Hindu
É verdade que antigamente os japoneses
não sabiam cozinhar, que haviam entregue seu reino ao grande lama,
que o grande lama decidia soberanamente do que devíeis comer e beber
e de tempos em tempos vos enviava um pequeno lama a fim de cobrar
tributos, pagando-vos com um sinal de proteção feito com os dois
primeiros dedos e o polegar?
Japonês
Ai! Nada mais verdadeiro. Todos os cargos
de canusi – os grandes cozinheiros da nossa ilha – conferia-os o
lama, e não certamente por amor de Deus. Além disso todas as
famílias seculares pagavam uma onça de prata por ano a esse grande
cozinheiro do Tibete. Em paga dava-nos minguados pratos de horrível
paladar chamados sobejos. E quando lhe dava na veneta alguma nova
fantasia, como declarar guerra aos povos do Tangate, escorchava-nos
com subsídios suplementares. Muitas vezes nos queixamos, porém
baldamente, quando não nos fazia pagar mais ainda. Por fim o amor,
que tudo resolve maravilhosamente, libertou-nos dessa servidão. Um
de nossos imperadores desaveio-se com o grande lama por causa. de uma
mulher. Mas devo confessar que quem mais nos valeram nessa questão
foram os nossos canusi, também chamados paiscospie. A eles devemos a
libertação.
Eis o que se deu.
O grande lama tinha uma mania engraçada:
julgava sempre ter razão. Uma vez ou outra, pelo menos, queriam os
nossos canusi tê-la também. O grande lama achou absurda tamanha
pretensão. Nossos canusi não arredaram pé e romperam
definitivamente com ele.
Hindu
E de então em diante vivestes sem dúvida
felizes e tranquilos?
Japonês
Não inteiramente. Fomos perseguidos,
dilacerados, devorados durante perto de dois séculos. Em vão
pleiteavam nossos canusi ter razão. Somente há cem anos são
razoáveis. Também, desde então podemos orgulhosamente
considerar-nos uma das nações mais felizes da terra.
Hindu
Como podeis ser felizes se – a crer no
que me disseram – vosso império se acha dilacerado por doze
facções de cozinha? No mínimo tereis doze guerras civis por ano.
Japonês
Por que? Será que por termos doze chefes
de cozinha, cada qual com uma receita diferente, deveremos matar-nos
em vez de jantar? Pelo contrário, comeremos todos às mil
maravilhas, cada um do cozinheiro que mais lhe agradar.
Hindu
De fato gostos não se devem discutir. A
história, porém, é que ninguém se compenetra disso. Discutem, e
da discussão às do cabo é um passo.
Japonês
Depois de muito discutirmos, vendo que
com isso só tínhamos que perder, acabamos optando tolerar-nos
mutuamente. Era, não há dúvida, o melhor partido que nos restava
tomar.
Hindu
Poderíeis dizer-me quais são os chefes
de cozinha que partilham a vossa nação na arte de beber e comer?
Japonês
Primeiramente há os breuseh, que em caso
algum vos dariam morcela ou lardo. Preconizam as fontes puras da
cozinha do tempo do onça. Prefeririam morrer a mordiscar um frango.
Quanto ao mais, exímios calculadores, e fosse o caso de dividir uma
onça de prata entre eles e os onze outros cozinheiros, açambarcariam
logo a metade, deixando o resto para os que melhor soubessem contar.
Hindu
Presumo não costumais cear com gente tão
esdrúxula?
Japonês
Claro. Em seguida vêm os pispatas, que
em determinados dias da semana e em boa parte do ano prefeririam cem
vezes comer rodelas de rodovalhos, trutas, linguados, salmões,
esturjões, a saborear uma fritada de vitela que lhes ficaria por um
nada.
Quanto a nós outros canusi, somos
devotos apreciadores de carne de vaca e de certa pastelaria que em
japonês se diz pudim. Toda gente convém em que os nossos
cozinheiros sejam muito mais hábeis que os dos pispatas. Ninguém
melhor que nós sabe preparar o garum dos romanos, as cebolas do
antigo Egito, a pasta de gafanhoto dos primeiros árabes, a carne de
cavalo dos tártaros. Sempre há o que aprender nos livros dos
canusi, comumente chamados paiscospie.
Escuso-me de falar dos que comem a
Teluro, assim como dos adeptos do regime de Vicalno, dos batistandos
e que tais. Os quekars, porém, merecem atenção particular. São os
únicos convivas que nunca vi se emborracharem nem praguejarem.
Dificílimos de enganar, também nunca enganam ninguém. Parece que a
lei que manda amar o próximo como a si mesmo foi feita especialmente
para eles. Porque, verdade se diga, como pode um japonês dizer amar
o próximo como a si próprio se por uma bagatela mete-lhe uma bala
de chumbo na cabeça ou decapita-o com um cris de quatro dedos de
largo? Quando ele próprio vive em constante risco de ser degolado ou
engolir balas de chumbo? Com mais propriedade se dirá que ele odeia
o próximo como a si mesmo. Os quekars nunca tiveram desses furores.
Dizem eles serem os homens efêmeros vasos de argila e que não vale
a pena se despedaçarem deliberadamente uns contra os outros.
Confesso que se não fosse canusi não me
desagradaria ser quekar. Força é reconhecer que não há meio de
brigar com cozinheiros tão pacíficos. Há outros, em número
incontável, a que chamamos diestas. Dão os diestas de comer a toda
gente indiferentemente e em sua casa sois livre de comer o que vos
der na língua - recheado, lardeado, sem recheio, sem lardo, com
ovos, com óleo; perdiz, salmão, vinho palhete, vinho tinto, tudo
lhes é indiferente. Contanto que façais alguma oração a Deus
antes ou após o jantar, ou simplesmente antes do almoço, e sejais
honrado, de bom grado rirão convosco à custa do grande lama, de
Vicalno, de Memnão e o mais que segue. Felizmente reconhecem que
nossos canusi são doutíssimos em matéria culinária, e sobretudo
nunca falam em cercear nossas rendas. Assim, vivemos na mais edênica
harmonia.
Hindu
Mas a final deve haver uma cozinha
predominante, a cozinha do rei.
Japonês
Confesso-o. Mas naturalmente depois de
seus gordos banquetes o rei está derretendo de bom humor e não põe
embargos à digestão de ninguém.
Hindu
E se algum cabeça dura encasquetar de
comer no nariz do rei salsichas que lhe repugnem? Se se reunirem
armados de grelhas quatro ou cinco mil desses indivíduos para cozer
suas salsichas? Se insultarem as pessoas avessas e salsichas?
Japonês
Nesse caso será preciso puni-los como
bêbedos que perturbam o repouso dos cidadãos. Previmos o perigo. Só
os que comem à real são contemplados com as dignidades do estado.
Todos os outros podem comer como lhes ditar a fantasia, porém são
excluídos dos cargos. Soberanamente interditos e punidos sem
remissão são os tumultos à mesa. Atalha-se cuidadosamente toda
discussão, consoante o preceito do grande cozinheiro japonês Sufi
Raho Cus Flac, que escreveu na língua sagrada:
Natis in usum laetitae scyphis
pugnare Thracum est…
O que quer dizer: O jantar foi feito para
gáudio recatado e mundo, e não se devem atirar copos à cabeça.
Com essas máximas vivemos felizmente em
nossa terra. A liberdade individual roborou-se sob os nossos
tecosema. Cresce nossa riqueza. Possuímos duzentos juncos de linha,
e constituímos o terror dos nossos vizinhos.
Hindu
Por que motivo então o bom versificador
Recina, filho do poeta indiano do mesmo nome, tão delicado, tão
exato, tão harmonioso, tão eloquente, disse em uma obra didática
rimada intitulada A Graça (não As Graças):
O Japão, onde brilharam tantas luzes,
hoje é um triste acervo de loucas
visões – ?
Japonês
O próprio Recina de que me falais é um
grande visionário. Ignorará esse mísero hindu que fomos nós quem
lhe ensinamos o que é a luz? Que se na Índia conhecem a rota dos
planetas, a nós o devem? Que fomos nós quem ensinamos aos homens as
leis primordiais da natureza e o cálculo do infinito. Que, se é
preciso descer a coisas mais triviais, conosco aprenderam os hindus a
construir juncos segundo proporções matemáticas? Que nos devem até
os borzeguins chamados meias do ofício com que cobrem as pernas?
Seria possível que tendo inventado tantas coisas admiráveis ou
úteis não fôssemos nós mais que loucos, e que um homem que
escreveu em versos os desvairos de outrem fosse o único sábio?
Deixe-nos com a nossa cozinha, e se quiser que faça versos sobre
assuntos mais poéticos.
Hindu
Que quereis. Ele está intoxicado dos
preconceitos de sua terra, de seu partido e dos seus próprios.
Japonês
Arre! Quanto preconceito!
Voltaire, in Dicionário filosófico
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