Corria entre papiros, cabelos-de-nego e
capins-navalha que nasciam na beira dos marimbus, abrindo lanhos
profundos em minha pele seca. Não minava sangue. Não minava pus. Do
meu corpo só escorria o suor que empapava minhas vestes, que
empapava o pano que amarrava meus seios. A canoa de ajoujo deslizava
sozinha como uma baronesa até ser engolida pelo Veião,
desaparecendo num rodamoinho de água escura como a cor de minha
pele. Corria em meio à caatinga antiga de árvores altas, buscando a
vereda para casa, quando pedaços da pele de meus braços ficaram
enganchados nos espinhos de tucum. Nem dia, nem noite, e a terra
assava meus pés com a quentura que emanava. Surgiu um homem bem
vestido de pele branca e igual cavalo branco, sorrindo, cerrando a
trilha por onde eu corria. Eu tentava escapar por outros rumos,
gritava, mas estava tudo cercado. O arame brilhante como a prata
ladeava a terra e só restava tucum, mandacaru, palma, jenipapeiro e
pau seco. Não podia retornar para casa. Até que vi uma pedra que
irradiava luz, luzia feito uma joia preciosa. Pus a mão sobre ela. O
que de longe parecia uma pedra era um pedaço de marfim que não se
movia do chão, parecia ter o peso do mundo. Com as duas mãos tentei
levantar até que o marfim saiu, com o metal polido, puro brilho, a
faca de Donana, perdida, que voltava para minhas mãos. A faca que
num impulso retirei da boca de Bibiana para repetir o gesto, naquela
idade em que queremos ser como os irmãos mais velhos, sem perceber
que da boca de minha irmã minava sangue. Sem perceber o perigo do
fio de corte da lâmina que produzia um lume violento. O lume que
deceparia minha língua. Me encerraria, sem palavras, envergonhada do
que tinha feito a mim mesma, como o arame que me cercava naquele
campo. Ao retirar o punhal de minha avó do chão seco percebi que
sangrava, e um rio vermelho começou a correr pela terra.
Durante anos acordei, no meio da noite
pesada, molhada de suor, com esse mesmo sonho, contado de muitas
maneiras, mas sempre com o homem bem vestido, a cerca, o punhal de
Donana e o sangue que brotava do chão. O único sentimento bom que
essas imagens me deixavam era que eu gritava, falava pelos cotovelos,
coisa que há muitos anos já não fazia. Na noite em que Bibiana
deixou nossa casa, o sonho se repetiu dessa exata forma. E talvez por
isso passei a contar a mim mesma dessa maneira. Quando despertei
sufocada, percebi que o lugar onde minha irmã dormia estava vazio.
Levantei para tomar um copo de água e não a vi em casa. Se tivesse
ido ao quintal para alguma necessidade teria deixado a porta aberta.
Abri a porta e Fusco, que estava deitado, veio mancando
procurar o afago de minhas mãos.
Mas bastou eu voltar até o quarto e
procurar pela mala velha e rota de minha avó para entender que
Bibiana havia nos deixado. Seus olhos não escondiam a sua intenção
quando cheguei de repente, enquanto arrumava suas peças de roupa na
mala de couro gasta. É fato que ela planejava uma viagem escondida.
Poderia ter feito como ela mesma fez ao me ver com Severo debaixo do
umbuzeiro numa noite de jarê. Poderia ter azucrinado o juízo de
minha mãe para que lhe devolvesse a surra que levei por conta da
mentira que inventou sobre mim e meu primo. Mas já havia passado
tanto tempo e eu não queria vê-la chorar. Nem queria sentir que
revidava algo que já havia passado. Estava cicatrizado. Não queria
que ela tivesse mágoa de mim, como fiquei amargurada pelo que me
aconteceu, quando não pude me defender das acusações de que estava
beijando Severo. Quando o que fazíamos, eu com doze anos, era
admirar os vagalumes da noite, longe dos candeeiros da casa.
O que se seguiu àquela descoberta, que
para mim não chegava a ser uma surpresa, foi uma comoção que só
havia visto anos antes, quando me mutilei. Ao ver Salu devastada com
a atitude de Bibiana, de sair na calada da noite como uma mulher
qualquer, me culpei por não ter comunicado à minha mãe, por não
tê-la levado por minhas mãos à mala de Donana, às roupas de
Bibiana, por não ter exposto o que havia visto dias antes. Depois
matutei que, com meu gesto, queria dar uma chance para que minha irmã
pensasse sobre o sentido daquilo tudo. Queria, ao poupá-la, dizer
que precisava dela ao meu lado, que ela precisava permanecer conosco.
Que se os enjoos que ela sentia, a irritação com o calor e a falta
de chuva, os olhos injetados de rancor diante de Sutério levando
nossas batatas sem que nosso pai fizesse nada para detê-lo, num
claro descontrole por conta de sua barriga, eram a razão para querer
deixar Água Negra, não precisava fazê-lo. Queria que refletisse
mais um pouco antes de tomar qualquer decisão errada. Que nossos
pais poderiam ficar aborrecidos no princípio, mas nunca deixariam de
acolher a criança. Feito o estrago, não tentariam mais afastá-la
de Severo. Ela já era uma mulher, e talvez por isso minha mãe não
batesse como em mim. Já não era pequena e não tentaria torcê-la
como a um pepino, como havia feito comigo. Duvidei que fosse levar à
frente o que vi em seus olhos.
