Eu me lembro, e não entendo por que de
uns tempos para cá as pessoas ficaram com vergonha de molhar os
olhos quando se lembram de ai como era bom, eu me lembro que saudade
era, ao lado do batuque na cozinha, o toque de trivela e as ancas da
sardinha 88, a saudade era uma das glórias nacionais.
Não tinha tradução no idioma inglês e
nem em qualquer outro. Coisa nossa. A saudade era pedacinho colorido
de confete e, dependendo de quão velho cada um de nós fosse, havia
sempre alguém que se lembrava de ter dormido protegido apenas pela
segurança antimosquito dos espirais de durmabem, outro que se
abanava com o sexo seguro de um catecismo do Zéfiro – e isso tudo
era tão delicadamente gostoso que a saudade matava a gente, morena.
De prazer. Tenho saudade e gosto de conjugar seus verbos em todos os
tempos regulares e irregulares.
Às favas a modernidade dos que não veem
sentido em pegar jacaré nessa onda, não veem nenhuma praticidade em
se ter um carro com os faróis projetados para trás. Eu vejo.
I see dead people, mas sem o mesmo medo
do garoto no cinema. Na boa. Sinatra disse para Sammy Davis Jr. que
vencia quem morria com mais brinquedos. Estou de acordo. Gosto de
brincar de saudade. Tenho dúzias desse bambolê e Playmobil.
Eu me lembro da frota encabeçada pela
Santa Maria, Pinta e Nina. Eu me lembro de todos os afluentes da
margem direita do Amazonas, começando com o Javari e o Juruá, lá
no cantinho com o Acre, e vindo até aqui perto na boca do Atlântico
com o Madeira, Tapajós, Xingu e Tocantins. Eu me lembro, e se Deus
quiser não pretendo jamais me esquecer, dessas inutilidades
escolares porque, por menos utilidade que elas ofereçam hoje aos
homens de negócios que somos, não me ocorre madalena mais gostosa
para lambuzar de jajá de coco os lábios da memória e alavancar
junto o cheiro da minha pasta de couro na escola.
Qual o problema?
Qual é o mosquito de se ouvir de novo o
bento que bento é o frade na hora do recreio (que hora tão feliz,
queremos o biscoito São Luiz) e ainda o Zé Trindade chanchadeiro
avaliando, e me sendo primeiro professor na matéria, a dona boazuda
que passava emulando a pororoca marajoara, as águas quentes de Goiás
e o arrebol do Arpoador. “O que é a natureza”, dizia o Zé. Até
hoje concordo, me maravilho e faço profissão de fé.
Sei que quanto mais fraca for a memória
– e eu não tomei todo o óleo de fígado de bacalhau que o doutor
mandava – quanto mais fraca a memória mais o cidadão se recordará
com nitidez de como foram bons aqueles tempos. Melhor assim. E,
boêmia, aqui estou de regresso, aqui estou vibrante de suspiros de
como era malandramente elegante saltar de ônibus andando, como era
matissiana a seda azul do papel que envolvia a maçã e como toda a
atual programação do canal a cabo Sexy Hot soa sem mistério
erótico diante do pêra, uva, maçã ou salada de frutas com as
meninas no recreio.
Eu vi essas “cachorras” nascendo.
Eram chamadas de avião, pedaço de mau caminho, certinhas, broto.
Posso até achar que as saradas sucederam-nas com mérito, e, cá
entre nós, eu adoraria chancelá-las com o meu carimbo de aprovadas.
Mas jamais vou esquecer as que me foram cacho, affair e perdição.
A memória mente muito, mas não faz isso
por mal. A subjetividade lhe é da índole. Eu me lembro, qualquer um
pode ir ao arquivo confirmar, que o ataque do Flamengo era formado
por Joel, Moacir, Henrique, Dida e Babá. Já a memória afetiva não
tem autenticação passada em cartório, não registra assinatura.
Ela apenas pede baixinho, feito a princesinha Norma Blum no Teatrinho
Trol da Tupi, que você acredite. A memória afetiva, essa minha
crença de que o fonograma perdido de Dóris Monteiro cantando o
jingle do Café Capital é a melhor gravação da bossa nova, tem a
inteligência do dono. É o outro lado do videoteipe, esse burro da
pior espécie. Limitado a suas câmeras óbvias, o teipe registra
tudo exatamente como é de fato. Tolo. Moço, pobre moço. A memória
não.
Paulinho da Viola ensinou que a vida não
é só isso que se vê. É um pouco mais. Quem haverá de saber,
sequer eu, sequer o analista, o bem que me fez o amor inicial?
