sexta-feira, 7 de maio de 2021

Torto Arado / 1

Corria entre papiros, cabelos-de-nego e capins-navalha que nasciam na beira dos marimbus, abrindo lanhos profundos em minha pele seca. Não minava sangue. Não minava pus. Do meu corpo só escorria o suor que empapava minhas vestes, que empapava o pano que amarrava meus seios. A canoa de ajoujo deslizava sozinha como uma baronesa até ser engolida pelo Veião, desaparecendo num rodamoinho de água escura como a cor de minha pele. Corria em meio à caatinga antiga de árvores altas, buscando a vereda para casa, quando pedaços da pele de meus braços ficaram enganchados nos espinhos de tucum. Nem dia, nem noite, e a terra assava meus pés com a quentura que emanava. Surgiu um homem bem vestido de pele branca e igual cavalo branco, sorrindo, cerrando a trilha por onde eu corria. Eu tentava escapar por outros rumos, gritava, mas estava tudo cercado. O arame brilhante como a prata ladeava a terra e só restava tucum, mandacaru, palma, jenipapeiro e pau seco. Não podia retornar para casa. Até que vi uma pedra que irradiava luz, luzia feito uma joia preciosa. Pus a mão sobre ela. O que de longe parecia uma pedra era um pedaço de marfim que não se movia do chão, parecia ter o peso do mundo. Com as duas mãos tentei levantar até que o marfim saiu, com o metal polido, puro brilho, a faca de Donana, perdida, que voltava para minhas mãos. A faca que num impulso retirei da boca de Bibiana para repetir o gesto, naquela idade em que queremos ser como os irmãos mais velhos, sem perceber que da boca de minha irmã minava sangue. Sem perceber o perigo do fio de corte da lâmina que produzia um lume violento. O lume que deceparia minha língua. Me encerraria, sem palavras, envergonhada do que tinha feito a mim mesma, como o arame que me cercava naquele campo. Ao retirar o punhal de minha avó do chão seco percebi que sangrava, e um rio vermelho começou a correr pela terra.
Durante anos acordei, no meio da noite pesada, molhada de suor, com esse mesmo sonho, contado de muitas maneiras, mas sempre com o homem bem vestido, a cerca, o punhal de Donana e o sangue que brotava do chão. O único sentimento bom que essas imagens me deixavam era que eu gritava, falava pelos cotovelos, coisa que há muitos anos já não fazia. Na noite em que Bibiana deixou nossa casa, o sonho se repetiu dessa exata forma. E talvez por isso passei a contar a mim mesma dessa maneira. Quando despertei sufocada, percebi que o lugar onde minha irmã dormia estava vazio. Levantei para tomar um copo de água e não a vi em casa. Se tivesse ido ao quintal para alguma necessidade teria deixado a porta aberta. Abri a porta e Fusco, que estava deitado, veio mancando procurar o afago de minhas mãos.
Mas bastou eu voltar até o quarto e procurar pela mala velha e rota de minha avó para entender que Bibiana havia nos deixado. Seus olhos não escondiam a sua intenção quando cheguei de repente, enquanto arrumava suas peças de roupa na mala de couro gasta. É fato que ela planejava uma viagem escondida. Poderia ter feito como ela mesma fez ao me ver com Severo debaixo do umbuzeiro numa noite de jarê. Poderia ter azucrinado o juízo de minha mãe para que lhe devolvesse a surra que levei por conta da mentira que inventou sobre mim e meu primo. Mas já havia passado tanto tempo e eu não queria vê-la chorar. Nem queria sentir que revidava algo que já havia passado. Estava cicatrizado. Não queria que ela tivesse mágoa de mim, como fiquei amargurada pelo que me aconteceu, quando não pude me defender das acusações de que estava beijando Severo. Quando o que fazíamos, eu com doze anos, era admirar os vagalumes da noite, longe dos candeeiros da casa.
O que se seguiu àquela descoberta, que para mim não chegava a ser uma surpresa, foi uma comoção que só havia visto anos antes, quando me mutilei. Ao ver Salu devastada com a atitude de Bibiana, de sair na calada da noite como uma mulher qualquer, me culpei por não ter comunicado à minha mãe, por não tê-la levado por minhas mãos à mala de Donana, às roupas de Bibiana, por não ter exposto o que havia visto dias antes. Depois matutei que, com meu gesto, queria dar uma chance para que minha irmã pensasse sobre o sentido daquilo tudo. Queria, ao poupá-la, dizer que precisava dela ao meu lado, que ela precisava permanecer conosco. Que se os enjoos que ela sentia, a irritação com o calor e a falta de chuva, os olhos injetados de rancor diante de Sutério levando nossas batatas sem que nosso pai fizesse nada para detê-lo, num claro descontrole por conta de sua barriga, eram a razão para querer deixar Água Negra, não precisava fazê-lo. Queria que refletisse mais um pouco antes de tomar qualquer decisão errada. Que nossos pais poderiam ficar aborrecidos no princípio, mas nunca deixariam de acolher a criança. Feito o estrago, não tentariam mais afastá-la de Severo. Ela já era uma mulher, e talvez por isso minha mãe não batesse como em mim. Já não era pequena e não tentaria torcê-la como a um pepino, como havia feito comigo. Duvidei que fosse levar à frente o que vi em seus olhos.
