Fui tomada por uma intensa ansiedade
quando comecei a sentir tontura e enjoos quase diários. Tinha
dezesseis anos e já havia visto muitas mulheres da fazenda pegarem
barriga. A primeira coisa a me causar repulsa foi o beiju de jatobá.
Saía devagar para o quintal, distante de casa, para colocar para
fora o que não caía bem. Não iria aguentar olhar para minha mãe e
meu pai e explicar o que estava acontecendo. Me preocupava ainda mais
a reação de Belonísia. Se estivesse mesmo grávida, teria que
deixar a casa e ir morar com Severo. Isso significava que nossos
laços seriam ao menos esgarçados. Não eram meros laços de irmãs:
havia o que nos unia de forma irremediável. Nos últimos dez anos,
embora preservássemos nossas individualidades, fortalecemos uma
ligação muito íntima, gestos e expressões que somente nós
sabíamos interpretar. Além disso, havia a minha desconfiança pelos
sentimentos que Belonísia nutria por Severo, embora naquele instante
fossem menos intensos que no passado. De qualquer forma, ela não
receberia a notícia muito bem. Poderia ser doloroso.
Continuava a encontrar Severo e
deitávamos juntos na terra, em lugares mais afastados da vista de
qualquer pessoa. Quando levantávamos, ele retirava de meu cabelo a
palha seca acumulada no chão. Sentia a minha preocupação. Estava
dispersa, preservava pouco do que me falava e compreendia tudo pela
metade. Quando comuniquei minhas suspeitas, que minhas regras não
haviam descido, senti seu rosto se iluminar. Assim como eu estava
aflita por tudo que teria que enfrentar quando meus pais
descobrissem, vi em suas expressões sentimentos diversos dos que me
afligiam. Severo ficou eufórico, subiu numa jaqueira de fronde
vistosa naquela atmosfera de galhos secos e retirou um fruto do seu
tronco para comermos juntos. Abriu a jaca viscosa com o facão que
trazia junto ao corpo e sorriu. O leite grudento minando da casca
aumentou ainda mais minha náusea. Mas gostei tanto de vê-lo agitado
que comi dois bagos, num esforço tremendo para fazê-los descer pela
garganta – era jaca mole e eu regurgitava tentando engolir – até
que prendi a respiração para mantê-los em meu estômago.
Ele voltou a falar sobre o desejo de sair
pela estrada e continuarmos a estudar, tentar a sorte, não queria
continuar trabalhando pelo resto da vida em Água Negra. Aqui já não
tem mais trabalho, dizia, talvez seja a hora de seguirmos. Você vem
comigo. Aquela ideia me deixou mais atordoada, não tinha condições
de pensar em nada. Era coisa demais acontecendo comigo e o mais
imediato a fazer era domar meu corpo. Depois contar tudo a meus pais
e enfrentar Belonísia. Era ela quem mais me preocupava e mais
ocupava meus pensamentos. Imaginar que seria mãe não havia me
deixado com a mesma empolgação que vi no semblante de Severo. Não
aludia a nenhum sentimento especial, pelo menos até aquele momento.
O tempo foi passando e a barriga começou
a despontar. Como estava mais magra, acho que ninguém notou, a não
ser eu mesma na hora do banho no rio. Me tornei mais solitária.
Sentia mais tristeza do que empolgação por tudo. Qualquer coisa me
fazia chorar. Quando viu o tempo passar, quis Severo. ele mesmo,
falar com meus pais, disse que não poderíamos adiar a confissão,
que quanto mais tempo passava, pior para todos. Meu primo era jovem,
mas tinha um senso de responsabilidade admirável desde criança. Ao
mesmo tempo era destemido, em nenhum momento pensou em se esquivar de
seu dever. Cada vez me sentia mais ligada à sua vida e quase não
ficava um dia sem vê-lo, mesmo ouvindo os queixumes de minha mãe
que perguntava para onde eu caminhava, que tanto tempo era esse que
passava sozinha.
Belonísia não expressou nada sobre o
que me ocorria, mas parecia saber o que estava acontecendo.
Possivelmente não desconfiava da gravidez, mas deduzia aonde ia com
minhas caminhadas. Ela própria estava mais solitária, pouco
interagia com nossos irmãos. Minha mãe creditava nossa melancolia à
seca que enfrentávamos, dizia que era o mal do tempo. Meu pai
prescreveu banhos, trazia as folhas da mata e entregava a minha mãe
que preparasse, na expectativa de que se revertesse o banzo que nos
assolava. Eu me envergonhava porque, além da omissão do que me
ocorria, havia planos para deixar Água Negra na calada da noite, sem
que eles soubessem. Severo não via outra opção diante do medo que
eu lhe relatava, estava paralisada por tudo. Já discutíamos os
caminhos, a melhor hora, o melhor dia, o que levaríamos e o que
faríamos depois. No início resisti à ideia de deixar a fazenda e
me afastar de todos. Mas gostava tanto de Severo, ele havia iluminado
meu horizonte com a possibilidade de uma vida além da fazenda. Era
difícil não me deixar seduzir pelos seus planos e entusiasmo. O
desalento que se abateu sobre todos com a prolongada estiagem
contrastava com o sopro de vida que tudo aquilo poderia ser para nós.
Se desse tudo certo, voltaríamos para dar melhores condições de
vida aos nossos pais e irmãos. Voltaríamos para retirá-los de lá.
Aquela fazenda sempre teria donos e nós éramos meros trabalhadores,
sem qualquer direito sobre ela. Não era justo ver Tio Servó e os
filhos crescendo espantando os chupins das plantações de arroz. Não
era justo ver meu pai e minha mãe envelhecendo, trabalhando de sol a
sol, sem descanso e sem qualquer garantia de conforto em sua velhice.
Mas não conseguia me empolgar da mesma forma que Severo com essa
possibilidade, e por isso às vezes me sentia mais abatida e confusa.
Foi naquele período, nas festas de jarê
que continuavam a acontecer, mais modestas, mas na esperança de se
mobilizar o panteão de encantados para que trouxessem a chuva e a
fertilidade à terra, que apareceu uma misteriosa encantada, de quem
nunca havíamos ouvido falar. Nada se sabia sobre ela entre os
encantados que corriam de boca em boca, muito menos havia sido vista
a se manifestar nas casas de jarê da região. Dona Miúda, viúva
que morava sozinha num descampado no final da estrada para o
cemitério da Viração e que sempre acompanhava as brincadeiras em
nossa casa, foi quem recebeu o espírito. Quando ela se anunciou como
Santa Rita Pescadeira, os tambores silenciaram e uma comoção tomou
conta dos presentes. Era possível distinguir os questionamentos no
meio da audiência, se a encantada de fato existia ou não, e por que
até então não havia se manifestado, já que aquele jarê era tão
antigo quanto a fazenda e os desbravadores daquela terra.
Naquele momento, com a roupa rota que
vestia, mas com um véu antigo e esgarçado cobrindo sua cabeça,
ouvimos sua voz fraca, quase inaudível, entoar uma cantiga, “Santa
Rita Pescadeira, cadê meu anzol? Cadê meu anzol? Que fui pescar no
mar”. A encantada, apesar da idade de dona Miúda, dava giros
hábeis na sala, ora como se jogasse uma rede de pesca no meio de
todos, ora correndo em evoluções como um rio em fúria. Alguns
pareciam estar perplexos e querendo desvendar o mistério da
aparição. Outros sorriam, talvez incrédulos, achando que a velha
Miúda havia enlouquecido e precisasse dos cuidados de meu pai.
No meio das evoluções, enquanto o fiapo
de voz da velha entoava a canção que parecia ter sido composta ali
mesmo para a ocasião, ela segurou meu braço com força. Não tentei
me desvencilhar, estava acostumada com a presença dos encantados nas
brincadeiras de jarê. Era a casa de meu pai, o curador Zeca Chapéu
Grande, e havia crescido entre loucos e preces, entre gritos e
xaropes de raiz, entre velas e tambores. A simples presença de um
encantado que eu não conhecia não seria capaz de me intimidar,
fosse uma real manifestação do encanto ou da loucura. Os olhos de
dona Miúda estavam turvos por trás do véu, cinzas, quase brancos.
Talvez fosse a catarata. Mas ela disse algo muito íntimo, que eu não
podia explicar, mas sabia bem o que poderia ser.
Ela falou sobre um filho, mas era uma
frase sem nexo que não recordo com exatidão, algo como “vai de
filho”. Falou também que eu estava para correr o mundo a cavalo,
animal que nossa família não tinha, o que me deixou ainda mais
atordoada. Que tudo iria mudar. E a sentença que permaneceu mais
exata em minha memória e resistiu aos golpes que minha vida sofreria
nos anos vindouros foi que “de seu movimento virá sua força e sua
derrota”.
A voz estava tão fraca que só eu pude
escutar o que dizia. Aquela mensagem se inscreveu em mim como uma
marca esculpida na rocha e atravessou meu espírito durante o tempo
que tenho sobre a terra.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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