segunda-feira, 19 de abril de 2021

Torto Arado / 14

Fui tomada por uma intensa ansiedade quando comecei a sentir tontura e enjoos quase diários. Tinha dezesseis anos e já havia visto muitas mulheres da fazenda pegarem barriga. A primeira coisa a me causar repulsa foi o beiju de jatobá. Saía devagar para o quintal, distante de casa, para colocar para fora o que não caía bem. Não iria aguentar olhar para minha mãe e meu pai e explicar o que estava acontecendo. Me preocupava ainda mais a reação de Belonísia. Se estivesse mesmo grávida, teria que deixar a casa e ir morar com Severo. Isso significava que nossos laços seriam ao menos esgarçados. Não eram meros laços de irmãs: havia o que nos unia de forma irremediável. Nos últimos dez anos, embora preservássemos nossas individualidades, fortalecemos uma ligação muito íntima, gestos e expressões que somente nós sabíamos interpretar. Além disso, havia a minha desconfiança pelos sentimentos que Belonísia nutria por Severo, embora naquele instante fossem menos intensos que no passado. De qualquer forma, ela não receberia a notícia muito bem. Poderia ser doloroso.
Continuava a encontrar Severo e deitávamos juntos na terra, em lugares mais afastados da vista de qualquer pessoa. Quando levantávamos, ele retirava de meu cabelo a palha seca acumulada no chão. Sentia a minha preocupação. Estava dispersa, preservava pouco do que me falava e compreendia tudo pela metade. Quando comuniquei minhas suspeitas, que minhas regras não haviam descido, senti seu rosto se iluminar. Assim como eu estava aflita por tudo que teria que enfrentar quando meus pais descobrissem, vi em suas expressões sentimentos diversos dos que me afligiam. Severo ficou eufórico, subiu numa jaqueira de fronde vistosa naquela atmosfera de galhos secos e retirou um fruto do seu tronco para comermos juntos. Abriu a jaca viscosa com o facão que trazia junto ao corpo e sorriu. O leite grudento minando da casca aumentou ainda mais minha náusea. Mas gostei tanto de vê-lo agitado que comi dois bagos, num esforço tremendo para fazê-los descer pela garganta – era jaca mole e eu regurgitava tentando engolir – até que prendi a respiração para mantê-los em meu estômago.
Ele voltou a falar sobre o desejo de sair pela estrada e continuarmos a estudar, tentar a sorte, não queria continuar trabalhando pelo resto da vida em Água Negra. Aqui já não tem mais trabalho, dizia, talvez seja a hora de seguirmos. Você vem comigo. Aquela ideia me deixou mais atordoada, não tinha condições de pensar em nada. Era coisa demais acontecendo comigo e o mais imediato a fazer era domar meu corpo. Depois contar tudo a meus pais e enfrentar Belonísia. Era ela quem mais me preocupava e mais ocupava meus pensamentos. Imaginar que seria mãe não havia me deixado com a mesma empolgação que vi no semblante de Severo. Não aludia a nenhum sentimento especial, pelo menos até aquele momento.
O tempo foi passando e a barriga começou a despontar. Como estava mais magra, acho que ninguém notou, a não ser eu mesma na hora do banho no rio. Me tornei mais solitária. Sentia mais tristeza do que empolgação por tudo. Qualquer coisa me fazia chorar. Quando viu o tempo passar, quis Severo. ele mesmo, falar com meus pais, disse que não poderíamos adiar a confissão, que quanto mais tempo passava, pior para todos. Meu primo era jovem, mas tinha um senso de responsabilidade admirável desde criança. Ao mesmo tempo era destemido, em nenhum momento pensou em se esquivar de seu dever. Cada vez me sentia mais ligada à sua vida e quase não ficava um dia sem vê-lo, mesmo ouvindo os queixumes de minha mãe que perguntava para onde eu caminhava, que tanto tempo era esse que passava sozinha.
Belonísia não expressou nada sobre o que me ocorria, mas parecia saber o que estava acontecendo. Possivelmente não desconfiava da gravidez, mas deduzia aonde ia com minhas caminhadas. Ela própria estava mais solitária, pouco interagia com nossos irmãos. Minha mãe creditava nossa melancolia à seca que enfrentávamos, dizia que era o mal do tempo. Meu pai prescreveu banhos, trazia as folhas da mata e entregava a minha mãe que preparasse, na expectativa de que se revertesse o banzo que nos assolava. Eu me envergonhava porque, além da omissão do que me ocorria, havia planos para deixar Água Negra na calada da noite, sem que eles soubessem. Severo não via outra opção diante do medo que eu lhe relatava, estava paralisada por tudo. Já discutíamos os caminhos, a melhor hora, o melhor dia, o que levaríamos e o que faríamos depois. No início resisti à ideia de deixar a fazenda e me afastar de todos. Mas gostava tanto de Severo, ele havia iluminado meu horizonte com a possibilidade de uma vida além da fazenda. Era difícil não me deixar seduzir pelos seus planos e entusiasmo. O desalento que se abateu sobre todos com a prolongada estiagem contrastava com o sopro de vida que tudo aquilo poderia ser para nós. Se desse tudo certo, voltaríamos para dar melhores condições de vida aos nossos pais e irmãos. Voltaríamos para retirá-los de lá. Aquela fazenda sempre teria donos e nós éramos meros trabalhadores, sem qualquer direito sobre ela. Não era justo ver Tio Servó e os filhos crescendo espantando os chupins das plantações de arroz. Não era justo ver meu pai e minha mãe envelhecendo, trabalhando de sol a sol, sem descanso e sem qualquer garantia de conforto em sua velhice. Mas não conseguia me empolgar da mesma forma que Severo com essa possibilidade, e por isso às vezes me sentia mais abatida e confusa.
Foi naquele período, nas festas de jarê que continuavam a acontecer, mais modestas, mas na esperança de se mobilizar o panteão de encantados para que trouxessem a chuva e a fertilidade à terra, que apareceu uma misteriosa encantada, de quem nunca havíamos ouvido falar. Nada se sabia sobre ela entre os encantados que corriam de boca em boca, muito menos havia sido vista a se manifestar nas casas de jarê da região. Dona Miúda, viúva que morava sozinha num descampado no final da estrada para o cemitério da Viração e que sempre acompanhava as brincadeiras em nossa casa, foi quem recebeu o espírito. Quando ela se anunciou como Santa Rita Pescadeira, os tambores silenciaram e uma comoção tomou conta dos presentes. Era possível distinguir os questionamentos no meio da audiência, se a encantada de fato existia ou não, e por que até então não havia se manifestado, já que aquele jarê era tão antigo quanto a fazenda e os desbravadores daquela terra.
Naquele momento, com a roupa rota que vestia, mas com um véu antigo e esgarçado cobrindo sua cabeça, ouvimos sua voz fraca, quase inaudível, entoar uma cantiga, “Santa Rita Pescadeira, cadê meu anzol? Cadê meu anzol? Que fui pescar no mar”. A encantada, apesar da idade de dona Miúda, dava giros hábeis na sala, ora como se jogasse uma rede de pesca no meio de todos, ora correndo em evoluções como um rio em fúria. Alguns pareciam estar perplexos e querendo desvendar o mistério da aparição. Outros sorriam, talvez incrédulos, achando que a velha Miúda havia enlouquecido e precisasse dos cuidados de meu pai.
No meio das evoluções, enquanto o fiapo de voz da velha entoava a canção que parecia ter sido composta ali mesmo para a ocasião, ela segurou meu braço com força. Não tentei me desvencilhar, estava acostumada com a presença dos encantados nas brincadeiras de jarê. Era a casa de meu pai, o curador Zeca Chapéu Grande, e havia crescido entre loucos e preces, entre gritos e xaropes de raiz, entre velas e tambores. A simples presença de um encantado que eu não conhecia não seria capaz de me intimidar, fosse uma real manifestação do encanto ou da loucura. Os olhos de dona Miúda estavam turvos por trás do véu, cinzas, quase brancos. Talvez fosse a catarata. Mas ela disse algo muito íntimo, que eu não podia explicar, mas sabia bem o que poderia ser.
Ela falou sobre um filho, mas era uma frase sem nexo que não recordo com exatidão, algo como “vai de filho”. Falou também que eu estava para correr o mundo a cavalo, animal que nossa família não tinha, o que me deixou ainda mais atordoada. Que tudo iria mudar. E a sentença que permaneceu mais exata em minha memória e resistiu aos golpes que minha vida sofreria nos anos vindouros foi que “de seu movimento virá sua força e sua derrota”.
A voz estava tão fraca que só eu pude escutar o que dizia. Aquela mensagem se inscreveu em mim como uma marca esculpida na rocha e atravessou meu espírito durante o tempo que tenho sobre a terra.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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