A ideia

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!

Augusto dos Anjos

A solução

O sr. Lobo encontrou o sr. Cordeiro numa reunião do Rotary e se O queixou de que a fábrica do sr. Cordeiro estava poluindo o rio que passava pelas terras do sr. Lobo, matando os peixes, espantando os pássaros e, ainda por cima, cheirando mal. O sr. Cordeiro argumentou que, em primeiro lugar, a fábrica não era sua, era do seu pai, e, em segundo lugar, não poderia fechá-la, pois isto agravaria o problema do desemprego na região, e o sr. Lobo certamente não ia querer bandos de desempregados nas suas terras, pescando seu peixe, matando seus pássaros para assar e comer e ainda por cima cheirando mal. Instale equipamento antipoluente, insistiu o sr. Lobo. Ora, meu caro, retrucou o sr. Cordeiro, isso custa dinheiro, e para onde iria o meu lucro? Você certamente não é contra o lucro, sr. Lobo, disse o sr. Cordeiro, preocupado, examinando o sr. Lobo atrás de algum sinal de socialismo latente. Não, não, disse o sr. Lobo, mas isto não pode continuar.
É uma agressão à Natureza e, o que é mais grave, à minha Natureza. Se ainda fosse à Natureza do vizinho... E se eu não parar?, perguntou o sr. Cordeiro. Então, respondeu o sr. Lobo, mastigando um salgadinho com seus caninos reluzentes, eu serei obrigado a devorá-lo, meu caro. Ao que o sr. Cordeiro retrucou que havia uma solução. Por que o senhor não entra de sócio na fábrica Cordeiro e Filho? Ótimo, disse o sr. Lobo. E desse dia em diante não houve mais poluição no rio que passava pelas terras do sr. Lobo.
Ou, pelo menos, o sr. Lobo nunca mais se queixou.

Luís Fernando Veríssimo, in O santinho

Mistérios de um sono

Estou dormindo. E embora pareça contradição, suavemente de repente o prazer de estar dormindo me acorda num sobressalto também suave. Estou acordada e ainda sinto o gosto daquela zona rural onde subsolarmente eu espalhava de minhas raízes os tentáculos de um sonho.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Filha da PUC

Não faço a menor ideia de quando foi o primeiro dia em que pisei na Pontifícia. Esse deve ser um dia muito remoto em meio às minhas primeiras lembranças de vida. Confesso que, ao longo da faculdade, tive até uma certa inveja dos amigos que diziam “Lembro do dia em que entrei na PUC pela primeira vez e...”. A vida nem me deu chance. Mas ainda bem.
Meus pais se conheceram naqueles corredores em 1969 – diz ele que já gostava dela, ela diz que é mentira, nunca saberemos – e praticamente nunca mais saíram de lá. Então acabei crescendo como se a PUC fosse uma mistura de quintal de casa, de parente próximo, de presença intermitente. A PUC sempre foi assunto na mesa do almoço e um destino repetido no banco do carro.
Meu irmão fugiu para a Unicamp, mas minha irmã ficou na PUC e eu também. Fizemos durante anos aquele caminho de todo dia: Nhambiquaras, República do Líbano, corta caminho, cruza a Nove de Julho, sai na Brasil lá na frente, cruza a Rebouças, Henrique Schaumann, Sumaré, sobe, passa o mercado Pastorinho e vira à direita. Ano após ano, até cansar.
O problema é que o tempo passou e a PUC deixou de ser essa tal de todo dia. E aí virou saudade. Saudade de comer pastel na feira às terças, de tomar açaí sentada na escada da prainha, de tomar cerveja na terceira aula em horários sem cabimento, de comer aqueles sanduíches naturais muito caros do quarto andar, saudade de afugentar pombas, de morrer de medo de ter bicho no lanche do Centro Acadêmico, saudade de comer milho antes da aula à noite, saudade de cometer o grave pecado de entrar na biblioteca com uma garrafa de água escondida embaixo do casaco. A PUC pertence àquela espécie que nunca vai ser bem um lugar. É, sei lá eu, estado de espírito, destino, profundeza, amor, ódio, ausência dolorida.
A PUC é personagem da história de quem passa por ela, gostando ou não. É a lembrança de um cheiro de flor misturado com maconha e croissant de presunto e queijo. É a visão sincera da feiura do prédio novo (que já é velho) e do charme decadente do prédio velho (que é mesmo muito velho). É um emaranhado de rampas confusas e de lembranças que valem mais do que o salgado preço das suas mensalidades.
E vale dizer: na biblioteca da PUC, se você for à seção de dissertações, procurar a letra “M” e for até Manus, vai se deparar com a do Pedro, a da Maria Eugenia e a da Ruth. Uma ao lado da outra. Pedro é meu pai, Maria Eugenia é minha mãe. Confesso que quando descobri isso fiquei com os olhos cheios de lágrimas. Não tem jeito. Sou filha da PUC até nas prateleiras. Que orgulho.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

