Na escola, sem Bibiana ao meu lado para
me ajudar, minha vida se tornou um tormento. Desde o início, minha
mãe avisou à dona Lourdes, a nova professora, da minha mudez. Ela
foi cuidadosa, no começo, e bastante generosa para me ensinar as
tarefas. Àquela altura eu já sabia ler, graças muito mais aos
esforços de minha irmã mais velha e minha mãe, do que da
professora sem paciência que dava aula na casa de dona Firmina. Para
mim era o suficiente. Diferente de Bibiana, que falava em ser
professora, eu gostava mesmo era da roça, da cozinha, de fazer
azeite e de despolpar o buriti. Não me atraía a matemática, muito
menos as letras de dona Lourdes. Não me interessava por suas aulas
em que contava a história do Brasil, em que falava da mistura entre
índios, negros e brancos, de como éramos felizes, de como nosso
país era abençoado. Não aprendi uma linha do Hino Nacional, não
me serviria, porque eu mesma não posso cantar. Muitas crianças
também não aprenderam, pude perceber, estavam com a cabeça na
comida ou na diversão que estavam perdendo na beira do rio, para
ouvir aquelas histórias fantasiosas e enfadonhas sobre os heróis
bandeirantes, depois os militares, as heranças dos portugueses e
outros assuntos que não nos diziam muita coisa.
Meu desinteresse só fazia crescer. Tinha
a sensação de que perdia meu tempo naquela sala quente, ouvindo
aquela senhora de mãos finas e sem calos, com um perfume forte que
parecia incensar a escola nos dias de calor. Olhava para o quadro
verde, as letras embaralhadas, bonitas, mas que formavam palavras e
frases difíceis que não entravam em minha cabeça, e pensava em meu
pai na várzea encontrando coisa nova na terra para se dedicar, ou
minha mãe cuidando do quintal, dos bichos, costurando. E as horas
modorrentas pareciam custar a passar para que pudesse tomar meu rumo
para casa. Não evitava que meu pensamento encontrasse Bibiana
naquela sala, talvez interessada na aula, próxima da professora,
tentando fazer com que me interessasse também pelas coisas. Minha
apatia vinha também de perceber que havia crianças muito mais
novas, algumas mais dispostas a aprender, lendo com muitos erros, mas
em voz alta, sendo interrompidas a cada duas palavras por dona
Lourdes para corrigir a pronúncia. Eu conseguia ler, acompanhava a
escrita, conseguia identificar alguns erros nas pronúncias graças
ao que havia aprendido antes. Domingas e Zezé frequentavam a escola
em outro turno, havia uma diferenciação entre os estágios, talvez
a presença deles até me desse algum ânimo. Me perguntava se
naquele instante a irmã ausente tinha livros ou enxada nas mãos, se
seguia com o sonho de ser professora. Comparava suas ambições às
minhas, para concluir que talvez por sermos diferentes naquele
entendimento, tivéssemos certo equilíbrio em nossos vínculos.
Um dia inventava uma dor de cabeça,
outro dia uma dor de barriga, e aos poucos fui fazendo valer minha
vontade de voltar ao trabalho da roça e da casa. Deixei caderno e
lápis num canto do quarto e, mesmo percebendo meu pai amuado com o
meu desinteresse pela escola, fiz valer meu querer. Se fosse a dor de
cabeça o motivo para não ir à escola, logo após o começo da aula
o padecimento passava, então me juntava à minha mãe na cozinha
para preparar o almoço, ou me arvorava com um balde para a beira
d’água para trazer o que precisávamos para aguar o quintal. Minha
mãe, depois de muito aborrecimento, já se mostrava conformada,
afinal eu já sabia ler e escrever o necessário e fazia rol de feira
melhor que ela. Sabia fazer também contas simples. Seu coração
ficou quieto. No mais haveria de concordar comigo que meu futuro não
poderia ser melhor, no fim das contas eu não poderia dar aula em
Água Negra, nem em povoado ou cidade próxima. Não se tinha notícia
de professora muda nas redondezas. Em seu íntimo, assentia que eu
não poderia ensinar se não saía palavra de minha boca. Que era
melhor que continuasse a minha andança por roça, quintal e cozinha,
por marimbus, estrada e feira, para que na ausência deles pudesse me
virar sozinha.
Poder estar ao lado de meu pai era melhor
do que estar na companhia de dona Lourdes, com seu perfume enjoado e
suas histórias mentirosas sobre a terra. Ela não sabia por que
estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos,
se em suas frases e textos só havia histórias de soldado,
professor, médico e juiz. Não precisaria ouvir os risinhos das
crianças quando repetiam quase ao infinito que eu não falava.
Alguns pediam para escancarar minha boca para que pudessem ver o que
não tinha dentro.
Com Zeca Chapéu Grande me embrenhava
pela mata nos caminhos de ida e de volta, e aprendia sobre as ervas e
raízes. Aprendia sobre as nuvens, quando haveria ou não chuva,
sobre as mudanças secretas que o céu e a terra viviam. Aprendia que
tudo estava em movimento – bem diferente das coisas sem vida que a
professora mostrava em suas aulas. Meu pai olhava para mim e dizia “o
vento não sopra, ele é a própria viração” e tudo aquilo fazia
sentido. “Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não
se movimenta, não tem vida”, ele tentava me ensinar. Atento ao
movimento dos animais, dos insetos, das plantas, alumbrava meu
horizonte quando me fazia sentir no corpo as lições que a natureza
havia lhe dado. Meu pai não tinha letra, nem matemática, mas
conhecia as fases da lua. Sabia que na lua cheia se planta quase
tudo; que mandioca, banana e frutas gostam de plantio na lua nova;
que na lua minguante não se planta nada, só se faz capina e
coivara.
Sabia que para um pé crescer forte tinha
que se fazer a limpeza todos os dias, para que não surgisse praga.
Precisava apurar ao redor do caule de qualquer planta, fazendo
montículos de terra. Precisava aguar da mesma forma, para que
crescesse forte. Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se
deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para
decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar.
Como um médico à procura do coração.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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