domingo, 23 de maio de 2021

Receita

— “Tonerre de Dieu!”
Blasfêmia? Não era blasfêmia. Pronunciada com ênfase, que carregava no “eeerre” mas excluía a ideia de desafio à divindade, a exclamação tinha caráter informativo. Do meu canto, no bar, prestando ouvidos à roda movimentada, aprendi a receita de um drinque.
Tonerre de Dieu é assim — explicou o que sabia das coisas. — Dois pontos: um quarto de uísque, um quarto de gim, um quarto de conhaque, um oitavo de vodca, um oitavo de absinto.
E caninha?
Caninha pra quê?
Não bota um quarto de caninha pra reforçar a pauta?
O técnico olhou-o com desprezo. Então a pauta não estava completa e perfeita? Precisava de caninha, se aquilo já dava de sobra para derrubar um herói de Homero ou de Grande sertão: veredas? Mania essa de encaixar coisas onde não tem lugar para elas!
Mas o opinante não se conformava. Caninha sim. Um quarto de caninha era absolutamente imprescindível para conferir largo espectro à composição, cujo mérito ele não discutia, a coisa deve ser legal, não digo que não, mas tenha paciência, por que não incluir o quantum satis de caninha num elenco assim prestigioso?
Você quer que eu modifique a fórmula internacional, devidamente estudada pelos peritos e testada por gente de gabarito? É isso que você quer?
Fórmula internacional. Ótimo. Você me deu o argumento em favor da caninha. Justamente por ser internacional, por que não incluir o Brasil nessa jogada?
É uma reivindicação nacionalista?
É e não é. Se o Brasil entra, só podemos nos regozijar. Ou você é dos que não acreditam na grandeza da pátria, expressa de múltiplas maneiras? Mas eu não estou propondo como patriota, eu falo de um ponto de vista estético. Em nome da divina proporção. São cinco elementos, não são? Que figuram na receita. Bota mais um, fica equilibrado. O mesmo peso, a correlação de forças…
Composição primária, essa que você sugere. Três de cada lado? Já era, amizade. Diagramação, hoje, é uma arte que joga com blocos irregulares. E é assim que deve ser diagramado o tonerre de Dieu.
Se o negócio é esse, então tira o absinto e bota caninha. Continuam cinco, e o conjunto ganha em representatividade.
Tirar o absinto?! Não diga besteira. Por que tonerre eu vou tirar o absinto?!
Absinto é veneno. Faz um mal danado à gente.
Pelo contrário, sua zebra. Absinto é o que há de mais estomacal. Veja os tratados.
Pois sim. Produz exacerbação dolorosa das sensações táteis.
Absinto é tônico. Não sou eu quem diz. É a medicina.
Acaba produzindo insensibilidade total. Também é a medicina que diz.
Absinto é antiácido!
Vê lá se eu acredito.
É febrífugo!
Que mais?
Vermífugo!
Só?
Absinto é um santo remédio! Até — mas isto só interessa às damas — é emenagogo.
Absinto pode ser tudo isso que você falou, e mais alguma coisa, no papel, não na garrafa. O que eu sei, e sempre me preveni contra ele por causa disto, é que absinto, ouviu? destrói a potência sexual.
O da receita estacou:
Você tem certeza disto?
Absoluta.
Pois eu não acredito. E mantenho a fórmula. Intocável. Sem corrupção. Sem caninha.
Bota a caninha, bota…
Nunca!
Um terceiro, meio bêbado, deu uma de mediador:
Atende a ele, Fernando. Só que em lugar de caninha, bota caipirinha nessa tal de trovoada de Deus.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

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