
menos no Ocidente) continua influenciando e confundindo cientistas e
filósofos. Trata-se, em termos pomposos, da batalha entre o Ser e o
Devir. Ou, em termos menos pomposos, se a essência da Natureza é o
que se transforma (Devir) ou o que é imutável (Ser). Os que acham
que esse tipo de debate é irrelevante, coisa para filósofos, e
continuam marchando adiante sem se preocupar com essas coisas estão
desperdiçando uma ótima oportunidade de viver suas vidas de forma
mais completa.
Para entender isso, vale voltar à Grécia
Antiga, onde essas questões começaram a ser discutidas mais de 25
séculos atrás. Em torno de 650 a.C., o filósofo grego Tales achava
que o Universo era como um organismo, pulsando com vida, sempre em
transformação. Para ele, a água, de que tudo vivo precisa, e que
se adapta às circunstâncias mais diversas, capturava essa
característica, que considerava a essência de tudo. Muitos dos que
moram nas cidades, cercados por concreto, carros e luzes artificiais,
perdem essa visão do mundo como algo vivo. Mas basta sair um pouco
da rotina, visitar um parque e olhar em torno, que fica claro que a
Natureza vibra com vida e transformação.
Ao se fechar numa realidade artificial de
cimento e metal, o homem esconde-se de si mesmo, esquecendo-se das
suas origens. Por consequência, sofre o homem, alienado, e sofre o
planeta, esquecido. Quase na mesma época de Tales, Parmênides
respondeu com uma visão de mundo contrária: se você quer a verdade
com V maiúsculo, não perca tempo com transformações, com coisas
efêmeras. Busque o que não se transforma, o que é eterno. Essa sim
é a essência do cosmo, o imutável, que Parmênides chamou de Eon.
Platão, influenciado pelo pensamento de Parmênides, sugeriu que o
mundo que vemos com nossos sentidos não é o mundo real, mas, sim,
uma representação distorcida da realidade.
Apenas no mundo das ideias, das
abstrações racionais, encontramos o verdadeiro, o imutável. E é
lá que o belo existe. (Com isso, fica claro por que, mais tarde, o
cristianismo irá endossar essas ideias, devidamente adaptadas à
imutabilidade de Deus.) Traduzindo para a esfera social, e pedindo
desculpas aos puristas, seria algo assim: o que é mais importante
nas nossas vidas? Ter muitas amizades que vão surgindo e
desaparecendo, ou ter uma amizade significativa que persiste ao longo
dos anos? Com o passar do tempo e o desenvolvimento da ciência
moderna a partir do século XVII, o foco dessa discussão mudou para
uma descrição quantitativa da Natureza, validada através de
observações e experimentos. Mas o questionamento essencial
permanece. Se a ciência é a busca pela verdade sobre o cosmo, que
verdade é essa? As ideias de Tales e Parmênides continuam ecoando
pelos corredores acadêmicos, mesmo que poucos cientistas prestem
atenção nas raízes filosóficas de sua visão de mundo. (O que
leva a muita confusão.)
Dado que muitos fenômenos naturais
exibem padrões de comportamento que se repetem (por exemplo, as
órbitas planetárias ou os níveis de energia dos elétrons nos
átomos), podemos descrevê-los através de modelos matemáticos que
obedecem a certas regras. Essas regras, quando podem ser aplicadas na
descrição de muitos fenômenos, recebem o nome de “leis da
Natureza”. Uma lei famosa é a lei da conservação de energia, que
diz que a quantidade total de energia em qualquer processo natural,
por mais complexo que seja, é a mesma antes e depois. Isso vale
quando chutamos uma bola de futebol, mas também quando um buraco
negro é formado.
Se energia é dissipada devido ao atrito,
basta adicionar essa perda ao total, que permanece constante no
tempo. Essas leis são válidas em qualquer parte do Universo. E
nunca mudam, pelo menos até chegarmos perto do Big Bang, 13,8
bilhões de anos atrás, sobre o que pouco sabemos. Elas são,
efetivamente, a versão moderna do Ser de Parmênides. Alguns,
incluindo o eminente filósofo de Harvard e político brasileiro
Roberto Mangabeira Unger, tentaram desafiar essa imutabilidade das
leis da Natureza: conhecemos pouco da física do Universo primordial,
e é possível que violações tenham ocorrido no passado distante.
Mas nada de concreto foi encontrado até agora: pelo que sabemos, as
leis da Natureza permanecem imutáveis. Por outro lado, olhando em
torno, o que vemos é um Universo em transformação. Do nosso
envelhecimento ao nascer de uma flor ou de uma estrela, das
partículas subatômicas que emergem e desaparecem no vácuo quântico
à própria expansão cósmica, tudo muda, sempre.
Nada é, ou permanece, exatamente igual.
A Natureza está sempre em fluxo. E agora? Onde encontramos a
essência do cosmo? Nas imutáveis leis da física ou nas
transformações materiais? Esta dicotomia me parece ser falsa.
Podemos imaginar as leis da Natureza como sendo o coreógrafo
responsável pela dança da energia e da matéria. O espetáculo, a
realidade física, precisa de ambos. A alternativa seria um cosmo sem
leis, sem estruturas organizadas. Neste Universo, não existiriam
estrelas ou átomos, muito menos pessoas. Uma coreografia sem
dançarinos faz tão pouco sentido quanto dançarinos sem uma
coreografia. Um Universo sem leis naturais faz tão pouco sentido
quanto leis naturais sem matéria. Essa dicotomia é tão falsa
quanto o dualismo entre a mente e o corpo: o que é uma mente sem um
corpo ou um corpo sem uma mente? Está na hora de arquivar este
debate entre Tales e Parmênides e suas muitas reencarnações e
aceitar que precisamos de ambos para fazer sentido o mundo onde
vivemos. Afinal, uma vida com aquela amizade antiga e única, e com
outras mais recentes e passageiras, é uma vida mais vivida.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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