Vinte penosos anos depois



Uma tarde de maio de 1944 um jovem de vinte anos aguardava sua noiva numa confeitaria da moda na Cinelândia. Ela telefonara para o seu novo emprego, marcando um encontro por motivo da maior importância, que lhe diria pessoalmente.
Que poderia ser? Ele fazia mil conjecturas enquanto esperava, desistindo do sorvete que preferiria tomar, em favor de um vermute, que lhe daria um ar mais adulto, como certamente a ocasião exigia.
Uma audiência com o presidente – ela foi informando logo. – Para agradecer a nomeação.
Ir ao presidente agradecer algo que não lhe pedira significava para ele uma abdicação. A nomeação para o rendoso cargo surgira como uma injunção do casamento – por isso havia concordado. Mas agradecer ao ditador, que ele repudiava? (Além do mais o cargo nem tão rendoso era assim, como já tivera ocasião de verificar.) Nem por isso seus ideais democráticos de estudante haviam morrido, continuava a ter lá as suas convicções.
Ele seguia de cara amarrada no carro oficial, ao lado da moça: ela o havia vencido, mas não o convencera. Ganharam a rua Paissandu em direção ao Palácio Guanabara, residência presidencial naquele tempo. De súbito ele se inclinou para a frente e ordenou ao motorista que parasse:
Você vai sozinha – disse, já abrindo a porta. – Te espero na praia.
Estavam quase transpondo os portões do palácio quando ele saltou e se afastou rapidamente sem olhar para trás. Ouviu o carro dando partida e foi caminhando em direção à praia. Mal vencera a segunda quadra, o carro voltava, detendo-se a seu lado:
Mandaram buscar o senhor – e o motorista já saltava para abrir-lhe a porta.
Apanhado de surpresa, deu consigo já dentro do carro, que seguia de volta ao palácio. Na portaria um oficial de gabinete à sua espera o introduziu numa saleta onde a noiva o aguardava.
Que aconteceu? – perguntou, intrigado.
O presidente mandou te buscar. Ele te viu da janela.
A primeira vez que vi Getúlio Vargas de perto (em Belo Horizonte, 1943) eu usava uma farda de gala (emprestada) de oficial do Exército. A indumentária se impusera por duas razões: queria não deixar dúvidas de que havia terminado meu curso no CPOR, e não tinha casaca, que a ocasião exigia: tratava-se de casamento de uma contraparente, da qual o presidente era padrinho.
Pronto para a guerra, tenente? – disse ele com um sorriso, quando lhe fui apresentado.
O sorriso me pareceu estereotipado como o de uma máscara. Este mesmo sorriso surpreendo agora em várias sequências de um filme sobre a sua vida, atualmente em exibição. Trata-se de um documentário com precioso material de pesquisa e cheio de interesse – mas nem por isso saio do cinema menos acabrunhado. A direção, embora revelando competência e sensibilidade, pareceu-me ter cometido, com a melhor das intenções, a falta de Jorge Ileli noutro excelente filme sobre o mesmo assunto que vi há tempos numa exibição particular. Ambos praticamente esqueceram a ditadura de Vargas e passaram como gato sobre brasas pelas verdadeiras razões de seu suicídio. Com isso contribuem para perpetuar um mito em que eles próprios parecem acreditar.
E saio acabrunhado do cinema porque o que eu pude ver foi a evocação de uma triste fase de nossa História: a vaidade, a ambição, o cinismo paternalista, o culto à personalidade, as presepadas cívicas, as fanfarrices do Poder, as diversões mundanas do mundo oficial – todo esse caldo de cultura que nos restou de uma época inspirada no homem cuja única preocupação foi sempre a de perpetuar-se no Poder.
Depois de uma das noites mais agitadas de nossa História, a manhã se firmou sobre a cidade, mas o silêncio continuou nos salões do Palácio do Catete. De repente se ouviu um tiro, vindo dos aposentos presidenciais. Eram exatamente 8 horas e 35 minutos do dia 24 de agosto de 1954.
Durante dez anos acreditei que esse disparo marcasse realmente um momento de grandeza na vida pública do homem que sempre ignorou as torpezas praticadas à sua sombra: as da ditadura que brutalizou o país de 1937 a 1945 e as que o levaram à morte em 1954. Hoje acredito que ele estava apenas saindo da vida para entrar na História, como disse em sua famosa carta-testamento. A ser ela autêntica – do que, aliás, nunca me convenci – ele buscou deixar atrás de si um legado de desentendimento e desordem que confundisse a nação e engrandecesse a sua memória: après moi, le déluge.
Recentemente, vinte penosos anos depois, os jornais se encheram de depoimentos daqueles que viveram ao seu redor – todos repassados de um respeito que ia da simpatia ao fervor. Mas nenhum me impressionou tanto como o que me deu um dia Juarez Távora: contou-me que durante seus despachos com o presidente, ficava estupefato com a quantidade de papéis que ele assinava. Getúlio chamara a si a tarefa de sacramentar com a sua assinatura todos os atos oficiais praticados, até mesmo os da mais simples rotina, como a nomeação ou dispensa de um servente. Parecia ter prazer em ver seu próprio nome brotar caprichosamente da pena, como autoridade suprema da Nação. E entrava pela madrugada adentro, às vezes a cabecear de sono, assinando, assinando…
O jovem casal continuava aguardando na antessala do palácio, silencioso e contrito como numa sacristia à espera do padre para a confissão. Certamente alguém viria buscá-los para a audiência presidencial, em algum imenso salão no recesso do palácio. Era o que ele pensava, procurando relaxar o corpo na poltrona e tentando organizar mentalmente o que diria. Decidiu não dizer nada, ela que falasse por ambos. Mais aliviado, pôs-se a observar o pequeno gabinete em que se achavam.
Poltronas de couro marrom, uma pesada mesa de madeira trabalhada, um tinteiro de prata, um mata-borrão. Ao fundo, uma cortina de veludo cor de vinho, de enfeites dourados, cobrindo a parede do teto ao chão, como a de um palco. Súbito percebeu que ela se agitava, abrindo-se no meio, arrepanhada por uma mão branca e delicada. De uma porta entreaberta – era na realidade um reposteiro – surgiu o presidente. Vestia um terno branco de trespasse um tanto apertado, o que o fazia mais obeso, e trazia um charuto na mão. A pele do rosto bem barbeado era fina e rosada, como sob uma maquilagem de teatro. A sua entrada em cena, a sua postura, o charuto erguido no ar, o sorriso fixo, a cabeça levemente inclinada para um lado – todo ele parecia uma figura de teatro – como a daqueles cômicos de revista na praça Tiradentes que o imitavam: era a caricatura de si mesmo. Cumprimentaram-se, e a moça foi direta ao assunto, agradecendo a nomeação. O presidente voltou-se para ele:
Estimo que estejas satisfeito. Já tomaste posse?
Já – e, irresistível, só lhe vinha como resposta a lembrança de uma das anedotas a ele atribuídas. – Mas ainda não recebi os atrasados.
O presidente meneava a cabeça, ar complacente, como quem concorda sem prestar atenção. Mais algumas palavras de cortesia trocadas com a moça e se despediu, desaparecendo atrás da cortina. O rapaz estava perplexo: a audiência não durara três minutos. Desde então, nunca mais o viu.
E até hoje não entendeu por que ele fez questão de mandar buscá-lo.

Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula

O mundo do futuro ainda não nasceu

Nesse momento, sob um empurrão mais forte, a porta do cercado se abriu e o porco precipitou-se pelo jardinzinho grunhindo.
Sente dores, pobre animal... — disse Zorba com pena.
É claro que tem dores! — gritou o velho cretense, rindo-se. — se fizerem a você o que fizeram a ele, não sentiria dor também?
Zorba bateu na madeira.
Isola, velho danado! — murmurou ele apavorado.
O porco ia e vinha diante de nós, olhando-nos furioso.
Por minha fé, parece que ele sabe que estamos comendo pedaços dele! — disse ainda o tio Anagnosti, a quem o vinho havia inspirado.
Mas nós, tranquilamente, satisfeitos, comíamos como canibais, bebendo o vinho vermelho, e olhávamos entre as folhas prateadas da oliveira, o mar todo cor-de-rosa ao sol do poente.
Quando, caída à noite, deixamos a casa do velho notável da aldeia, Zorba, inspirado também, estava com vontade de falar.
Que falávamos anteontem, patrão? — disse-me. — você queria esclarecer o povo, abrir-lhe os olhos! Pois bem, experimente abrir os olhos do tio Anagnosti! Você viu como a mulher dele ficava ao lado, esperando ordens, como um cachorro que quer agradar? E vá lhe dizer que é uma crueldade ficar lá comendo pedaços de porco, enquanto o porco está vivo diante de você, gemendo; ou que a mulher tem os mesmos direitos que o homem. O que vai fazer o pobre do tio Anagnosti das suas explicações? Você só vai lhe arranjar problemas. E o que ganhará amar Anagnosti? Vão começar as cenas, a galinha vai querer ser o galo do terreiro, não vai haver senão brigas... Deixe as pessoas tranquilas, patrão. Não lhes abra os olhos. Se você o fizer, que vão elas ver? A miséria em que vivem! Deixe-os continuar sonhando!
Calou-se um instante e coçou a cabeça. Estava pensando.
A menos — disse ele. — a menos que...
A menos que o que? Diga.
A menos que, quando eles abrirem os olhos, você possa lhes mostrar um mundo melhor do que as trevas em que vivem. Você pode? Eu não sabia. Sabia o que iria desmoronar, mas não o que se poderia construir sobre as ruínas. Isso ninguém pode saber com certeza, pensava eu. O velho mundo é palpável, sólido, nós o vivemos e lutamos com ele a cada momento, ele existe. O mundo do futuro ainda não nasceu, é inatingível, fluido, feito da luz em que são tecidos os sonhos, é uma nuvem batida pelos ventos violentos — o amor, o ódio, a imaginação, o acaso, Deus...o maior profeta não pode dar aos homens senão uma palavra de ordem; quanto mais esta palavra de ordem for imprecisa, maior será o profeta.
Zorba me olhava com um sorriso. Zanguei-me.
Posso — disse eu.
Pode? Então, mostre-me.
Não posso. Você não o compreenderia.
Qual nada! É que você não pode me mostrar mundo algum! — disse Zorba balançando a cabeça. Não sou nenhum tolo, patrão. Se alguém disse isso a você, esse alguém lhe enganou. Eu sou tão ignorante quanto o tio Anagnosti, mas não sou tão burro! Então, se eu não posso compreender, como quer você que o compreendam aquele velhinho e a mula da mulher dele? E todos os Anagnosti desse mundo? São então novas trevas que eles vão ver? Se forem, deixe-os com as trevas antigas — eles já estão habituados. Aguentaram até aqui, e bem, você não acha? Vivem, e vive bem; fazem filhos e mesmo netos; Deus os faz surdos, cegos e eles dizem: “Que o Senhor seja louvado!” Sentem-se bem na miséria. Deixe-os e cale-se.
Calei-me. Passávamos em frente ao jardim da viúva. Zorba parou um instante, suspirou, mas não disse nada. Devia estar chovendo em qualquer lugar. Um cheiro de terra, cheio de frescura, perfumava o ar. As primeiras estrelas apareceram. A lua recente brilhava, terna, amarelo-verde, e o céu transbordava de doçura.
Esse homem, pensei, nunca foi à escola e seu cérebro não foi desarrumado. Viu de tudo, seu espírito abriu-se e seu coração alargou-se, sem perder a audácia primitiva. Todos os problemas complicados, insolúveis para nós, ele os resolve com um golpe de espada, como seu compatriota, Alexandre o Grande. É difícil que ele tombe sobre um lado, pois se apoia inteiramente na terra, dos pés a cabeça. Os selvagens da África adoram a serpente porque todo o seu corpo toca na terra e conhece, assim, os segredos do mundo. Ela os conhece com seu ventre, com sua cauda, com sua cabeça. Ela a toca, mistura-se, faz-se uma só, como a mãe terra. O mesmo ocorre com Zorba. Nós, as pessoas instruídas, não somos senão passarinhos bobocas do ar.
As estrelas se multiplicavam, altivas, desdenhosas, duras, sem nenhuma piedade pelos homens.
Não conversávamos mais. Olhávamos o céu com terror, víamos a cada instante novas estrelas se acenderem, enquanto ao oriente o incêndio se alastrava.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

O Espanhol que morreu

Ir para Copacabana já não tinha o menor sentido; seria regressar à idade moderna.
Como dar adeus às sombras amigas, como deixar os fantasmas cordiais que se tinham abancado em volta, ou de pé, e em silêncio nos fitavam?
Era melhor cambalear pela triste Lapa. Mas então aconteceu que os fantasmas ficaram lá embaixo, quando subimos a escada. E dentro de meia hora chegamos à conclusão de que o meu amigo é que era um fantasma. A mulher que dançava um samba começou a fitá-lo, depois chamou outras. Nós somos pobres, e a dose de vermute é cara. Como dar de beber a todas essas damas que rodeiam o amigo?
Mas elas não querem beber vermute; bebem meu amigo com os olhos e perguntam seu nome todo. Fitam-no ainda um instante, reparam na boca, os olhos, o bigode, e se retiram com um ar de espanto; mas a primeira mulher fica, apenas com sua amiga mais íntima, que é mulata clara e tem um apelido inglês.
Em que cemitério dorme, nesta madrugada de chuva, esse há anos finado senhor de nacionalidade espanhola e província galega? Esse que vinha toda noite e era amigo de todas, e amado de Sueli? Tinha a cara triste, nos informam, igual a ele, mas igual, igual. Então meu amigo se aborrece; nem trabalha no comércio, nem é espanhol, nem sequer está morto, embora confesse que ama Sueli. Elas continuam; tinha a cara assim, triste, mas afinal era engraçado, e como era bom. E até aquele jeito de falar olhando as pessoas às vezes acima dos olhos, na testa, nos cabelos, como se estivesse reparando uma coisa. Trabalhava numa firma importante e um dia um dos sócios esteve ali com ele, naquela mesa ao lado, e disse que quando tinha um negócio encrencado com algum sujeito duro, mandava o Espanhol, e ele resolvia. Sabia lidar com pessoas; além disso bebia e nunca ninguém pôde dizer que o viu bêbado. Só ficava meio parado e olhava as pessoas mais devagar. Mais de dez mulheres acordaram cedo para ir ao seu enterro; chegaram, tinha tanta gente que todos ficaram admirados. Homens importantes do comércio, e família, e moças, e colegas de firma, automóvel e mais automóvel, meninos entregadores em suas bicicletas, muita gente chorando, e no cemitério houve dois discursos. Até perguntaram quem era que estavam enterrando. Era o Espanhol.
Sueli e Betty contam casos; de repente o garçom repara em meu amigo, e pergunta se ele é irmão do Espanhol. Descemos. Quatro ou cinco mulheres nos trazem até a escada, ficam olhando. Eu digo: estão se despedindo de você, isto é seu enterro. Meu amigo está tão bêbado que sai andando na chuva e falando espanhol e some, não o encontro mais. Fico olhando as árvores do Passeio Público com a extravagante ideia de que ele podia estar em cima de alguma delas.
Grito seu nome. Ele não responde. A chuva cai, lamentosa. Então percebo que na verdade ele é o Espanhol, e morreu.

Rubem Braga, in Recado de primavera

Biografia fantasmal

Celeste Bogarí... em que recanto
da vida esse teu nome busco?

Ou te criaste apenas
nos delírios mansos
da minha memória?

Mas eu tenho a vaga... não, Celeste, eu tenho a nítida
impressão de que eras
cor de canela: assim dizia-se então...

E a tua voz — cristal puro —
ondulava no ar que nem vidro soprado
ao ritmo das boás que se usavam no palco.

Ao mesmo ritmo delas...
e com a mesma envolvente brancura...

Ah, o teu ingênuo sonho de branquidão!
E esse teu nome tão lindo, e ridículo e triste, Celeste Bogarí...
nem precisas contar-me como foi a tua história
se é que um dia exististe.

Mário Quintana

Julgamento

Ninguém pode exigir o que, em última análise, o prejudica. Se uma pessoa em particular, afinal de contas, parece ser assim – e talvez existam sempre pessoas desse tipo –, isso se explica pelo fato de que alguém, no ser humano, exige algo que na verdade o beneficia, embora prejudique seriamente um segundo, em parte atraído para julgar o caso. Se a pessoa foi colocada logo de início, e não apenas na hora do julgamento, ao lado da segunda, então a primeira teria desaparecido aos poucos e com ela a exigência.

