O mais incrível é que o Sapo estava ali
havia 30 anos. E há mais de uma década nos cruzávamos na Rua da
Praia. Minha cabeça no alto, a dele no rés do chão. Eu mirando seu
rosto. Ele, os meus pés. Só dias atrás tive a coragem de me
agachar e nivelar nossos olhares, subvertendo as regras do jogo de
que ambos participávamos. Não nos reconhecemos.
Descobri que o nome dele é Alverindo.
Ele soube que me chamo Eliane. Contou-me que os amigos o conhecem por
“seu Vico”, e o povo da rua por Sapo. Por causa da eterna
posição, lambendo com a barriga as pedras da rua.
Contei-lhe que sou jornalista e
escreveria sobre ele. E então apertamos as mãos.
Eis o que conversamos:
– Como o senhor está?
– Com saúde e bastante preguiça.
Preguiça, pra dizer bem a verdade, até por dentro dos olhos.
– Como é a Rua da Praia aí de baixo?
– Olha, é só perna. Um mar de
pernas. Mas eu não vejo só perna, não. Vejo de tudo um pouco. Vejo
coisa que nem devia...
– O senhor é sem-vergonha...
– Sou o tipo mais esquisito do
mundo. Sou namorador. Meu único defeito é gostar de mulher.
– Como o senhor perdeu a força das
pernas?
– Tinha três meses quando peguei
uma gripe. Lá onde nasci, em Mariana Pimentel, 65 anos atrás. A mãe
me deu chá quente. Aí bateu um vento e eu nunca caminhei.
– Foi para a escola?
– Meu pai me levou, longe, de
carroça. Mas aí, no dia em que eu cheguei, um polaco me deu um
beliscão. E eu tasquei o lápis na perna dele. E aí acabou-se a
escola. Não voltei mais.
– E como o senhor veio parar aqui no
centro de Porto Alegre?
– Saí de casa com 15 anos e ganhava
a vida como peão. Tava capinando mandioca quando apareceu um
motorista de ônibus. Ele perguntou se eu queria mudar de vida. Me
trouxe de ônibus na Borges por três dias. Eu nunca mais saí do
centro e nunca mais botei a mão numa enxada.
Sapo, como a maioria dos pedintes do
centro, não está lá sozinho. É longa – e invisível – a rede
que se estende por trás de cada um deles. Sapo tem uma espécie de
segurança e motorista, Rogério Rodrigues, 53 anos, e uma namorada,
Márcia Luiza dos Santos Carvalho, 34 anos. Os dois o acompanham
durante a jornada, de segunda a sexta, das 9h às 18h. Às vezes
também no sábado.
Rogério era taxista, 35 anos de
trânsito, e costumava levar Sapo para casa, na Vila São Francisco,
em Guaíba. Teve uma ameaça de enfarte e os dois fizeram um acordo.
Ele, aparelho celular na cintura, protege Sapo na guerra do Centro,
pela comida e mais uns R$ 15 por dia. Quando Sapo ganha bem, Rogério
o leva para casa por R$ 30. Quando não ganha o suficiente, Sapo tem
de ir embora de ônibus. Na maioria dos dias, Rogério recebe, pelo
“trabalho”, uns R$ 45. No fim do mês embolsa perto de mil reais.
Márcia, mais conhecida como Baixinha,
não. É a companheira de Sapo. Ela cuida dele, faz comida, dá
banho, lava a roupa no barraco de duas peças. Em troca, ele sustenta
a mulher e suas quatro filhas, no casebre ao lado.
Sapo deposita ainda dinheiro no banco,
para os dias em que a laje da Rua da Praia ameaça virar lápide, tão
gelada está. Quanto ganha é um segredo que prometi guardar.
– O senhor gosta de estar aqui?
– Todo mundo me conhece. Não sou
ladrão. Não sou bandido.
– Quem dá mais dinheiro? Os homens ou
as mulheres?
– Deus botou um coração mole na
mulher. Elas me dão de cinco, de dez. Os homens, só moedinha. As
mulheres não, me enchem o bolso.
– O que faz nos finais de semana?
– Bebo uma brahminha e como um
pedaço de carne.
– O senhor tem pena de estar aqui,
deitado na rua?
– Tenho pena dos cegos. Eles dão
cada pechada... Deus me tirou as pernas, mas me deu um ganha-pão.
– É verdade que o senhor está aqui há
30 anos?
– Tô aqui desde o tempo daquele
dinheiro cor de abóbora. Como era o nome mesmo?
– Não lembro. E qual é a melhor de
todas as moedas que os economistas inventaram?
– Aquela que a gente ganha.
– O senhor trabalha no inverno e no
verão?
– No inverno não, a laje fica muito
fria. Sou igual formiga. Trabalho no verão para ter no inverno.
– E onde guarda o dinheiro?
– Na barriga. E no banco.
– Se o senhor fica sentado, as pessoas
dão menos dinheiro porque o senhor parece menos frágil?
– É. Fico me fazendo de leitão.
– E o mundo é bom?
– O mundo é, as pessoas é que não
prestam.
– É gremista ou colorado?
– Colorado. Porque meu sangue é
vermelho. Se colocassem azul eu não andava.
– Como é ver o mundo de baixo para
cima?
– É mais bonito de baixo para cima
do que de cima para baixo. A gente vê muita beleza...
Sapo ainda conta que seu sonho é ganhar
uma cadeira de rodas. Mas com motor, que é para ele conseguir subir
as lombas que hoje escala de quatro, feito bicho. Descubro assim que
Sapo quer deixar de ser sapo. Nos despedimos. Ele me convida para um
churrasco na Páscoa. Acostumado à tragédia de pagar por tudo que
tem, inclusive o afeto, diz que se eu concordar em ir, me paga o
táxi. Eu digo que não precisa, que vou por gosto. Apertamos as
mãos. Eu volto para o alto.
Eliane Brum, in A vida que ninguém vê
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