No ensaio anterior, escrevi sobre o
livre-arbítrio, se somos nós (ou não) que controlamos nossas
decisões. Meu interesse nesta questão veio de um convite para
participar de uma mesa-redonda, onde discutiria o assunto com colegas
da neurociência e da filosofia. Um dos livros que li antes do
evento, e que mencionei no texto anterior, foi o de autoria de Sam
Harris, em que argumenta, como fazem muitos, que o livre-arbítrio
não passa de uma ilusão: processos subconscientes ocorrendo no
cérebro sem o nosso controle parecem tomar decisões antes que
tenhamos consciência delas.
É como se um piloto automático,
localizado nas interações elusivas entre neurônios, estivesse no
controle de nossas vidas. Ainda mais chocante, vários experimentos
parecem concordar com essa conclusão. Na minha apresentação,
argumentei que a questão do livre-arbítrio é multidimensional e
não bipolar, e que, portanto, não pode ser reduzida a um simples
sim (o livre-arbítrio existe) ou não (todas as nossas decisões
ocorrem no subconsciente).
As decisões que tomamos no decorrer das
nossas vidas – a cor da blusa que vamos vestir numa festa, para
onde vamos nas férias ou se devemos ou não divorciar, por exemplo –
incluem um espectro muito amplo, que vai do trivial (café com açúcar
ou sem?) ao complexo (que profissão devo seguir?). As escolhas mais
difíceis são profundamente diferentes daquelas testadas no
laboratório. Mesmo que seja óbvio que as decisões que tomamos
nunca sejam de fato “livres” – visto que dependem do nosso
passado, de onde crescemos, da nossa dinâmica familiar, dos detalhes
sociais, genéticos e culturais das nossas vidas –, as decisões
que envolvem muitas etapas, que necessitam de tempo e ponderação
cuidadosa, parecem ser consequência de processos mentais em que
temos plena consciência do que está ocorrendo. Caso contrário,
acabamos tomando as famosas decisões impulsivas, que, em geral, não
dão muito certo.
O que não incluí no ensaio anterior foi
a questão do determinismo, essencial em qualquer discussão sobre o
livre-arbítrio. É disso que vamos falar agora. Em física, um
sistema é determinístico se o comportamento futuro (e passado) é
determinado pelo estado presente. Na prática, esses sistemas físicos
são descritos por equações que nos permitem determinar a evolução
no tempo: onde o objeto vai estar em certo momento do futuro. Tudo
depende, claro, de podermos ou não resolver as equações que
descrevem o sistema, algo bem mais fácil em teoria do que na
prática. Por exemplo, se deixarmos uma bola de gude cair de uma
certa altura, podemos usar a equação da queda livre de Galileu para
calcular quanto tempo demorará até bater no chão. Mas, se
trocarmos a bola por uma pena, a situação fica bem mais complicada,
devido ao maior impacto da resistência do ar no movimento da pena do
que no da bola de gude.
Apesar de ser determinístico, o
movimento da pena é tão complexo que não podemos prevê-lo em
detalhe. É comum associar a imagem de um mecanismo de relógio ao
determinismo. O sucesso da mecânica de Newton, elaborada por vários
outros filósofos naturais, como Jean-Baptiste d'Alembert,
Joseph-Louis Lagrange e William Hamilton, inspirou a busca por uma
racionalização total da Natureza, cerne do Iluminismo. Tanto assim
que, no início do século XIX, o francês Pierre Laplace escreveu
uma obra monumental, Mecânica celeste, na qual descrevia em detalhes
os movimentos de todos os planetas do sistema solar. Baseado em suas
equações e no sucesso do reducionismo de Newton, Laplace sugeriu
que, se uma supermente conhecesse as posições e as velocidades de
todas as partículas que compõem o mundo material, das estrelas ao
cérebro de cada ser humano, seria capaz de prever o futuro
precisamente: não só onde Marte ou Júpiter estarão às 13h21 do
dia 13 de maio de 2144, mas quando você nasceria, sua profissão,
quantos filhos teria etc.
Se o Universo fosse assim, tudo seria
determinado pelas leis da mecânica: o livre-arbítrio não
existiria. Seríamos meros autômatos, seguindo uma coreografia
predeterminada. Dentro desse cenário, é fácil entender por que os
românticos se rebelaram contra esse tipo de ultrarracionalização
da existência humana! Felizmente, esse tipo de determinismo é
impossível, ao menos dentro do que entendemos hoje. Não podemos
saber, em um mesmo instante de tempo, as posições e as velocidades
de todas as partículas que existem; primeiro, porque essa medida
teria que ser instantânea; e como fazer isso, quando estrelas estão
separadas por bilhões de anos-luz de distância? (A alternativa
seria supor que apenas Deus seria capaz disso, algo que foge ao
discurso científico.)
E que partículas seriam essas,
exatamente? Como reconstruir a realidade física hierarquicamente do
mais simples ao mais complexo, dos quarks e elétrons às pessoas,
planetas e galáxias? E as partículas que ainda não conhecemos? E
as que nunca iremos conhecer? Ademais, qualquer medida tem uma
precisão limitada, e nossa descrição do comportamento de sistemas
com interações complexas (dos movimentos do sistema solar às
reações bioquímicas numa célula) depende delicadamente dessas
medidas. Como nenhuma medida tem precisão absoluta, podemos apenas
prever o comportamento de sistemas complexos para intervalos de tempo
bem curtos e, mesmo assim, com incertezas.
Para selar o caixão do determinismo,
adicionamos a isso tudo a física quântica, que impõe um limite
absoluto à precisão com que podemos medir simultaneamente a
velocidade e a posição de uma partícula (o famoso Princípio da
Incerteza de Heisenberg). A alternativa, para aqueles que insistem
numa realidade determinística, é supor que somos cegos ao
determinismo que rege o Universo: o mecanismo de relógio existe, mas
muito além do alcance de nossos instrumentos e ideias. Vemos apenas
uma pequena parte da realidade, e não existe uma cura para essa
nossa miopia.
Segundo essa posição, a essência da
realidade é um mistério inacessível à razão humana. Me parece
que abraçar esse tipo de determinismo é simplesmente abraçar uma
versão metafísica de Deus: onisciente e inescrutável, cuja
existência é impossível de ser confirmada. O interessante é que,
nesse caso, nossa miopia é nossa bênção: é ela que nos permite a
ilusão do livre-arbítrio. Com isso, mesmo se o Universo for, na sua
essência mais profunda, determinístico, continuamos livres para
fazer nossas escolhas. Por outro lado, me parece bem mais razoável
aceitar a limitação do nosso conhecimento e abraçar o mistério da
essência da realidade sem fazer suposições fúteis, que jamais
podem ser comprovadas como sendo verdadeiras ou falsas.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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