Franz Kafka, in Aforismos reunidos

Certo, certeza

Que idade tem vosso amigo Cristóvão?
Vinte e oito anos. Vi sua certidão de casamento e de batismo, conheço-o desde criança. Tem vinte e oito anos, tenho certeza, estou certo.
Mal acabo de ouvir a resposta desse homem tão seguro do que diz e de vinte outros que o corroboram, venho a saber que, por motivos secretos e singular engenho, se antedatou a certidão de batismo de Cristóvão. Aqueles com quem falei nada sabem ainda. No entanto, sempre tiveram certeza do que não é.
Se perguntásseis a todos os homens antes de Copérnico:
O sol levantou-se hoje? O sol se pôs?
Temos absoluta certeza — responder-vos-iam.
Tinham certeza, e no entanto estavam errados.
Sortilégios, adivinhações, obsessões foram durante longo tempo as coisas mais certas do mundo aos olhos de todos os povos. Quanta gente presa dessas ilusões não estava certa do que presumia ver! Hoje acha-se menos em voga essa certeza.
Vem visitar-me um jovem estudante de geometria. Principiante, ainda se acha às voltas com a definição dos triângulos.
Não é certo — pergunto-lhe — que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos retos?
Não só não tenho certeza — responde-me — como nem sequer compreendo claramente essa proposição.
Demonstro-lha. Certifica-se, e para o resto da vida.
Eis aí uma certeza muito diferente das anteriores. Aquelas não eram mais que probabilidades que, examinadas, revelaram-se erros. A certeza matemática, porém, é imutável e eterna.
Existo. Penso. Sinto. Será isso tão certo quanto uma verdade geométrica? Sim. Por que? Porque as verdades se provam pelo princípio de que nada pode ser e não ser ao mesmo tempo. Não Posso existir e simultaneamente não existir, sentir e não sentir. Um triângulo não pode ter cento e oitenta graus — a soma de dois ângulos retos — e ao mesmo tempo não os ter.
De mesmo valor são pois a certeza física de que existo, de que sinto e a certeza matemática, embora de gêneros diversos.
O mesmo não acontece com a certeza que se funda em aparências ou testemunhos unânimes dos homens.
Ora essa! Então não estais certo de que Pequim existe? Não tendes em casa estofos de Pequim! Indivíduos dos mais diversos países e opiniões, que escreveram violentamente uns contra os outros pregando a verdade em Pequim, não vos asseveraram a existência dessa cidade?
Acho muitíssimo provável ter existido tal cidade. Mas não apostaria a vida em como exista, se bem não hesite em apostá-la em como os três ângulos de um triângulo perfazem dois retos.
Estampou-se no Dictionnaire Encyclopédique uma coisa jovialíssima. Sustenta-se lá que, se mo dissesse toda Paris, eu deveria estar tão seguro, tão certo de que o marechal de Saxe ressuscitou, como o estou de que ele venceu a batalha de Fontenoy, quando toda Paris mo assevera. O raciocínio é admirável: Creio em Paris quando toda ela me diz coisa moralmente possível; portanto não devo crê-la quando me diz coisa moral e fisicamente impossível.
Parece que o autor queria rir, e que o outro autor que se extasia ao fim desse artigo escrito contra si próprio também o queria.