Se seguiu um período de calmaria depois de sua partida. Vi meu pai concentrado no quarto dos santos. Talvez se comunicando com os encantados para ter notícias da filha. Para que entre velas, folhas, incensos e ladainhas pudesse ver o destino de Bibiana e Severo, de quem gostava muito, tratando como filho, porque nele havia uma energia de líder que não via em mais ninguém. Meu pai tentava confortar minha mãe, que se precipitava em tristeza e choro. Meu pai confortou da mesma forma tio Servó e tia Hermelina, desolados com a partida do filho mais velho, que ainda havia levado a prima, menor de idade. Também o vi proibir que se falasse no ocorrido em casa e entre os vizinhos. Não por malquerença, mas porque considerava desonesto falar de qualquer pessoa longe de sua presença. Queria, eu intuía, que continuássemos a bem-querer Bibiana, mesmo tendo ela quebrado a lealdade que regia o universo de nossa casa. Apesar de ser uma liderança entre o povo que vivia em Água Negra, meu pai se negava a ser juiz e acreditava que qualquer pessoa poderia se redimir de seus erros.
Semanas depois chegaram as primeiras nuvens de chuva, e da terra subia um frescor que os trabalhadores chamavam de ventura. Diziam que poderíamos cavar um pouquinho o barro seco para sentir que a umidade iria chegar, para sentir a terra mais fria. Era o sinal de que o tempo de estiagem estava findando. Não tardou muito para as primeiras gotas de chuva caírem do céu, e mesmo com todo desalento em que nossa casa havia afundado com a partida de Bibiana, minha mãe sorriu e colocou os tonéis para encherem de água. Vi as mulheres da fazenda entoarem suas cantigas com mais força pelos caminhos, enquanto levavam suas roupas para lavar no rio que crescia em volume, ou carregando suas enxadas para capinar e fazer a coivara no terreno onde fariam seus plantios. Os homens só puderam se juntar às mulheres depois de limpar o terreno onde plantariam as roças dos donos da fazenda.
A chuva a cada dia caía mais forte e se estendia por mais tempo, e com ela vinham as cores misteriosas do céu, dos animais e da gente que vivia em Água Negra. Francisco Peixoto, o herdeiro mais velho, voltou a aparecer com mais frequência, e Sutério, à sua frente, baixava um pouco a crista, guardando a valentia para sua ausência. Ora seu Francisco nos cumprimentava, ora fingia não nos ver. Na fazenda não havia uma sede onde repousar, só o barracão onde guardava a produção e onde, não podendo ir à cidade, comprávamos mantimentos a preços altos, muito maiores do que na feira. Na fazenda nunca houve sede, escutava os trabalhadores dizerem, porque a família Peixoto tinha outras na região, maiores e mais produtivas que Água Negra, e era em alguma dessas que residiam.
No mesmo tempo, ainda antes do dia de São José, o prefeito inaugurou a escola, que teve a construção – com telhas de cerâmica que nenhuma casa de trabalhador poderia ter – concluída no verão. O prédio recebeu o nome de Antônio Peixoto, pai dos Peixoto. Homem que, diziam, foi proprietário da fazenda, mas nunca havia posto os pés ali. Todos os moradores estiveram presentes à inauguração: as mulheres de lenços na cabeça; os homens de chapéu e enxada na mão; as crianças rindo da novidade, um pequeno prédio de três salas, e sem o tal banheiro que ninguém tinha mesmo. Da família Peixoto se fez presente também a irmã mais velha, que nunca havia visto por ali, uma senhora gorda e muito branca, que não dirigiu seu olhar para nós em nenhum momento. Levava um lenço aos olhos enquanto o prefeito falava. Quando retiraram o papel que cobria a placa com o nome de seu pai falecido, ela quase caiu, num choro convulsivo que fez com que seus irmãos a amparassem para que não desabasse de vez no chão. Nenhuma palavra de agradecimento a meu pai que, na noite em que celebrava o jarê de Santa Bárbara, havia requestado, quase ordenado, o cumprimento da promessa de construção da escola feito à Santa no passado. Mas ele estava lá, em pé, um dos primeiros da audiência, segurando a mão de Domingas, e ao lado de minha mãe, com o rosto satisfeito. Pouco importava, poderia ver em seu semblante a luta que havia travado com as forças da encantada Santa Bárbara para que tivéssemos um destino diferente do seu, para que não fôssemos analfabetos. Meu pai não sabia nem mesmo assinar o nome e fez o que estava ao seu alcance para trazer uma escola para a fazenda, para que aprendêssemos letra e matemática. Muitas vezes o vi tentar convencer algum vizinho que não queria que o filho fosse à escola; até concordava que o filho fosse, mas dizia que menina não precisava aprender nada de estudo. Mesmo contrariando o compadre, conseguia com que seu pedido fosse acatado, grande era a consideração e prestígio que fluíam de sua liderança.
Demorou mais um tempo para que enviassem uma nova professora, substituindo a que dava aula três vezes por semana na apertada sala da casa de dona Firmina. No caminho para a escola, que fazia todas as manhãs, via os umbuzeiros com copas verdejantes, mandacarus floridos, a chuva mais fina que ainda caía mesmo depois do dia de São José. Pensava em Bibiana e Severo, me perguntava se por onde andavam a chuva havia chegado também, se tinham encontrado abrigo em alguma fazenda ou cidade distante. Se os caminhos os haviam levado para a capital.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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