domingo, 25 de abril de 2021

O conde decaído

 


Ele está lá. Quase ninguém vê, mas está. A maior lição sobre a relatividade do poder. A fugacidade da fama. A efemeridade da glória. Ele, o Conde de Porto Alegre. Manoel Marques de Souza. Terceiro varão de uma dinastia de centauros de espada em riste. Parido na guerra, pela guerra. Engatinhando nas poças de sangue dos campos de batalha, a pele do rosto feita couro pelos ventos do pampa. Aos 13 anos despedindo-se da casa da mãe para se entreverar com os castelhanos. Aristocrata da guerra, virou barão, visconde e por fim um conde, os dois últimos na Guerra do Paraguai. Morreu embebido em dores e feitos, a mortalha bordada de galões e medalhas. E era tão importante, mas tão importante, o nome estendido como um pelego de brios sobre as coxilhas do Rio Grande, que mereceu a primeiríssima estátua cravada na mui leal e valorosa Porto Alegre. Título, aliás, que ele conquistou para a capital ao arrancar a cidade dos arcabuzes farrapos.
O ano era 1885. O conde eternizado em mármore. A princesa Isabel em distintíssima pessoa veio instalar o herói na praça que levava o nome de seu pai, dom Pedro II. E com tal entusiasmo que pode muito bem ter plantado uma pulga no penteado da condessa viúva: “As nobilíssimas condecorações que lhe ornavam o másculo peito, com a ponta de sua fulgurante espada...” E por aí foi o real discurso.
Pois então. Não foram 15 segundos de fama como uns e outros e, mesmo assim, onde acabou? Num insignificante triângulo entre a Duque de Caxias e a Riachuelo, batizado com seu pomposo nome. Sei lá quem é aquele velho, irrita-se o mendigo do lugar. Quem diria. O conde! O conde! Reduzido àquele velho... Ele, que partia para a batalha como se fosse para um salão de baile. Marchava para o combate de luvas brancas. Agora com a sobrecasaca de guerra coberta de limo, a mesma que a lenda conta ter as abas 47 vezes perfuradas pelas balas inimigas na segunda batalha de Tuiuti. O conde, acostumado ao cheiro do sangue derramado pela pátria, condenado agora ao fedor do mijo. Porque, sim, urinam na estátua do conde. Cheiro tão forte e tão constante que, mesmo que lhe reste ainda algum admirador, não haveria como chegar perto. O conde cheirando como um zorrilho. Que lição para uns e outros, para tantos.
Durou exatos 27 anos a sua glória em mármore. Durou até muito tempo, dadas as circunstâncias. Porque a República proclamada em 1889 lançou uns à porta da frente e outros ao curral do poder. Nada muito radical, que eram todos cavalheiros e cavalheiros queriam se manter. Fundamental mesmo era que os peões continuassem onde sempre estiveram, embuchando os canhões de uns e também de outros. O fato é que, se dom Pedro II perdeu o posto na vida, pareceu justo que também o perdesse na praça de todos os poderes, que desde então virou Marechal Deodoro. E se o imperador perdeu o lugar, o que sobraria então para o conde. Foi quando sua estátua teve de ceder a vaga para a do republicano Júlio de Castilhos. Rumou para a praça que era a do Portão – mas como o portão não tinha boca nem correligionários para reclamar sua sorte, já tinha sido rebatizada antes como General Marques e, naquela ocasião, Conde de Porto Alegre.
Não foi em sacrossanta paz que se passou. Afinal, a condessa ainda era viva e os antigos donos do poder não eram gato morto para serem chutados com tanta sem-cerimônia. A Federação, jornal do partido republicano, disfarçou o que pôde para agradar aos inimigos de ocasião, mas não de privilégios. Foi assim que noticiou o traslado da estátua ocorrido na tarde de 12 de outubro de 1912: “Foi uma verdadeira festa cívica a solemnidade com que se realisou o acto official da inauguração da estatua do invicto general, conde de Porto Alegre... O povo affluiu em grande massa ao local da inauguração, sendo numerosa também a concurrencia de familias. Os gymnasios trajavam uniforme kaki, de polainas e luvas brancas...” Achylles Porto Alegre “recitou soneto de sua lavra”, que terminava em trágico estilo: “Basta! Basta! Silencio! Elle era a gloria.” Ahã!
Nem na primeira página! Publicaram essa pérola da diplomacia na página dois. A primeira era ocupada por uma digressão deveras curiosa: “O recente projecto do divorcio que dorme sob a classica pedra tumular despertou uma propaganda adversa, feita por meio de conferencias, no centro cattolico desta capital”. E discorria sobre uma tese que comprovava o aumento dos “hediondos crimes de infanticidios” em todos os países que ousaram adotar tal heresia. Enveredando logo em seguida para a notícia de que o grande tenor Caruso havia sido coroado com um par de chifres pela “graciosa soprano” Ada Giacchetti, fato nominado como “um episodio profano entre artistas de alto cotturno, um desaguisado entre diva e divo”.
Pobre conde decaído, soçobrando entre anúncios de “pilulas orientaes” para aformosear os seios e Uroformina Giffoni para “gonorrheas”. Numa edição que ainda exibia um acirradíssimo match de Foot Ball entre o Fussball Club Porto Alegre e o Club Recreio Juvenil, onde “sucederam-se de momento a momento as cargas cerradas ao goal”. Tsc, tsc.
A Federação ainda teve o desplante de registrar que a “estatua ficou collocada num lugar de bastante destaque, fazendo frente para o ponto mais transitado da praça”. No que foi raivosamente contestada em crônica de Mário Totta nas páginas do concorrente Correio do Povo: “E correram-te da praça... O que os inimigos da tua pátria nunca puderam fazer, (...) os teus patrícios fizeram-te ainda ontem – desalojaram-te. Vivo tu, ninguém o faria; morto correram-te.”
Assim é a vida, como também a morte, e é bom que alguns muitos aprendam com o Conde de Porto Alegre. Porque ainda, ainda não era tudo. Por volta de 1970 viraram o conde. Assim, como se faz com um velho entrevado. Se mais uma vez cometeram esse desrespeito, não parece haver registro. O certo é que o olhar altaneiro, longínquo, que costumava pousar sobre os campos de batalha antes de esmagar o inimigo, está hoje condenado à tediosa visão de uma loja de artigos de cama, mesa e banho. Até a espada, que ele trazia cintilante, para que os inimigos nela pudessem mirar-se na hora da morte, se quebrou em uma dessas andanças. O conde – quanta ironia! – ficou sem espada, sem poder, sem fama e sem glória. Como o mais infeliz, o mais miserável de seus soldados.
No fim tudo é pó. Esquecimento. E o inconfundível cheiro de urina. E se aconteceu com o conde – o conde! – pode acontecer com qualquer um. O Conde de Porto Alegre reduzido a uma vida que ninguém vê num canto da cidade.

Eliane Brum, in A vida que ninguém vê

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