Voltaire, in Dicionário Filosófico

Capítulo III – Cadeia

Fabiano tinha ido à feira da cidade comprar mantimentos. Precisava sal, farinha, feijão e rapaduras. Sinha Vitória pedira além disso uma garrafa de querosene e um corte de chita vermelha. Mas o querosene de seu Inácio estava misturado com água, e a chita da amostra era cara demais.
Fabiano percorreu as lojas, escolhendo o pano regateando um tostão em côvado, receoso de ser enganado. Andava irresoluto, uma longa desconfiança dava-lhe gestos oblíquos. A tarde puxou o dinheiro, meio tentado, e logo se arrependeu, certo de que todos os caixeiros furtavam no preço e na medida: amarrou as notas na ponta do lenço, meteu-as na algibeira, dirigiu-se à bodega de seu Inácio, onde guardara os picuás.
Aí certificou-se novamente de que o querosene estava batizado e decidiu beber uma pinga, pois sentia calor. Seu Inácio trouxe a garrafa de aguardente. Fabiano virou o copo de um trago, cuspiu, limpou os beiços à manga, contraiu o rosto. Ia jurar que a cachaça tinha água. Por que seria que seu Inácio botava água em tudo? perguntou mentalmente. Animou-se e interrogou o bodegueiro: – Por que é que vossemecê bota água em tudo?
Seu Inácio fingiu não ouvir. E Fabiano foi sentar-se na calçada, resolvido a conversar. O vocabulário dele era pequeno, mas em horas de comunicabilidade enriquecia-se com algumas expressões de seu Tomás da bolandeira. Pobre de seu Tomás. Um homem tão direito sumir-se como cambembe, andar por este mundo de trouxa nas costas. Seu Tomás era pessoa de consideração e votava. Quem diria?
Nesse ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente no ombro de Fabiano: - Como é, camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro?
Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira: – Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer Enfim, contanto, etc. É conforme.
Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia.
Atravessaram a bodega, a corredor, desembocaram numa sala onde vários tipos jogavam cartas em cima de uma esteira.
Desafasta, ordenou o polícia. Aqui tem gente.
Os jogadores apertaram-se, os dois homens sentaram-se, o soldado amarelo pegou o baralho. Mas com tanta infelicidade que em pouco tempo se enrascou. Fabiano encalacrou-se também. Sinha Vitória ia danar-se, e com razão.
Bem feito.
Ergueu-se furioso, saiu da sala, trombudo.
Espera aí, paisano, gritou o amarelo.
Fabiano, as orelhas ardendo, não se virou. Foi pedir a seu Inácio os troços que ele havia guardado, vestiu o gibão, passou as correias dos alforjes no ombro, ganhou a rua.
Debaixo do jatobá do quadro taramelou com Sinha Rita louceira, sem se atrever a voltar para casa. Que desculpa iria apresentar a Sinha Vitória? Forjava uma explicação difícil. Perdera o embrulho da fazenda, pagara na botica uma garrafada para Sinha Rita louceira. Atrapalhava-se tinha imaginação fraca e não sabia mentir. Nas invenções com que pretendia justificar-se a figura de Sinha Rita aparecia sempre, e isto o desgostava. Arruinaria uma história sem ela, diria que haviam furtado o cobre da chita. Pois não era? Os parceiros o tinham pelado no trinta-e-um. Mas não devia mencionar o jogo. Contaria simplesmente que o lenço das notas ficara no bolso do gibão e levara sumiço. Falaria assim: - “Comprei os mantimentos. Botei o gibão e os alforjes na bodega de seu Inácio. Encontrei um soldado amarelo”. Não, não encontrara ninguém. Atrapalhava-se de novo. Sentia desejo de referir-se ao soldado, um conhecido velho, amigo de infância. A mulher se incharia com a notícia. Talvez não se inchasse. Era atilada, notaria a pabulagem. Pois estava acabado. O dinheiro fugira do bolso do gibão, na venda de seu Inácio. Natural.
Repetia que era natural quando alguém lhe deu um empurrão, atirou-o contra o jatobá. A feira se desmanchava; escurecia; o homem da iluminação, trepando numa escada, acendia os lampiões. A estrela papa-ceia branqueou por cima da torre da igreja; o doutor juiz de direito foi brilhar na porta da farmácia; o cobrador da prefeitura passou coxeando, com talões de recibos debaixo do braço; a carroça de lixo rolou na praça recolhendo cascas de frutas; seu vigário saiu de casa e abriu o guarda-chuva por causa do sereno; Sinha Rita louceira retirou-se.
Fabiano estremeceu. Chegaria a fazenda noite fechada. Entretido com o diabo do jogo, tonto de aguardente, deixara o tempo correr. E não levava o querosene, ia-se alumiar durante a semana com pedaços de facheiro. Aprumou-se, disposto a viajar. Outro empurrão desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali perto o soldado amarelo, que o desafiava, a cara enferrujada, uma ruga na testa. Mexeu-se para sacudir o chapéu de couro nas ventas do agressor. Com uma pancada certa do chapéu de couro, aquele tico de gente ia ao barro. Olhou as coisas e as pessoas em roda e moderou a indignação. Na catinga ele as vezes cantava de galo, mas na rua encolhia-se.
Vossemecê não tem direito de provocar os que estão quietos.
Desafasta, bradou o polícia.
E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir.
Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemecê esbagaçar os seus possuídos no jogo?
Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questão. Não achando pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reiúna em cima da alpercata do vaqueiro.
Isso não se faz, moço, protestou Fabiano. Estou quieto. Veja que mole e quente é pé de gente.
O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatobá.
Toca pra frente, berrou o cabo. Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu. – Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano. Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o arremessou para as trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueu-se atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando – Hum! hum!
Porque tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo. Achava-se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído todos em cima, de supetão, como uns condenados. Assim um homem não podia resistir.
Bem, bem.
Passou as mãos nas costas e no peito, sentiu-se moído, os olhos azulados brilharam como olhos de gato. Tinham-no realmente surrado e prendido. Mas era um caso tão esquisito que instantes depois balançava a cabeça, duvidando, apesar das machucaduras.
Ora, o soldado amarelo... Sim, havia um amarelo, criatura desgraçada que ele, Fabiano, desmancharia com um tabefe. Não tinha desmanchado por causa dos homens que mandavam. Cuspiu, com desprezo: - Safado, mofino, escarro de gente. Por mor de uma peste daquela, maltratava-se um pai de família. Pensou na mulher, nos filhos e na cachorrinha. Engatinhando, procurou os alforjes, que haviam caído no chão, certificou-se de que os objetos comprados na feira estavam todos ali. Podia ter-se perdido alguma coisa na confusão. Lembrou-se de uma fazenda vista na última das lojas que visitara. Bonita, encorpada, larga, vermelha e com ramagens, exatamente o que Sinha Vitória desejava. Encolhendo um tostão em côvado, por sovinice, acabava o dia daquele jeito. Tornou a mexer nos alforjes. Sinha Vitória devia estar desassossegada com a demora dele. A casa no escuro, os meninos em redor do fogo, a cachorra Baleia vigiando. Com certeza haviam fechado a porta da frente.
Estirou as pernas, encostou as carnes doídas ao muro. Se lhe tivessem dado tempo, ele teria explicado tudo direitinho. Mas pegado de surpresa, embatucara. Quem não ficaria azuretado com semelhante despropósito? Não queria capacitar-se de que a malvadez tivesse sido para ele. Havia engano, provavelmente o amarelo o confundira com outro. Não era senão isso.
Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas. as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e aguentavam cipó de boi oferecia consolações: – “Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita.” Mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo? – An! E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo não devia consentir tão grande safadeza.
Afinal para que serviam os soldados amarelos? Deu um pontapé na parede, gritou enfurecido. Para que serviam os soldados amarelos? Os outros presos remexeram-se, o carcereiro chegou à grade, e Fabiano acalmou-se: – Bem, bem. Não há nada não.
Havia muitas coisas. Ele não podia explicá-las, mas havia. Fossem perguntar a seu Tomás da bolandeira, que lia livros e sabia onde tinha as ventas. Seu Tomás da bolandeira contaria aquela história. Ele, Fabiano, um bruto, não contava nada. Só queria voltar para junto de Sinha Vitória, deitar-se na cama de varas. Porque vinham bulir com um homem que só queria descansar? Deviam bulir com outros.
An! Estava tudo errado. – An! Tinham lá coragem? Imaginou o soldado amarelo atirando-se a um cangaceiro na catinga. Tinha graça. Não dava um caldo.
Lembrou-se da casa velha onde morava, da cozinha, da panela que chiava na trempe de pedras. Sinha Vitória punha sal na comida. Abriu os alforjes novamente: a trouxa de sal não se tinha perdido. Bem. Sinha Vitória provava o caldo na quenga de coco. E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da família, sabida como gente. Naquela viagem arrastada, em tempo de seca braba, quando estavam todos morrendo de fome, a cadelinha tinha trazido para eles um preá. Ia envelhecendo, coitada. Sinha Vitória, inquieta, com certeza fora muitas vezes escutar na porta da frente. O galo batia as asas, os bichos bodejavam no chiqueiro, os chocalhos das vacas tiniam.
Se não fosse isso... An! Em que estava pensando? Meteu os olhos pela grade da rua. Chi! que pretume! O lampião da esquina se apagara, provavelmente o homem da escada só botara nele meio quarteirão de querosene. Pobre de Sinha Vitória, cheia de cuidados, na escuridão. Os meninos sentados perto do lume, a panela chiando na trempe de pedras, Baleia atenta, o candeeiro de folha pendurado na ponta de uma vara que saía da parede.
Estava tão cansado, tão machucado, que ia quase adormecendo no meio daquela desgraça. Havia ali um bêbedo tresvariando em voz alta e alguns homens agachados em redor de um fogo que enchia o cárcere de fumaça. Discutiam e queixavam-se da lenha molhada.
Fabiano cochilava, a cabeça pesada inclinava-se para o peito e levantava-se. Devia ter comprado o querosene de seu Inácio. A mulher e os meninos aguentando fumaça nos olhos.
Acordou sobressaltado. Pois não estava misturando as pessoas, desatinando? Talvez fosse efeito da cachaça. Não era: tinha bebido um copo, tanto assim, quatro dedos. Se lhe dessem tempo, contaria o que se passara.
Ouviu o falatório desconexo do bêbedo, caiu numa indecisão dolorosa. Ele também dizia palavras sem sentido, conversava à toa. Mas irou-se com a comparação, deu marradas na parede. Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um escravo. Desentupia o bebedouro, consertava as cercas, curava os animais – aproveitara um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa?
Se não fosse aquilo... Nem sabia. O fio da ideia cresceu, engrossou – Por isso não conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demônio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Era para um cristão endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la. Impossível, só sabia lidar com bichos.
Enfim, contanto... Seu Tomás daria informações. Fossem perguntar a ele. Homem bom, seu Tomás da bolandeira, homem aprendido. Cada qual como Deus o fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, um bruto.
O que desejava... An! Esquecia-se. Agora se recordava da viagem que tinha feito pelo sertão a cair de fome. As pernas dos meninos eram finas como bilros, Sinha Vitória tropicava debaixo do baú de trens. Na beira do rio haviam comido o papagaio, que não sabia falar. Necessidade.
Fabiano também não sabia falar. As vezes largava nomes arrevesados, por embromação. Via perfeitamente que tudo era besteira. Não podia arrumar o que tinha no interior. Se pudesse... Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas.
Bateu na cabeça, apertou-a. Que faziam aqueles sujeitos acocorados em torno do fogo? Que dizia aquele bêbedo que se esgoelava como um doido, gastando fôlego à toa? Sentiu vontade de gritar, de anunciar muito alto que eles não prestavam para nada. Ouviu uma voz fina. Alguém no xadrez das mulheres chorava e arrenegava as pulgas. Rapariga da vida, certamente de porta aberta. Essa também não prestava para nada. Fabiano queria berrar para a cidade inteira, afirmar ao doutor juiz de direito, ao delegado, a seu vigário e aos cobradores da prefeitura que ali dentro ninguém prestava para nada. Ele, os homens acocorados, o bêbedo, a mulher das pulgas, tudo era uma lástima, só servia para aguentar facão. Era o que ele queria dizer.
E havia também aquele fogo-corredor que ia e vinha no espírito dele. Sim, havia aquilo. Como era? Precisava descansar. Estava com a testa doendo, provavelmente em conseqüência de uma pancada de cabo de facão. E doía-lhe. a cabeça toda, parecia-lhe que tinha fogo por dentro, parecia- lhe que tinha nos miolos uma panela fervendo.
Pobre de Sinha Vitória, inquieta e sossegando os meninos. Baleia vigiando, perto da trempe. Se não fossem eles...
Agora Fabiano conseguia arranjar as ideias. O que o segurava era a família. Vivia preso como um novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente. Se não fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amolecia o corpo era a lembrança da mulher e dos filhos. Sem aqueles cambões pesados, não envergaria o espinhaço não, sairia dali como onça e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e daria um tiro de pé de pau no soldado amarelo. Não. O soldado amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mão. Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homens que dirigiam o soldado amarelo. Não ficaria um para semente. Era a ideia que lhe fervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha.
Fabiano gritou, assustando o bêbedo, os tipos que abanavam o fogo, o carcereiro e a mulher que se queixava das pulgas. Tinha aqueles cambões pendurados ao pescoço. Deveria continuar a arrastá-los? Sinha Vitória dormia mal na cama de varas. Os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo.
Arreda!

