Surpreendi-me. Não é que abusava de
minha boa vontade? Por que mantinha ele um ar de tão denso mistério?
Podia contar seus segredos sem receio de qualquer julgamento. Meu
estado de embriaguez me inclinava especialmente à benevolência e
além disso, afinal, ele não passava de um estranho qualquer... Por
que não falava ele de sua vida com a objetividade com que pedira o
copo de chope ao garçom?
Recusava-me a conceder-lhe o direito de
ter uma alma própria, cheia de preconceitos e de amor por si mesmo.
Um destroço daqueles, com a inteligência suficiente para saber que
era um destroço, não deveria ter claros e escuros, como eu, que
podia contar minha vida desde o tempo em que meus avós ainda não se
conheciam. Eu possuía o direito de ter pudor e de não me revelar.
Era consciente, sabia que ria, que sofria, lera obras sobre o
budismo, fariam um epitáfio sobre meu túmulo quando morresse. E
embebedava-me não puramente, mas com um objetivo: Eu era alguém.
Mas aquele homem que jamais sairia de seu
estreito círculo, nem bastante feio, nem bastante bonito, o queixo
fugitivo, tão importante como um cão trotando – que pretendia com
seu arrogante silêncio? Não o interrogara várias vezes? Ele me
ofendia. Mais um instante, não suportaria sua insolência,
fazendo-lhe ver que deveria agradecer minha aproximação, porque do
contrário nunca eu saberia de sua existência. No entanto ele
persistia em seu mutismo, sem sequer emocionar-se com a oportunidade
de viver.
Naquela noite eu já bebera bastante.
Andava de bar em bar, até que, excessivamente feliz, temi
ultrapassar-me: estava por demais ajustado em mim mesmo. Procurei um
meio de me derramar um pouco, antes que transbordasse inteiramente.
Liguei o telefone e esperei, mal
respirando de impaciência:
– Alô, Ema!
– Oh, meu bem, a essa hora!
Desliguei. Era mentira? O tom era
verdadeiro, a energia, a beleza, o amor, aquela ânsia de dar meu
excesso eram verdadeiros. Só era mentira a frase imaginada tão sem
esforço.
No entanto não estava contente ainda.
Ema tinha vaga ideia de que eu era diferente e debitava nessa conta
tudo que de estranho eu pudesse fazer. De tal modo me aceitava, que
eu ficava só quando estávamos juntos. E naquele momento evitava
precisamente a solidão que seria uma bebida forte demais.
Andei pelas ruas, pensando: escolherei
alguém que nunca tenha imaginado me merecer.
Procurei um homem ou uma mulher. Mas
ninguém me agradava particularmente. Todos pareciam bastar-se, rodar
dentro de seus próprios pensamentos. Ninguém precisava de mim.
Até que o vi. Igual a todos. Mas tão
igual a todos que formavam um tipo. Este, resolvi, este.
E... ei-lo! Embriagado à custa de meu
dinheiro e... silencioso, como se nada me devesse...
Movíamo-nos lentamente, as raras
palavras – vagas, soltas, sob a luz fraca do botequim que
prolongava os rostos em sombras. Ao redor de nós, algumas pessoas
jogavam, bebiam, conversavam, em um tom mais forte. O torpor
amolecia, sem cintilações. Talvez por isso ele custasse tanto a
falar. Mas alguma coisa dizia-me que ele não estava tão embriagado
e que silenciava simplesmente por não reconhecer minha
superioridade.
Eu bebia devagar, os cotovelos sobre a
mesa, perscrutando-o. Quanto ao outro – abandonara-se na cadeira,
os pés estirados, atingindo os meus, os braços largados sobre a
mesa.
– Então? – disse eu impaciente.
Ele pareceu despertar, olhou para os
lados e retomou:
– Então... então... nada.
– Mas o senhor estava falando sobre seu
filho!...
Ele olhou-me um instante. Depois sorriu:
– Ah, sim. Pois é, ele está mal.
– Que é que ele tem?
– Angina, o farmacêutico disse angina.
– Com quem está o menino?
– Junto da mãe.
– E o senhor não fica junto dela?
– Pra quê?
– Meu Deus... Pelo menos para sofrer
com ela... O senhor é casado com a moça?
– Não, não sou casado não.
– Que desgraça! – disse eu, embora
sem saber em que consistia ela propriamente. – Precisamos fazer
alguma coisa. Imagine se o filho morre, ela fica sozinha...
Ele não se emocionava.
– Imagine-a de olhos ardentes, junto da
criança. A criança estertorando, morrendo. Morre. Sua cabecinha
está torta, os olhos abertos, fixos na parede, obstinadamente. Tudo
está em silêncio e a moça não sabe o que fazer. O menino morreu e
ela de repente ficou desocupada. Cai sobre a cama, chorando, rasgando
a roupa: “Meu filho, meu pobre filho! É a morte, é a morte!” Os
ratos da casa se assustam e começam a correr pelo quarto. Sobem pelo
rosto de seu filho, ainda quente, roem sua boquinha. A mulher dá um
grito e desmaia, durante duas horas. Os ratos também visitam o seu
corpo, alegres, rápidos, os dentinhos roendo aqui e ali.
Estava tão imerso na descrição que me
esquecera do homem. Olhei-o de repente e surpreendi sua boca aberta,
o queixo encostado no peito, ouvindo.
Sorri triunfante.