Presumo que minha primeira namorada tenha sido a moça da tampa da
caneta esferográfica, aquela para sempre sorridente que ia tendo o
maiô subtraído pelo movimento da tinta até que finalmente, para
meu espanto, revelava sua gloriosa e glabra nudez. Saudades sinceras,
meu bem. Foi bom enquanto durou a tinta, querida.
Eu me lembro do mocotó das vedetes, do
pente Flamengo para fora do bolso, de ajudar a empregada a tirar as
pedrinhas do feijão, das pílulas de vida do dr. Ross fazendo bem ao
fígado de todos nós – e não sou doido de estar com isso querendo
matar a saudade de ninguém. Que a todos a saudade seja imortal. Vivo
da minha, e graças a Deus essa saudade me vem com duas polegadas a
mais e na cor mais linda do mundo, o azul da pedra do anil Rickett.
Sou grato quando a saudade me aparece com aquela saia tergal
plissada, cheia de machos e que ao estrear, no governo João Goulart,
foi apelidada de Maria Teresa, por ser nossa primeira dama, como
insinuava a maledicência da época, cheia deles também.
Quero mais é tratá-la, a saudade, a
minha, com Biotônico Fontoura. Perpertuá-la com a gordura de coco
Carioca. Nutri-la com a banha de porco e com muitos biquinhos daquele
pão, os seios que eu imediatamente beliscava quando era trazido pelo
padeiro de bicicleta. Quero que a saudade cresça e apareça, brinque
com a língua retrô, faça barba-cabelo-e-bigode da
contemporaneidade otária e mostre a todos que não adianta estrilar
e nem bater o pé. O que resolve é ter logo à mão lâmpadas GE. O
que resolve é fazer a luz da criatividade e apagar o preconceito.
A culpa, se você pretende classificar
meu comportamento de antinatural, é do desafinado. João Gilberto,
logo ele, um sujeito que vivia cantando sambinha antigo, lançou em
1959 o Brasil na terra da modernidade com o LP “Chega de saudade”.
O país do futuro, tão anunciado,
chegara e queria se livrar o mais rápido possível do Jeca Tatu, do
tiro no peito do Ge túlio, da bofetada no Bigode, das macacas de
auditório, das múmias do Museu da Quinta da Boa Vista, dos amores
infelizes do Antonio Maria. Queria se reapresentar em novo padrão.
Camisa Volta ao Mundo que não precisava passar, garotas de biquíni
no Arpoador, o fusca produzido nas fábricas de São Paulo. Depois de
décadas com o berreiro do Vicente Celestino tonitroando nos ouvidos
pátrios, a modernidade urgia em sintonizar o dial num sujeito
cantando baixinho. Como o Chet Baker e a Julie London faziam lá
fora. Foi aí que João sussurrou o chega de saudade, e o Brasil
começou a achar cafona, hoje de manhã, tudo que tivesse sido feito
ontem à noite.
Sinceramente, sem querer cantar marra,
sem tirar chinfra, eu estava lá, e não pisquei. Deve ser porque eu
usava Optraex, um copinho azul em que se colocava uma solução
líquida para lavar o olho. Com a menina-dos-olhos viva e esperta,
não levei João no radical. Entendi que aquilo era o velhíssimo
Dorival Caymmi, o eternamente Orlando Silva, só que numa outra
batida de violão, essa coisinha também das antigas. Segui na paz,
curtindo tanto o blim-blom do novo baião de João como o que vinha
das ondas da PRE-8, Rádio Nacional do Rio de Janeiro, transmitindo
diretamente do palco-auditório do 21° andar da Praça Mauá, 7.
Eu sempre pautei a vida pelo bordão do
Café Moinho de Ouro, que já nos tempos dos barões era servido nos
salões – e nunca entendi por que jogar fora os bons grãos da
memória. Não só digo que dura lex, sed lex, no cabelo só uso
gumex, como faço questão de aproveitar sempre uma sobra do fixador
para colar bem coladinho tudo o que já ameaça ser vaga lembrança.
I see dead people, e não só: produtos, jingles, comportamentos,
piadas e palavras. Pode ser tudo muito divertido e brinquedo. Ou você
não brinca com meu brinco?
Continuo achando, do mesmo jeito que os
Sex Pistols cantando o “My Way” do Sinatra, feito o João
cantando Noel, que não há programação melhor para o grande rádio
da vida do que misturar as estações. Não dar um chega-pra-lá no
passado. Mas manter vivo, para sempre turbinado, o que nos é
felicidade e borogodó.
Joaquim Ferreira dos Santos, in Em busca do borogodó perdido
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