Graciliano Ramos, in Vidas Secas

Pequeno manual antirracista / Introdução

 

Quando criança, fui ensinada que a população negra havia sido escrava e ponto, como se não tivesse existido uma vida anterior nas regiões de onde essas pessoas foram tiradas à força. Disseram-me que a população negra era passiva e que “aceitou” a escravidão sem resistência. Também me contaram que a princesa Isabel havia sido sua grande redentora. No entanto, essa era a história contada do ponto de vista dos vencedores, como diz Walter Benjamin. O que não me contaram é que o Quilombo dos Palmares, na serra da Barriga, em Alagoas, perdurou por mais de um século, e que se organizaram vários levantes como forma de resistência à escravidão, como a Revolta dos Malês e a Revolta da Chibata. Com o tempo, compreendi que a população negra havia sido escravizada, e não era escrava—palavra que denota que essa seria uma condição natural, ocultando que esse grupo foi colocado ali pela ação de outrem.
Se para mim, que sou filha de um militante negro e que sempre debati essas questões em casa, perceber essas nuances é algo complexo e dinâmico, para quem refletiu pouco ou nada sobre esse tema pode ser ainda mais desafiador. O processo envolve uma revisão crítica profunda de nossa percepção de si e do mundo. Implica perceber que mesmo quem busca ativamente a consciência racial já compactuou com violências contra grupos oprimidos.
O primeiro ponto a entender é que falar sobre racismo no Brasil é, sobretudo, fazer um debate estrutural. É fundamental trazer a perspectiva histórica e começar pela relação entre escravidão e racismo, mapeando suas consequências. Deve-se pensar como esse sistema vem beneficiando economicamente por toda a história a população branca, ao passo que a negra, tratada como mercadoria, não teve acesso a direitos básicos e à distribuição de riquezas.
É importante lembrar que, apesar de a Constituição do Império de 1824 determinar que a educação era um direito de todos os cidadãos, a escola estava vetada para pessoas negras escravizadas. A cidadania se estendia a portugueses e aos nascidos em solo brasileiro, inclusive a negros libertos. Mas esses direitos estavam condicionados a posses e rendimentos, justamente para dificultar aos libertos o acesso à educação.
Havia também a Lei de Terras de 1850, ano em que o tráfico negreiro passou a ser proibido no Brasil—embora a escravidão tenha persistido até 1888. Essa lei extinguia a apropriação de terras com base na ocupação e dava ao Estado o direito de distribuí-las somente mediante a compra. Dessa maneira, ex-escravizados tinham enormes restrições, pois só quem dispunha de grandes quantias poderia se tornar proprietário. A lei transformou a terra em mercadoria ao mesmo tempo que facilitou o acesso a antigos latifundiários—embora imigrantes europeus tenham recebido concessões, como a criação de colônias.
Quando estudamos a história do Brasil, vemos como esses e outros dispositivos legais, estabelecidos durante e após a escravidão, contribuem para a manutenção da mentalidade “casa-grande e senzala” no país em que, nas senzalas e nos quartos de empregada, a cor foi e é negra. A psicanalista Neusa Santos, autora de Tornar-se negro, de 1983, um dos primeiros trabalhos sobre a questão racial na psicologia, afirma que:

a sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior.

No Brasil, há a ideia de que a escravidão aqui foi mais branda do que em outros lugares, o que nos impede de entender como o sistema escravocrata ainda impacta a forma como a sociedade se organiza. É necessário reconhecer as violências ocorridas durante o período escravista. Historiadores como Lilia Schwarcz, Flávio Gomes, João José Reis e Nizan Pereira Almeida já comprovaram que essa ideia não passa de um mito. São inúmeros os fatos históricos que a desmentem. Basta lembrar, por exemplo, que a expectativa de vida dos homens escravizados no campo era 25 anos, bem abaixo da média dos Estados Unidos para o mesmo grupo, 35 anos.
Movimentos de pessoas negras há anos debatem o racismo como estrutura fundamental das relações sociais, criando desigualdades e abismos. O racismo é, portanto, um sistema de opressão que nega direitos, e não um simples ato da vontade de um indivíduo. Reconhecer o caráter estrutural do racismo pode ser paralisante. Afinal, como enfrentar um monstro tão grande? No entanto, não devemos nos intimidar. A prática antirracista é urgente e se dá nas atitudes mais cotidianas. Como diz Silvio Almeida em seu livro Racismo estrutural:

Consciente de que o racismo é parte da estrutura social e, por isso, não necessita de intenção para se manifestar, por mais que calar-se diante do racismo não faça do indivíduo moral e/ou juridicamente culpado ou responsável, certamente o silêncio o torna ética e politicamente responsável pela manutenção do racismo. A mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com o repúdio moral do racismo: depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas.