Se seguiu um período de calmaria depois
de sua partida. Vi meu pai concentrado no quarto dos santos. Talvez
se comunicando com os encantados para ter notícias da filha. Para
que entre velas, folhas, incensos e ladainhas pudesse ver o destino
de Bibiana e Severo, de quem gostava muito, tratando como filho,
porque nele havia uma energia de líder que não via em mais ninguém.
Meu pai tentava confortar minha mãe, que se precipitava em tristeza
e choro. Meu pai confortou da mesma forma tio Servó e tia Hermelina,
desolados com a partida do filho mais velho, que ainda havia levado a
prima, menor de idade. Também o vi proibir que se falasse no
ocorrido em casa e entre os vizinhos. Não por malquerença, mas
porque considerava desonesto falar de qualquer pessoa longe de sua
presença. Queria, eu intuía, que continuássemos a bem-querer
Bibiana, mesmo tendo ela quebrado a lealdade que regia o universo de
nossa casa. Apesar de ser uma liderança entre o povo que vivia em
Água Negra, meu pai se negava a ser juiz e acreditava que qualquer
pessoa poderia se redimir de seus erros.
Semanas depois chegaram as primeiras
nuvens de chuva, e da terra subia um frescor que os trabalhadores
chamavam de ventura. Diziam que poderíamos cavar um pouquinho o
barro seco para sentir que a umidade iria chegar, para sentir a terra
mais fria. Era o sinal de que o tempo de estiagem estava findando.
Não tardou muito para as primeiras gotas de chuva caírem do céu, e
mesmo com todo desalento em que nossa casa havia afundado com a
partida de Bibiana, minha mãe sorriu e colocou os tonéis para
encherem de água. Vi as mulheres da fazenda entoarem suas cantigas
com mais força pelos caminhos, enquanto levavam suas roupas para
lavar no rio que crescia em volume, ou carregando suas enxadas para
capinar e fazer a coivara no terreno onde fariam seus plantios. Os
homens só puderam se juntar às mulheres depois de limpar o terreno
onde plantariam as roças dos donos da fazenda.
A chuva a cada dia caía mais forte e se
estendia por mais tempo, e com ela vinham as cores misteriosas do
céu, dos animais e da gente que vivia em Água Negra. Francisco
Peixoto, o herdeiro mais velho, voltou a aparecer com mais
frequência, e Sutério, à sua frente, baixava um pouco a crista,
guardando a valentia para sua ausência. Ora seu Francisco nos
cumprimentava, ora fingia não nos ver. Na fazenda não havia uma
sede onde repousar, só o barracão onde guardava a produção e
onde, não podendo ir à cidade, comprávamos mantimentos a preços
altos, muito maiores do que na feira. Na fazenda nunca houve sede,
escutava os trabalhadores dizerem, porque a família Peixoto tinha
outras na região, maiores e mais produtivas que Água Negra, e era
em alguma dessas que residiam.
No mesmo tempo, ainda antes do dia de São
José, o prefeito inaugurou a escola, que teve a construção – com
telhas de cerâmica que nenhuma casa de trabalhador poderia ter –
concluída no verão. O prédio recebeu o nome de Antônio Peixoto,
pai dos Peixoto. Homem que, diziam, foi proprietário da fazenda, mas
nunca havia posto os pés ali. Todos os moradores estiveram presentes
à inauguração: as mulheres de lenços na cabeça; os homens de
chapéu e enxada na mão; as crianças rindo da novidade, um pequeno
prédio de três salas, e sem o tal banheiro que ninguém tinha
mesmo. Da família Peixoto se fez presente também a irmã mais
velha, que nunca havia visto por ali, uma senhora gorda e muito
branca, que não dirigiu seu olhar para nós em nenhum momento.
Levava um lenço aos olhos enquanto o prefeito falava. Quando
retiraram o papel que cobria a placa com o nome de seu pai falecido,
ela quase caiu, num choro convulsivo que fez com que seus irmãos a
amparassem para que não desabasse de vez no chão. Nenhuma palavra
de agradecimento a meu pai que, na noite em que celebrava o jarê de
Santa Bárbara, havia requestado, quase ordenado, o cumprimento da
promessa de construção da escola feito à Santa no passado. Mas ele
estava lá, em pé, um dos primeiros da audiência, segurando a mão
de Domingas, e ao lado de minha mãe, com o rosto satisfeito. Pouco
importava, poderia ver em seu semblante a luta que havia travado com
as forças da encantada Santa Bárbara para que tivéssemos um
destino diferente do seu, para que não fôssemos analfabetos. Meu
pai não sabia nem mesmo assinar o nome e fez o que estava ao seu
alcance para trazer uma escola para a fazenda, para que aprendêssemos
letra e matemática. Muitas vezes o vi tentar convencer algum vizinho
que não queria que o filho fosse à escola; até concordava que o
filho fosse, mas dizia que menina não precisava aprender nada de
estudo. Mesmo contrariando o compadre, conseguia com que seu pedido
fosse acatado, grande era a consideração e prestígio que fluíam
de sua liderança.
Demorou mais um tempo para que enviassem
uma nova professora, substituindo a que dava aula três vezes por
semana na apertada sala da casa de dona Firmina. No caminho para a
escola, que fazia todas as manhãs, via os umbuzeiros com copas
verdejantes, mandacarus floridos, a chuva mais fina que ainda caía
mesmo depois do dia de São José. Pensava em Bibiana e Severo, me
perguntava se por onde andavam a chuva havia chegado também, se
tinham encontrado abrigo em alguma fazenda ou cidade distante. Se os
caminhos os haviam levado para a capital.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
Nenhum comentário:
Postar um comentário