Há
tanta história horrivelmente triste sobre interrogatórios e
prisões, que acho que vale a pena contar uma, verdadeira e
engraçada, acontecida há algum tempo. Altero apenas os nomes dos
personagens, mas garanto a autenticidade do caso, que está
registrado em cartório.
Uma
senhora (por sinal bem bonita) passou um telegrama a um cavalheiro,
com quem andava de amores. O telegrama era um tanto estranho; foi
retido, e a sua remetente, detida, passou toda uma noite na polícia.
Eis o relato de seu interrogatório: "Aos dez dias do mês de
outubro de mil novecentos e... às vinte e três horas e trinta
minutos, na Delegacia de Ordem Política e Social, compareceu Maria
da Silva, brasileira, desquitada, com 33 anos, residente na rua tal,
número tal, apartamento tal, em Copacabana, a fim de esclarecer um
telegrama que fora passado e interceptado na Agência Telegráfica do
Galeão.Tendo a declarante sido inquirida, DISSE: A propósito de um
telegrama que fora interceptado na Agência Telegráfica do Galeão,
expedido pela declarante no dia 9 do corrente mês, aproximadamente
às 13 horas, em que figurava como destinatário o sr. Dr. João
Silveira, residente na rua tal, número tal, em Belo Horizonte,
vazado nos seguintes termos: Tombai — Igreja — Arco-íris —
Borboleta — Camelo — Pressão baixa — Rosas vermelhas —
Pianista — Vitória — Bahia — Recife — Aeroporto — Eu te
amo — Saudades — Maria’, esclareceu a declarante: POMBAL — se
refere a um pombal existente no Parque de Florianópolis, que, visto
ao entardecer, causou a ambos grande impressão; IGREJA — templo
católico no Recife onde ambos fizeram um pedido; ARCO-ÍRIS —
sensação visual experimentada pela declarante, quando viajava de
avião, a baixa altura, em companhia do Dr. João Silveira, ao verem
eles, por cinco vezes consecutivas, a aparição de um arco-íris, no
trajeto entre Rio e Ilhéus; BORBOLETA — sendo a declarante
supersticiosa e acreditando que borboleta amarela traz sorte, e tendo
visto uma no início e outra no fim da viagem, ficou impressionada;
CAMELO — que a declarante, ao visitar o Parque de Florianópolis em
companhia do Dr. João Silveira, teve a oportunidade de se dirigir a
um camelo nos seguintes termos: ‘Senhor camelo, o senhor não
preferia estar agora no deserto, a estar aqui neste parque com todo o
conforto?’ Que o camelo, com um gesto afirmativo de cabeça,
confirmou. Que a declarante fez questão de esclarecer que, tendo
sido assistente de Zoologia no Jardim Zoológico do Rio de Janeiro de
mil novecentos e sessenta a mil novecentos e sessenta e dois,
devotava grande afeição aos animais, especialmente ao camelo, pela
sua solidão; PRESSÃO BAIXA — que o Dr. João Silveira, ao se
despedir, frequentemente, da declarante, demonstrava a sua tristeza
ao se separar com a sua forte queda de pressão; ROSAS VERMELHAS —
que a declarante sempre se acha cercada de rosas vermelhas e, quando
obsequiada pelo Dr. João com essas flores, dá a isso enorme valor;
PIANISTA — esclareceu que se refere a um pianista que toca
maravilhosamente, apesar de cego, num restaurante em Recife, de nome
Restaurante Leite, e que nessa viagem teve a oportunidade de
distinguir o casal, com a música de sua predileção: O Amor É a
Coisa Mais Esplêndida do Mundo; VITÓRIA — BAHIA — RECIFE —
localidades onde o casal esteve e sobretudo onde teve a ocasião de
experimentar essas sensações; AEROPORTO — local das despedidas do
casal, onde sempre um levava saudades do que ficava; EU TE AMO —
que a declarante acha desnecessário, digo, que a frase em si
dispensa maiores esclarecimentos; e finalmente: SAUDADES — que a
declarante afirma que só quem a sente é quem sabe, e que só usou
essa frase como despedida; que, perguntado à declarante sobre a
razão da expedição do referido telegrama, esclareceu que o mesmo
tinha o objetivo de reviver momentos felizes que viveram em comum,
dando a ele uma surpresa agradável no meio de sua vida atribulada de
homem de negócios; que a declarante faz questão de esclarecer que
não havia nenhuma intenção subversiva e que essa declaração e
esses incidentes referidos poderão ser confirmados pelo dr. João;
que a declarante, no ato de suas declarações, se compromete a
comparecer a esta delegacia a qualquer momento, a respeito do
referido assunto.
E
mais não disse nem lhe foi perguntado. E como nada mais houvesse a
lavrar, mandou a autoridade encerrar o presente, o qual, depois de
lido e achado conforme, assina com a declarante.
Eu,
Fulano de Tal, escrivão, o datilografei e assino.
Dezembro,
1969
Rubem
Braga, in Recado de primavera
Nenhum comentário:
Postar um comentário