Portanto, nunca entre numa discussão sobre racismo dizendo “mas eu não sou racista”. O que está em questão não é um posicionamento moral, individual, mas um problema estrutural. A questão é: o que você está fazendo ativamente para combater o racismo? Mesmo que uma pessoa pudesse se afirmar como não racista (o que é difícil, ou mesmo impossível, já que se trata de uma estrutura social enraizada), isso não seria suficiente—a inação contribui para perpetuar a opressão.
É preciso ressaltar que mulheres e homens negros não são as únicas vítimas de opressão estrutural: muitos outros grupos sociais oprimidos compartilham experiências de discriminação em alguma medida comparáveis. Este livro foca em estratégias para combater o racismo contra pessoas negras, mas espero que, se possível, ele possa contribuir também para o combate a outras formas de opressão.
O objetivo deste pequeno manual é apresentar alguns caminhos de reflexão—recuperando contribuições importantes de diversos autores e autoras sobre o tema—para quem quiser aprofundar sua percepção de discriminações estruturais e assumir a responsabilidade pela transformação de nossa sociedade. Afinal, o antirracismo é uma luta de todas e todos.

Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista

Por enquanto

Imagino a fotografia recuando sob a lente curiosa,
a imagem retraindo-se, antirrevelando-se lábio
cabelo pele tentassem retornar à folha
branca ao tempo branco

de antes do instante-pose-flash-clique,
ao tempo-eclipse
imagino o amante em modos de lobo

por trás da lupa
em busca do que não se fotografa: desejo
fogo águas
para muito mais que seus olhos.

Eucanaã Ferraz

A roça

E, de repente, tudo acabou. A Bolsa de Nova York quebrou. Meu pai, exportador de café, perdeu tudo. Não conseguiu fazer as transformações alquímicas por meio de palavras a que estava acostumado. Sua magia era fraca para tragédia tão grande.
Sem casa onde morar, um cunhado lhe emprestou uma fazenda abandonada. Pau-a-pique e adobe, caiação branca já suja pelo tempo, janelas de madeira azuis que o abandono desbotara, rudes largas tábuas no assoalho com buracos apodrecidos, teto de telha vã, os picumãs pendentes sobre o fogão, sem banheiro, as necessidades se faziam na ”casinha” durante o dia e nos urinóis durante a noite, a bica d’água cristalina, os banhos de bacia, os “lava-pés” ao fim do dia, o cheiro de querosene das lamparinas à noite, os ratos correndo pelos caibros do telhado, o fogão de lenha, o cheiro de fumaça, o canto dos galos, a gritaria dos porcos na matança, os ninhos das galinhas, os entardeceres tristes, as galinhas esticando o pescoço e piando, avaliando o tamanho do voo até o poleiro mais alto, o pio das aves noturnas, os barulhos estranhos na mata escura, ninguém se atrevia a sair, era noite, podia ser onça, a família espantava o medo passando trancas nas portas e janelas, e ficava junta ao redor do fogão de lenha aceso.
Roça” é um lugar que a esperança abandonou. Havia os que “iam” à roça. Eram os fazendeiros proprietários que moravam na cidade e lá apareciam para ver o seu gado. Para esses havia esperança. Havia também os raros amigos que visitavam aos domingos. Para eles “roça” era piquenique. Mas havia os que “pertenciam” à roça, que estavam plantados nela, companheiros do gado, das matas, dos pastos. Para esses não havia esperança. Quem era da roça morria nela. “Roça” era limbo de onde não se podia sair. Meu pai não era da roça. A roça foi o seu degredo.
Para sobreviver era preciso lutar com a natureza. A natureza é bonita quando a gente a contempla de longe. De longe é um cenário bom de se fotografar. Ou quando ela foi domesticada e transformada em parque ou jardim. Mas a natureza em si, do jeito como nasceu, bruta, a gente dentro dela, é fera que mata sem piedade. Um amigo que morou menino na roça me disse: “Hoje todo mundo fala mal dos pioneiros que cortaram as florestas a machado. Acusam-nos de assassinos da natureza. Mas não havia outro jeito. A mata estava ali, cobra verde de boca aberta, à espreita, sorrateira, se arrastando, se aproximando, pronta a dar o bote. A mata era inimiga. Era preciso matá-la como se mata cobra. Ou nós ou ela... Para se construir uma casa e viver em paz era preciso acabar com a mata. Bom não era o verde. Bom era o ‘terreiro’ bem limpo, apisoado, varridinho, sem nem um capim crescendo nele, garantia de que as aranhas, os escorpiões e as cobras ficariam longe”.
Era no terreiro que as crianças brincavam sem perigo. Quando o Jeca Tatuzinho se curou dos vermes e do amarelão e ganhou saúde, pegou no machado e pôs-se a cortar árvores. Assim escreveu Monteiro Lobato, o desenho do Jeca Tatuzinho cortando árvore, o que indica que até mesmo ele aprovava o que o Jeca fazia.
Lembro-me do meu pai trabalhando com a foice, corpo coberto de suor. Era preciso roçar os pastos para o gado ter o que comer. Batia a exaustão. Exaustão maior para quem não estava acostumado. Depois ele me contou que, quando a sede apertava, ele, de propósito, não bebia água. Esperava que a sede crescesse até ficar insuportável. Aí então ele ia até a mina. A mina estava escondida numa loca coberta de vegetação. Dentro era a sombra. A água borbulhava de mansinho, cristalina. A cuia cortada ao meio estava pendurada num gancho, à sombra. Ele pegava a cuia, enchia-a de água, olhava para a água agradecido, e bebia. Aí ele sentia que valia a pena viver. Não é preciso acreditar em Deus para sentir gratidão. Basta uma cuia d’água...
Tudo o que eu disse sobre a “roça” como lugar que a esperança abandonou só valia para os grandes. Eu era uma criança feliz. A infelicidade começa com a comparação. E eu não tinha com que comparar. Bachelard observou que “a infância conhece a infelicidade através dos homens” (A poética do devaneio, p. 9). Ainda não havia aprendido com os adultos a arte maldita da comparação. Esperança é coisa de gente grande, que vive no tempo, o passado, o presente, o futuro. Esperança é uma fantasia do futuro que alegra o presente. Criança não tem esperança. Não precisa. Se alegra no presente. Criança está fora do tempo. Mora na eternidade. Na eternidade não há tempo, não há passado, não há futuro, só o presente. Criança vive o momento. Eu só vivia o presente. Não tinha ansiedades. Meu irmão Ismael me contou que um dia a mãe lhe disse: “O que nos resta para viver são 800 mil-réis de um carro de bois que o seu pai vendeu...” . Minha mãe e meu irmão estavam ansiosos pelo futuro. Eu não. Sem o saber vivia a sabedoria evangélica que dizia que é inútil se preocupar com o amanhã. Jesus sabia que a cura para nossas doideiras é ficar criança de novo.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

O encantador de cavalos

 


