Non in
depravatis, sed in his quoe bene
secundum naturam
se habent, considerandum est
quid sit
naturale.
Aristóteles,
Política, livro I, cap. II.
É do homem que
tenho de falar; e a questão que examino me ensina que vou falar a
homens; com efeito, não se propõem semelhantes questões quando se
teme honrar a verdade. Defenderei, pois, com confiança, a causa da
humanidade perante os sábios que a tal me convidam, e não ficarei
descontente comigo se me tornar digno do meu assunto e dos meus
juízes.
Concebo na espécie
humana duas espécies de desigualdade: uma, que chamo de natural ou
física, porque é estabelecida pela natureza, e que consiste na
diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das
qualidades do espírito, ou da alma; a outra, que se pode chamar de
desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de
convenção, e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo
consentimento dos homens. Consiste esta nos diferentes privilégios
de que gozam alguns com prejuízo dos outros, como ser mais ricos,
mais honrados, mais poderosos do que os outros, ou mesmo fazerem-se
obedecer por eles.
Não se pode
perguntar qual é a fonte da desigualdade natural, porque a resposta
se encontraria enunciada na simples definição da palavra. Ainda
menos se pode procurar se haveria alguma ligação essencial entre as
duas desigualdades, pois isso equivaleria a perguntar, por outras
palavras, se aqueles que mandam valem necessariamente mais do que os
que obedecem, e se a força do corpo e do espírito, a sabedoria ou a
virtude, se encontram sempre nos mesmos indivíduos em proporção do
poder ou da riqueza: questão talvez boa para ser agitada entre
escravos ouvidos por seus senhores, mas que não convém a homens
razoáveis e livres, que buscam a verdade.
De que, pois, se
trata precisamente neste discurso? De marcar no progresso das coisas
o momento em que, sucedendo o direito à violência, a natureza foi
submetida à lei; explicar por que encadeamento de prodígios o forte
pode resolver-se a servir o fraco, e o povo a procurar um repouso em
ideia pelo preço de uma felicidade real.
Os filósofos que
examinaram os fundamentos da sociedade sentiram a necessidade de
remontar até ao estado de natureza, mas nenhum deles aí chegou. Uns
não vacilaram em supor no homem desse estado a noção do justo e do
injusto, sem se inquietar de mostrar que ele devia ter essa noção,
nem mesmo que ela lhe fosse útil. Outros falaram do direito natural
que cada qual tem de conservar o que lhe pertence, sem explicar o que
entendiam por pertencer. Outros, dando primeiro ao mais forte
autoridade sobre o mais fraco, fizeram logo nascer o governo, sem
pensar no tempo que se devia ter escoado antes que o sentido das
palavras autoridade e governo pudesse existir entre os homens. Enfim,
todos, falando sem cessar de necessidade, de avidez, de opressão, de
desejos e de orgulho, transportaram ao estado de natureza ideias que
tomaram na sociedade: falavam do homem selvagem e pintavam o homem
civil. Não ocorreu mesmo ao espírito da maior parte dos nossos
duvidar que o estado de natureza tivesse existido, quando é
evidente, pela leitura dos livros sagrados, que o primeiro homem,
tendo recebido imediatamente de Deus luzes e preceitos, não estava
também nesse estado, e que, acrescentando aos escritos de Moisés a
fé que lhes deve toda filosofia cristã, é preciso negar que, mesmo
antes do dilúvio, os homens jamais se encontrassem no puro estado de
natureza, a menos que, não tenham nele caído de novo por algum
acontecimento extraordinário: paradoxo muito embaraçante para ser
defendido e absolutamente impossível de ser provado.
Comecemos, pois,
por afastar todos os fatos, pois não se ligam à questão. É
preciso não considerar as pesquisas, nas quais se pode entrar sobre
este assunto, como verdades históricas, mas, somente como
raciocínios hipotéticos e condicionais, mais próprios, para
esclarecer a natureza das coisas do que para mostrar a sua verdadeira
origem, e semelhantes aos que todos os dias fazem os nossos físicos
sobre a formação do mundo. A religião nos ordena a crer que o
próprio Deus, tendo tirado os homens do estado de natureza
imediatamente depois da criação, eles são desiguais porque ele
quis que o fossem; proíbe-nos, porém, de formar conjecturas,
tiradas somente da natureza do homem e dos seres que o rodeiam, sobre
o que poderia ter acontecido ao gênero humano se tivesse ficado
abandonado a si mesmo.
Eis o que me
perguntam e o que me proponho examinar neste discurso. Como o meu
assunto interessa o homem em geral, procurarei uma linguagem que
convenha a todas as nações; ou antes, esquecendo o tempo e os
lugares, para só pensar nos homens a quem falo, suponho-me no liceu
de Atenas, repetindo as lições dos meus mestres, tendo os Platão e
os Xenócrates como juízes e o gênero humano como ouvinte.
Oh homem, de
qualquer região que sejas, quaisquer que sejam as tuas opiniões,
escuta: eis a tua história, tal como julguei lê-la, não nos livros
dos teus semelhantes, que são mentirosos, mas na natureza, que não
mente nunca. Tudo o que partir dela será verdadeiro; de falso só
haverá o que eu acrescentar de meu sem o querer. Os tempos de que
vou falar são bem remotos: como estás diferente do que eras! É,
por assim dizer, a vida de tua espécie que te vou descrever segundo
as qualidades que recebeste, que tua educação e teus hábitos
puderam depravar, mas que não puderam destruir.
Há, eu o sinto,
uma idade na qual o homem individual desejaria parar: tu procurarás
a idade na qual desejarias que a tua espécie parasse. Descontente do
teu estado presente pelas razões que anunciam à tua posteridade
infeliz maiores descontentamentos ainda, talvez quisesses
retrogradar; e esse sentimento deve constituir o elogio dos teus
primeiros ancestrais, a crítica dos teus contemporâneos e o espanto
dos que tiverem a desgraça de viver depois de ti.
Jean-Jacques Rousseau, in A origem da desigualdade
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