– Ela acorda do desmaio e nem sabe onde
está. Olha de um lado para outro, levanta-se e os ratos fogem. Então
surpreende o menino morto. Dessa vez não chora. Senta-se numa
cadeira, junto da caminha e ali fica sem pensar, sem se mover. Os
vizinhos, estranhando a falta de notícias, batem à sua porta. Ela
atende a todos muito delicadamente e diz: “Ele está melhor.” Os
vizinhos entram e veem que ele morreu. Temem que ela ainda não saiba
e preparam o choque, dizendo: “Quem sabe se é bom chamar o
farmacêutico?” Ela responde: “Pra quê? pois se ele morreu.”
Então todos ficam tristes e tentam chorar. Dizem: “É preciso
cuidar do enterro.” Ela responde: “Pra quê? pois se ele já
morreu.” Dizem: “Vamos chamar um padre.” Ela responde: “Pra
quê? pois se ele já morreu.” Os vizinhos se assustam e pensam que
ela está louca. Não sabem o que fazer. E como não têm nada com a
história, vão dormir. Ou talvez seja assim: o menino morra e ela
seja como o senhor, lisa de sentimentos, e não ligue muito.
Praticamente de ataraxia, sem o saber. Ou o senhor não sabe o que é
ataraxia?
A cabeça deitada sobre os braços, ele
não se movia. Por um instante assustei-me. E se estivesse morto?
Sacudi-o com força e ele ergueu a cabeça, mal conseguindo fitar-me
com os olhos sonolentos. Adormecera. Olhei-o zangado.
– Ah, então...
– O quê? – Tirou um palito do
paliteiro e meteu-o na boca, devagar, completamente bêbedo.
Rompi numa gargalhada.
– O senhor está louco? Pois se não
comeu nada!...
A cena me pareceu tão cômica que me
torci de rir. As lágrimas já me chegavam aos olhos e escorriam pelo
rosto. Algumas pessoas voltaram a cabeça para meu lado. Já não
tinha mais vontade de rir e no entanto continuava. Já pensava em
outra coisa e no entanto ria sem parar. Estaquei de súbito.
– O senhor está brincando comigo?
Pensa que vou abandoná-lo, assim, pacificamente? Deixá-lo continuar
um caminho fácil, mesmo depois de ter se chocado comigo? Ah, nunca.
Se for preciso, farei confissões. Contarei tanta coisa... Mas talvez
o senhor não compreenda: somos diferentes. Sofro, em mim os
sentimentos estão solidificados, diferenciados, já nascem com
rótulo, conscientes de si mesmos. Quanto ao senhor... Uma nebulosa
de homem. Talvez seu bisneto já consiga sofrer mais... Isso não
importa, porém: quanto mais difícil a tarefa, mais atraente, como
disse Ema antes de nosso noivado. Por isso vou jogar meu anzol dentro
do senhor. Talvez ele se ligue ao germe do seu bisneto sofredor. Quem
sabe?
– É – disse ele.
Debrucei-me sobre a mesa, procurando-o
com fúria:
– Escute-me, amigo, a lua está alta no
céu. Você não tem medo? O desamparo que vem da natureza. Esse
luar, pense bem, esse luar mais branco que o rosto de um morto, tão
distante e silencioso, esse luar assistiu aos gritos dos primeiros
monstros sobre a terra, velou sobre as águas apaziguadas dos
dilúvios e das enchentes, iluminou séculos de noites e apagou-se em
seculares madrugadas... Pense, meu amigo, esse luar será o mesmo
espectro tranquilo quando não mais existirem as marcas dos netos dos
seus bisnetos. Humilhe-se diante dele. Você apareceu um instante e
ele é sempre. Não sofre, amigo? Eu... eu por mim não suporto.
Dói-me aqui, no centro do coração, ter que morrer um dia e,
milhares de séculos depois, indiferenciado em húmus, sem olhos para
o resto da eternidade, eu, EU , sem olhos para o resto da
eternidade... e a lua indiferente e triunfante, mãos pálidas
estendidas sobre novos homens, novas coisas, outros seres. E eu
Morto! – respirei profundamente. – Pense, amigo. Agora mesmo ela
está sobre o cemitério também. O cemitério, lá onde dormem todos
os que foram e nunca mais serão. Lá, onde o menor sussurro arrepia
um vivo de terror e onde a tranquilidade das estrelas amordaça
nossos gritos e estarrece nossos olhos. Lá, onde não se tem
lágrimas nem pensamentos que exprimam a profunda miséria de acabar.
Debrucei-me sobre a mesa, escondi o rosto
nas mãos e chorei. Dizia baixinho:
– Não quero morrer! Não quero
morrer...
Ele, o homem, mexia com o palito nos
dentes.
– Mas se o senhor nada comeu –
insisti, enxugando os olhos.
– O quê?
– “O quê” o quê?
– Hein?
– Mas, meu Deus, “hein” o quê?
– Ah...
– O senhor não tem vergonha?
– Eu?
– Ouça, vou dizer mais: eu queria
morrer vivo, descendo ao meu próprio túmulo e eu mesmo fechá-lo,
com uma pancada seca. E depois enlouquecer de dor na escuridão da
terra. Mas não a inconsciência.
Ele continuava com o palito na boca.
Depois foi muito bom porque o vinho
estava misturando-se. Peguei também um palito e segurei-o entre os
dedos como se fosse fumá-lo.
– Eu fazia assim em pequeno. E o prazer
era maior do que o atual, quando fumo realmente.
– É claro.
– É claro coisa alguma... Não estou
pedindo aprovação.
As palavras vagas, as frases arrastadas
sem significado... Tão bom, tão suave... Ou era o sono?
De repente, ele tirou o palito da boca,
os olhos piscando, os lábios trêmulos como se fosse chorar, disse:
Clarice Lispector, in Todos os contos
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