sexta-feira, 16 de abril de 2021

De mel a pior

 


Qual é a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo adequar? – pergunta-me ele ao telefone.
Nós adequamos – respondo com segurança.
Primeira do singular – insiste ele.
Espera lá, deixe ver. Com essa você me pegou.
E arrisco, vacilante:
Eu adéquo?
Não, senhor.
Eu adeqúo? Não pode ser.
E não é mesmo.
Então como é que é?
Quer dizer que você não sabe?
Deixe de suspense. Diga logo.
Não tem. É verbo defectivo.
E você me telefonou para isso?
Verbo defectivo. Tudo bem. Eu não teria mesmo oportunidade de usar esse verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Nunca me adéquo a questões como esta.
Presente do indicativo ou indicativo presente? – é a minha vez de perguntar. – No nosso tempo era indicativo presente.
E é a vez dele não saber. Desculpa-se dizendo que andaram mudando tanto a nomenclatura gramatical, que a gente acaba não sabendo mais nada.
E o verbo delinquir? – torna ele.
Que é que tem o verbo delinquir – quero saber, cauteloso.
A primeira do singular?
Não tem. Também é defectivo.
Mas ele é teimoso:
E se um criminoso quiser dizer que não delinque mais?
Se usar esse verbo, já delinquiu.
E acrescento, num tom de quem não sabe outra coisa na vida:
Além do mais, leva trema no u. Para que se fale delincuir, que é a pronúncia correta.
Quem fala delinqir, sem o u, vai ver é da polícia.
Ou quem fala tóchico, como diz o Millôr.
O Millôr fala tóchico?
Não. O Millôr é que disse que quem fala... Ora, deixa para lá.
Ele volta à carga:
O trema já não foi abolido?
Que abolido nada. Aboliram tudo, menos o trema.
Por falar nisso, outro verbo defectivo.
Qual?
Abolir: não tem primeira do singular.
Como não tem? – reajo. – Eu abulo.
Neste caso seria eu abolo.
Coisa nenhuma. Eu abulo, sim senhor.
E invoco a autoridade de quem sabe o que diz:
Não é eu expludo? Pelo menos o Figueiredo não me deixa mentir.
O Cândido ou o Fidelino?
O João mesmo. O presidente. Ele falou expludo e não explodo.
Se vale essa regra, deveria ser eu cumo, eu murro, eu murdo...
Então me diga uma coisa: você sabe qual é a primeira do singular do verbo parir no indicativo?
Ninguém pare no indicativo.
Pare, e em todos os tempos, meu velho.
Esse, quem não corre risco de usar sou eu.
Pois então fique sabendo: é simplesmente igual à primeira pessoa do singular do verbo pairar.
Eu pairo?
É isso aí. Uma senhora que tem muitos filhos pode perfeitamente dizer: eu pairo um filho por ano.
Co’s pariu!
Se não quiser acreditar, não acredite.
É a vez dele:
Você sabe qual é o plural de mel?
Já vem você. Mel não tem plural.
Como não tem? Tem até dois.
E me conta que outro dia um entendido em mel fazia uma preleção sobre o assunto na televisão. No que saiu do singular para se meter no plural, quebrou a cara:
Acabou falando que existem muitos mels diferentes.
E não existem?
Existem. Mas não mels. Com essa ele se deu mal.
Se deu mel, então.
Era a asa da imbecilidade começando a ruflar aos meus ouvidos:
Ou você vai me dizer que mel também é verbo defectivo?
Perguntei a uma amiga que entende.
De mel?
Não: de plural. Ela confirmou: tanto pode ser méis como meles. Mels é que jamais.
A esta altura o mentecapto fala mais alto dentro da minha cabeça:
Dos meles, o menor.
Como ele não responde, acrescento:
Até logo. Melou o assunto.
E desligo o telefone.

Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula

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