A tragédia do menino é ter nascido no
lado errado da cidade. No alto do Morro da Polícia, em um barraco
encarapitado sobre uma ironia. Suspenso sobre um cartão-postal de
Porto Alegre, sobre a visão do Guaíba escavando a capital como um
Michelangelo. O drama do menino é que nasceu duas vezes. Nos
primeiros 12 anos descia a cidade vertical aos trambolhões de
criança, resvalando pelos barrancos, rindo das pedras. Espantando a
fome que assombrava a família com aquela inocência que protege a
infância. Suspirando por um videogame que jamais chegaria no Natal,
mas mesmo assim sonhando como só os meninos são capazes. Numa das
incursões à planície, aconteceu. Nem viu o carro, não viu mais
nada. Despertou cinco meses depois. Acordou para o horror. Tinha as
pernas retorcidas, as mãos em garras. O menino renasceu. Como
prisioneiro.
Leandro Siqueira dos Santos nunca havia
reparado que nascera numa cidade partida. Perdeu a inocência no
instante da descoberta. Quando os doutores disseram que nada mais
poderiam fazer por ele, o pai arranjou uma porta velha, bichada, e
sobre ela deitou o filho. Com a ajuda dos parentes, dos vizinhos, do
povo de cima, carregou-o até o alto de seu destino. Pela primeira
vez o menino decifrou o precipício de sua vida. Pela primeira vez
sentiu medo do barranco, das pedras, das cicatrizes escalavradas na
terra. O menino percebeu naquele exato momento que havia nascido com
todas as pontes dinamitadas. Quando compreendeu, começou a
envelhecer. Até a voz mudou.
O menino é desde então um prisioneiro
no alto da torre da cidade. Suas pernas eram as únicas asas que
tinha para voar sobre o fosso entre dois mundos. Tão perto do céu,
estava no inferno. Para os meninos de pernas assassinadas do alto, de
nada serve uma cadeira de rodas. Quem tem os dois pés precisa de
outros dois. Nos dias de chuvarada só se caminha como bicho. Nos
dias de tempestade o morro vira um vagalhão. É um oceano escuro que
despenca arrastando pedras, plantas, bichos. Carregando gente,
submergindo tudo em lama. A cidade do alto é um lugar onde para ir e
vir é preciso andar de quatro.
Não foi uma fatalidade que encarcerou o
menino. Foi o lado errado. Quando há quase dois anos mergulhou no
mundo dos semimortos, os médicos garantiram que só um milagre o
salvaria. Ao menino que sofreu traumatismo craniano estava reservado
o futuro das plantas. Só a família acreditou na ressurreição. A
mãe abandonou o emprego numa firma de limpeza e postou-se dia e
noite ao lado do filho. Tanto brigou, a dor era tanta, que perdeu o
bebê que trazia no ventre. Mas como o menino não fazia sentido, e
quem da cidade do alto ousaria reclamar da planície, esqueceram-se
dele.
Quando se mergulha no coma, o corpo
dorme. Os membros, as articulações desmaiam como se perdessem a
vida. Para que não se cristalizem no lugar errado, é preciso que um
fisioterapeuta movimente os pés, as mãos, dia após dia. Não
fizeram com o menino do alto. Selaram seu destino com a displicência
com que a planície trata a cidade de cima. Não foi o acidente que
roubou a liberdade do menino. Não foi o traumatismo craniano que
retorceu seus pés. Foi crime.
Jamais passou pela cabeça do pai, da
mãe, gritar a infâmia infligida ao menino. Acontece com os do alto.
Arrancam sua voz ao nascer. Desculpam-se por existir. Cravam as unhas
em silencioso desespero a uma vida que escorre pelos dedos. Foi assim
com o menino. O pai pedreiro arranjou um cano velho, dobrou em forma
de triângulo, amarrou em uma borracha de soro e inventou um jeito de
o filho fazer fisioterapia. Grudou o pedaço de um cano de PVC junto
à cama, cortou uma garrafa de plástico em forma de funil e criou
uma maneira de o filho urinar com dignidade. O menino tanta força
fez, tanto se agarrou ao triângulo de cano, que venceu. Abriu a
garra da mão. Desenhou um guri do morro jogando futebol.
Todo o esforço do menino, porém, não
era suficiente para voar sobre o abismo da cidade. Ficou mais de um
ano sem ver o sol. A família conseguiu uma televisão das pequenas e
uma poltrona esburacada. A vida do menino se alternou entre a cama e
o sofá de sua cela sem janelas. A vida se resumiu à tela da TV.
Tudo o que restou de sua vida de menino foi encarcerado numa caixinha
de madeira ao lado do colchão. Bonecos de super-heróis de desenho
animado, uma revistinha dos Cavaleiros do Zodíaco, uma carteira com
o desenho da Mônica e do Cebolinha. E preciosas figurinhas de mulher
pelada.
Há menos de um mês aconteceu o que
raramente acontece. A enfermeira do posto de saúde descobriu o
menino. Horrorizou-se com a indecência cometida, com o tanto que lhe
roubaram. Aliou-se a ele. Uma luta invisível é travada agora duas
vezes por semana. O pai levanta o menino e o ajeita numa cadeira
velha, com um pedaço de pau pregado de cada lado. Faz isso com o
esforço de um Hércules subnutrido, movido por um amor poderoso. O
menino é grande, não porque bem alimentado, mas porque mesmo com
tanta fome engorda pela ausência de movimento. O pai pega uma cinta
velha e amarra o filho. Agarra a parte da frente, um primo levanta a
de trás. E começam a descida da cidade vertical.
Quando o pai raquítico carrega o filho
de pernas mortas pela escarpa de sua tragédia, o morro para e se
cala. Alpinistas da miséria, um passo em falso pode custar a vida.
Embaixo, a enfermeira espera. Ou o vizinho. Como não há ambulância
para levá-lo à fisioterapia, um e outro se alternam com seus
próprios carros. A cada vez o menino vai com o coração
descompassado, a cada vez que desce sonha que subirá com as próprias
pernas.
– Eu fecho os olhos e me vejo correndo
pelo morro. Penso que vai acontecer, mas não acontece.
É uma luta grande demais para um menino
que nasceu no lado errado da cidade. Tudo o que conseguiu é pouco.
Ainda são breves as escadarias. Enquanto acreditar no improvável há
uma chance. Enquanto suspirar por um videogame ainda resta nele algo
de menino. Por isso o povo se cala quando ele passa. Porque é só um
menino de pernas assassinadas. E sonha em construir uma ponte entre o
morro onde nasceu e a planície onde precisa chegar. É só um menino
de pernas mortas. E não desistiu de mudar o mundo.
Eliane Brum, in A vida que ninguém vê
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