Durante quatro estações, em todas as manhãs, o trem deslizava em frente de nossa casa. Nascia na cidade de um avô, que escrevia nas paredes, e morria na cidade de outro avô, com seu olho de vidro. Sempre suspeitei o nascer como entrar num trem andando. Só que, o mundo, eu não sabia de onde vinha nem para onde ia. E, no meu vagão, não escolhi os companheiros para a viagem. Eram todos estranhos, severos, amargos, impostos. Também entrei sem comprar o bilhete de viagem. Minha bagagem, pequena, cabia debaixo do banco — da segunda classe — sem incomodar. Contrabandeava poucos pertences: uma grande dor que doía o corpo inteiro e a vontade de encontrar um remédio capaz de remediar o incômodo. Até hoje o mundo ainda não atracou. Vou sem escolher o destino. O trem estancava na minha cidade, trocava de carga e reabastecia-se.
Minha irmã maior gostava de agulhas. Meu primeiro irmão mastigava vidro. Uma brisa morna morava na ponta dos dedos da quase moça. Ela trespassava na agulha uma linha, de azul profundo, e bordava. Tecia paisagens com ponto de cruz, miúdos, mas tão miúdos, que ficava difícil acreditar que não eram mares as águas que ela crucificava. Não erguia a cabeça quase nunca. Vivia curvada sobre os panos, construindo suas cruzes sobre um desconhecido calvário. Na testa trazia uma cicatriz enviesada. Os olhos exigiram lentes grossas para desanuviar o mundo. Ao brincar com sua boneca de celuloide, trancada no banheiro — escondendo-se do pai — caiu e levou muitos pontos. O medo bordou sua fronte com pontos de dor.
Um sonho fora do sono persistia em mim. Nasci afogado por ele: o de desvendar o mar. Afundar-me em sua grandeza, salgar-me em sua salmoura, esconder-me em suas ondas, surgir desafogado onde nem eu me sabia. Eu só desconfiava o mar por ouvir dizer. Numa infância sem surpresas, cercado pelas montanhas, o mar escondia-se depois de muito pensamento.
No princípio, eu guardava meu verbo amar debaixo de muita gramática. Se por prudência, também pelo medo de desbotá-lo ao deixá-lo vir à luz. Sempre vi a palavra penumbra como a claridade suficiente para proteger o amor. Quando longe do meu amor, ele se anunciava pelos crepúsculos, pelas noites sem sono, pelos pensamentos desocupados, pelas manhãs penetrando por debaixo das portas, pelas dores que doíam a pele por inteiro. A compaixão — sem lágrimas — de presenciar o tomate sendo dividido, eu creditava ao meu amor.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
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