Um menino tem sua cabeça a prêmio pelas ruas de Porto Alegre. Chamado ladrão de cavalos. Como nos faroestes. Não importa que ele pertença ao estado brasileiro com melhor qualidade de vida. A realidade do menino não é a da porta da frente, mas a das cocheiras. O mundo do menino tem necessidades básicas e nenhuma sutileza. Essa é a tragédia do pequeno procurado.
Ele tem dez anos, tamanho de oito, no máximo. Uma inteligência descrita como prodigiosa. E uma obsessão que lhe deu individualidade entre a massa de crianças desvalidas, condenadas a se anestesiar de loló pelas ruas: o menino é louco por cavalos. Não apenas os puros-sangues do Jockey. Qualquer pangaré de quatro patas faz seus olhos arregalarem-se. O que empresta cor à sua vida virou uma sentença de morte.
Cinquenta reais é a cotação da cabeça do menino. O valor é baixo porque quem o quer morto tem pouco mais do que ele. Pouco, não. Para o menino, muito. Tem um cavalo velho. Daqueles nascidos para sofrer, em que as costelas causam dor furando o couro. O crime do menino foi montar no cavalo do carroceiro e galopar com ele pelas avenidas da cidade. Por algum tempo, a imaginação do menino transformou aquele matungo triste no corcel dos farrapos de 20 de Setembro, as sórdidas ruas da região metropolitana no pampa dos mitos. Por algum tempo, menino e cavalo foram felizes.
Os cascos da realidade esmagaram os sonhos do menino. O cavalo, desacostumado a galopar sem as viseiras de seu jugo, perdeu-se do cavaleiro. O menino voltou para a periferia desmontado, tendo como lembrança da aventura apenas um traseiro em feridas. O carroceiro perdeu o instrumento de trabalho, o único ganha-pão da filharada. Enfureceu-se. Botou preço e espalhou pela capital. Como essa não foi a primeira cavalgada do menino, outras vítimas se uniram ao carroceiro. Desde o início do ano o menino está jurado de morte a um preço menor que o de um cavalo.
A paixão do menino irrompeu aos dois anos e meio, quando o pai lhe presenteou com uma égua sem raça de pelos colorados. Uma égua criança, que o menino batizou de Sabonete. Que se tornou a companheira do menino, quase toda a sua vida. Quando o menino tinha cinco anos, e a égua dois, ele estava sozinho em casa com a irmã menor e acendeu uma vela para dissipar a escuridão que lhe metia medo. A vela lhe escapou das mãos, o barraco incendiou-se. Não sobrou nada, exceto o menino, que o pai arrancou do meio das chamas. A égua Sabonete foi vendida para que a família comprasse um naco de sobrevivência.
O menino descobriu que sem seu cavalo era meio porque com ele incinerou-se a infância. Encarou pela primeira vez a cidade no encalço da única fantasia capaz de devolver-lhe a integridade de um corpo. Quase encontrou a morte debaixo das rodas de um carro. Ficou um mês e dois dias em coma no hospital. Teve de reaprender a andar e a falar. Quando falou, a primeira coisa que disse é que compraria uma casa nova para a família. Quando caminhou, partiu em busca de sua metade.
Pelo caminho foi saltando sobre o lombo dos animais que encontrava, sem tempo para explicar que não era ladrão. Foi interceptado quando galopava rumo a um rodeio. Fraturou o fêmur ao despencar de um cavalo alto e brabo demais para ele. O que não deteve o menino. Quando a mãe chaveou-o dentro de casa, arrancou as tábuas do assoalho. Fugiu de muletas em busca de seu Pégasus.
O diagnóstico médico para a ânsia do menino – uma sanha que jamais permitiu-lhe ficar sentado nos bancos escolares olhando ivo ver a uva – foi “hiperatividade e déficit de atenção”. A família não tinha dinheiro para comprar o remédio que lhe garantiria “uma vida normal”. O Conselho Tutelar, às voltas com meninos abandonados, drogados e violados, não sabia o que fazer com um menino que tinha a mesma obsessão de Alexandre, o Grande.
Ninguém percebeu que recuperar o cavalo era a esperança do menino de voltar no tempo, um segundo antes de atear fogo à vela que em vez de luz o sepultou em trevas. Ninguém percebeu que só a ilusão mantinha o menino a salvo da loucura. Que o cavalo era a lucidez – e não a insanidade. Depois de entrar e sair de instituições, o menino foi confinado em fevereiro na ala infantil do manicômio. De onde fugiu dois domingos atrás.
Em busca de seu cavalo, ele submergiu nos campos de concreto da cidade. Dormindo pelos viadutos, pelas cocheiras. Encilhado em sua utopia. Embriagado de fantasias, não de loló. Na quarta-feira, implorando que o deixassem montar, o pequeno centauro explicou o sopro que anima seu corpo de menino:
Eu vejo um cavalo, e o meu coração começa a bater desesperado. Não gosto nem de bola nem de bicicleta. Só de cavalos. Quando eu durmo, continuo sonhando com cavalos. Sinto isso.
E se foi. Um cavaleiro solitário aos dez anos de idade, jurado de morte, agarrado às crinas da única fantasia capaz de salvá-lo da loucura de uma infância em cinzas.

Eliane Brum, in A vida que ninguém vê

Final de uma ode

Acontece assim: tiro as pernas do balcão de onde via um sol de inverno se pondo no Tejo e saio de fininho dolorosamente dobradas as costas e segurando o queixo e a boca com uma das mãos. Sacudo a cabeça e o tronco incontrolavelmente, mas de maneira curta, curta, entendem? Eu estava dando gargalhadas e agora estou sofrendo nosso próximo falecimento, minhas gargalhadinhas evoluíram para um sofrimento meio nojento, meio ocasional, sinto uma dó extrema do rato que se fere no porão, ai que outra dor súbita, ai que estranheza e que lusitano torpor me atira de braços abertos sobre as ripas do cais ou do palco ou do quartinho. Quisera dividir o corpo em heterônimos – medito aqui no chão, imóvel tóxico do tempo.

Ana Cristina Cesar, in A teus pés

Lembrança de um filho pequeno

Mas que sentir de filho? Se de algum modo fico toda sem um único sentimento reconhecível. Que sentir? Vejo sua cara queimada de sol, cara inteiramente inconsciente da expressão que tem, toda concentrada que está como um bicho bonito, delicado e feroz – nas lambidas de seu sorvete.
O sorvete é de chocolate. O filho lambe-o. Às vezes se torna lento demais para o seu prazer, e ele então morde-o, e faz uma careta que é inteiramente inconsciente da felicidade incômoda que dá o pedaço gelado enchendo a boca quente. Essa, a boca, é muito bonita. Olho o filho toda compacta, mas ele está habituado à burrice de meu olhar concentrado de amor. Ele não me olha, e não se incomoda de ser observado nesse seu ato íntimo, vital e delicado: e continua a lamber o sorvete com a língua vermelha e atenta. Não sinto nada, senão que sou inteira, pesada de material de primeira, boa madeira. Como mãe, não tenho finura. Sou grossa e silenciosa. Olho com a rudeza de meu silêncio, com meu olho vazio aquela cara que também é rude, filho meu. Não sinto nada porque isso deve ser amor pesado e indivisível. Ali estou, recuada. Recuada diante de tanto. O indevassável me deixa com uma espécie de obstinação áspera; impenetrabilidade é o meu nome; estou ali, endomingada pela natureza. Minha cara deve estar com um ar teimoso, com olho de estrangeira que não fala a língua do país. Parece um torpor. Não me comunico com pessoa alguma. Meu coração é pesado, obstinado, inexpressivo, fechado a sugestões.
Estou ali, e vejo: o rosto do menino tornou-se por um instante ávido – é que deve ter encontrado algum pedaço de sorvete com mais chocolate que o resto, e que a língua esperta captou. Ninguém diria que sou magra: estou gorda, pesada, grande, com as mãos calejadas não por mim mas pelos meus ancestrais. Sou uma desconfiada que está em trégua. O filho come agora a casca do sorvete. Sou uma imigrante que se enraizou em terra nova. Meu olho é vazio, áspero, olha bem. E vê: um filho de cara concentrada que come.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas