terça-feira, 18 de maio de 2021

Torto Arado / 2

Na escola, sem Bibiana ao meu lado para me ajudar, minha vida se tornou um tormento. Desde o início, minha mãe avisou à dona Lourdes, a nova professora, da minha mudez. Ela foi cuidadosa, no começo, e bastante generosa para me ensinar as tarefas. Àquela altura eu já sabia ler, graças muito mais aos esforços de minha irmã mais velha e minha mãe, do que da professora sem paciência que dava aula na casa de dona Firmina. Para mim era o suficiente. Diferente de Bibiana, que falava em ser professora, eu gostava mesmo era da roça, da cozinha, de fazer azeite e de despolpar o buriti. Não me atraía a matemática, muito menos as letras de dona Lourdes. Não me interessava por suas aulas em que contava a história do Brasil, em que falava da mistura entre índios, negros e brancos, de como éramos felizes, de como nosso país era abençoado. Não aprendi uma linha do Hino Nacional, não me serviria, porque eu mesma não posso cantar. Muitas crianças também não aprenderam, pude perceber, estavam com a cabeça na comida ou na diversão que estavam perdendo na beira do rio, para ouvir aquelas histórias fantasiosas e enfadonhas sobre os heróis bandeirantes, depois os militares, as heranças dos portugueses e outros assuntos que não nos diziam muita coisa.
Meu desinteresse só fazia crescer. Tinha a sensação de que perdia meu tempo naquela sala quente, ouvindo aquela senhora de mãos finas e sem calos, com um perfume forte que parecia incensar a escola nos dias de calor. Olhava para o quadro verde, as letras embaralhadas, bonitas, mas que formavam palavras e frases difíceis que não entravam em minha cabeça, e pensava em meu pai na várzea encontrando coisa nova na terra para se dedicar, ou minha mãe cuidando do quintal, dos bichos, costurando. E as horas modorrentas pareciam custar a passar para que pudesse tomar meu rumo para casa. Não evitava que meu pensamento encontrasse Bibiana naquela sala, talvez interessada na aula, próxima da professora, tentando fazer com que me interessasse também pelas coisas. Minha apatia vinha também de perceber que havia crianças muito mais novas, algumas mais dispostas a aprender, lendo com muitos erros, mas em voz alta, sendo interrompidas a cada duas palavras por dona Lourdes para corrigir a pronúncia. Eu conseguia ler, acompanhava a escrita, conseguia identificar alguns erros nas pronúncias graças ao que havia aprendido antes. Domingas e Zezé frequentavam a escola em outro turno, havia uma diferenciação entre os estágios, talvez a presença deles até me desse algum ânimo. Me perguntava se naquele instante a irmã ausente tinha livros ou enxada nas mãos, se seguia com o sonho de ser professora. Comparava suas ambições às minhas, para concluir que talvez por sermos diferentes naquele entendimento, tivéssemos certo equilíbrio em nossos vínculos.
Um dia inventava uma dor de cabeça, outro dia uma dor de barriga, e aos poucos fui fazendo valer minha vontade de voltar ao trabalho da roça e da casa. Deixei caderno e lápis num canto do quarto e, mesmo percebendo meu pai amuado com o meu desinteresse pela escola, fiz valer meu querer. Se fosse a dor de cabeça o motivo para não ir à escola, logo após o começo da aula o padecimento passava, então me juntava à minha mãe na cozinha para preparar o almoço, ou me arvorava com um balde para a beira d’água para trazer o que precisávamos para aguar o quintal. Minha mãe, depois de muito aborrecimento, já se mostrava conformada, afinal eu já sabia ler e escrever o necessário e fazia rol de feira melhor que ela. Sabia fazer também contas simples. Seu coração ficou quieto. No mais haveria de concordar comigo que meu futuro não poderia ser melhor, no fim das contas eu não poderia dar aula em Água Negra, nem em povoado ou cidade próxima. Não se tinha notícia de professora muda nas redondezas. Em seu íntimo, assentia que eu não poderia ensinar se não saía palavra de minha boca. Que era melhor que continuasse a minha andança por roça, quintal e cozinha, por marimbus, estrada e feira, para que na ausência deles pudesse me virar sozinha.
Poder estar ao lado de meu pai era melhor do que estar na companhia de dona Lourdes, com seu perfume enjoado e suas histórias mentirosas sobre a terra. Ela não sabia por que estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos, se em suas frases e textos só havia histórias de soldado, professor, médico e juiz. Não precisaria ouvir os risinhos das crianças quando repetiam quase ao infinito que eu não falava. Alguns pediam para escancarar minha boca para que pudessem ver o que não tinha dentro.
Com Zeca Chapéu Grande me embrenhava pela mata nos caminhos de ida e de volta, e aprendia sobre as ervas e raízes. Aprendia sobre as nuvens, quando haveria ou não chuva, sobre as mudanças secretas que o céu e a terra viviam. Aprendia que tudo estava em movimento – bem diferente das coisas sem vida que a professora mostrava em suas aulas. Meu pai olhava para mim e dizia “o vento não sopra, ele é a própria viração” e tudo aquilo fazia sentido. “Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida”, ele tentava me ensinar. Atento ao movimento dos animais, dos insetos, das plantas, alumbrava meu horizonte quando me fazia sentir no corpo as lições que a natureza havia lhe dado. Meu pai não tinha letra, nem matemática, mas conhecia as fases da lua. Sabia que na lua cheia se planta quase tudo; que mandioca, banana e frutas gostam de plantio na lua nova; que na lua minguante não se planta nada, só se faz capina e coivara.
Sabia que para um pé crescer forte tinha que se fazer a limpeza todos os dias, para que não surgisse praga. Precisava apurar ao redor do caule de qualquer planta, fazendo montículos de terra. Precisava aguar da mesma forma, para que crescesse forte. Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar.
Como um médico à procura do coração.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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