segunda-feira, 22 de março de 2021

Um certo Geppe Coppini

 


Vocês acham que Geppe Coppini é louco?
Pois eu digo. Geppe Coppini é o maior vivaldino que Anta Gorda já criou.
Seu Demétrio Zuffo abre bem os braços, olha para os rostos estupefatos de seus interlocutores e dá seu parecer. Todos em Anta Gorda têm algo a dizer sobre Geppe Coppini. Todos. Geppe está para o município do Vale do Taquari como a unha para a carne, a pétala para o miolo, a corda para a forca. Sim, ele. Um certo Geppe Coppini.
Vou contar, então, a história desse tal de Geppe. E quando eu terminar me digam vocês quem é, afinal, Geppe Coppini.
Geppe é o mendigo, dizem. O único mendigo de Anta Gorda. Mas não um mendigo qualquer. Inclusive, pairam dúvidas sobre o fato de Geppe ser ou não ser um mendigo. Mendiga era Riqueta, a bela Riqueta, tão bela que poderia ter sido Miss Anta Gorda. Riqueta que se enamorou de um tal doutor Brandão, o jovem médico da cidade, e enlouqueceu de amor. Voltou de uma sessão de feitiços em Porto Alegre doida de atar. E desde então perambulou pelo município seguida por um cortejo de cuscos. Numa madrugada, daquelas madrugadas que só existem naquele vale, com as estrelas escorregando pelos telhados, o barraco de Riqueta incendiou-se. Os ossos encontrados pertenciam a seus cães. E até hoje a cidade vive dobrada por esse mistério. Vive com esse ponto de interrogação pendurado, como diz novamente seu Zuffo.
Geppe Coppini não. Geppe Coppini é uma incógnita porque nunca pediu nada. Não há ninguém, em toda a Anta Gorda, que possa afirmar que Geppe tenha pedido alguma coisa. O que seria Geppe então? Dizem que um bambino como todos os outros da Linha Terceira Moresco, nascido Josephino Coppini em 11 de novembro de 1908. Pois até os dez anos, Geppe era apenas um gurizote de calças curtas e pernas finas. Foi quando uma cigana de lábios de cicuta apareceu naquela fatia importada da Itália. Todas as ciganas são ameaçadoras para os descendentes de italianos, que vislumbram no rodopio de suas saias a depravação da ordem do mundo. Dizem até, madonna mia, que nem calcinhas usam. Pois essa, específica, rogou uma praga para o menino Geppe, depois que seus pais a expulsaram de suas terras. “Enquanto viver, esse guri nunca mais terá bem.” Foi o que a mulher pronunciou com uma força de lei, os olhos de gato faiscando.
E desde então Geppe mudou. Passou a alisar o tronco das árvores com as mãos por horas a fio. E, ao contrário da tropa de irmãos, decidiu que não trabalharia. Louco, louco. O menino está variado, foi o que o povo disse. Foi despachado para sanatórios na capital. Fugia e voltava a pé para o vale, um passo atrás do outro com seus tamancos de madeira, uma parada aqui e acolá para acariciar uma árvore conhecida. E a cidade, resignada, foi se acostumando a Geppe Coppini.
Por quase todo esse século, Geppe peregrinou pelas hortas e pelos pomares vivendo de verduras, frutas e legumes. Dormiu no paiol das casas, aconchegado ao ventre das vacas. Pelo menos fecha a porta, gritou certa feita à dona Rosa Tremea, que escancarava o seu paiol para tirar o leite da malhada, sobressaltando os estranhos sonhos de Geppe. Por último, carregou seus sustos para o porão da casa de dona Nineta Contini, que o herdou da mãe, a primeira a arrumar um canto da casa para Geppe, o variado.
Por quase todo esse século, Geppe não perdeu um casamento, um enterro, uma comemoração de santo. Depois que o vídeo desembarcou em Anta Gorda para registrar as festas, Geppe aparece em todas as fitas. Ocupa o primeiro banco na igreja e, quando chega a hora, tira do bolso um fiorin . Solene, o deposita na cestinha da oferenda.
Quando passou dos 60 anos, um cidadão conseguiu uma aposentadoria para ele. Geppe tem até carteira de trabalho. Orgulhosamente em branco. Folha por folha. Essa foi a primeira vez que algo realmente assombrou Geppe. O governo. E desde então ele passou a repetir, em vêneto:
Il goerno lé stupido! Gó mai laorato in tutta la vita e ancora i me paga! (Tradução: “O governo é um estúpido! Nunca trabalhei na minha vida e ainda assim me paga!”)
Tempos depois, Geppe avistou um avião no céu. E logo compreendeu. Só podia ser o governo. De olho nele, Geppe. Passou um avião quando ajudava a cortar lenha na Linha Moresco. Em seguida, passou o segundo. Geppe atirou o machado longe e saiu batido. Antes, avisou:
Se quiser cortar lenha, corta. Eu me vou porque se o governo me descobre trabalhando me corta o soldo!
Fazer Geppe Coppini de bobo tem sido um desafio para muitos antagordenses. Mais fácil os galos latirem. Geppe lia o jornal de cabeça para baixo enquanto tomava um cálice de vinho no bar – cheio, porque como ele diz, nhanca il diávolo vuole mezo. (“Nem o diabo quer só a metade.”)
Geppe, lendo o jornal invertido?
No correto qualquer bobo sabe ler – foi a resposta lacônica.
Geppe jamais paga a passagem de ônibus para Encantado. Ele simplesmente diz:
Se eu não for, o ônibus vai deixar de ir? Então, não preciso pagar.
Geppe costuma tomar sol na praça, olhando inconformado para a estátua da anta, duas toneladas e meia de banhas de concreto que um prefeito teve a iluminação de instalar no dito logradouro. Parece um boi, comenta Geppe com os botões de seu casaco de lã.
Geppe, pegando um sol? – arrisca um aventureiro.
O sol está muito longe para pegar – responde ele, atônito com tão descabida pergunta.
Assim é Geppe Coppini. Que até hoje não encontrou sentido numa coisa além do governo: o banho. Água apenas para beber, e só quando falta o vinho. Ou o refrigerante. Ele adora. Vamos tomar um banho, Geppe?
Domani, domani.
De tempos em tempos, a cidade entende que é hora de tomar uma atitude. Então, Algeri Toldo, o dono do hotel e administrador da aposentadoria de Geppe, se prepara para a empreitada. Dizem que vai de mangueira e rodo, e que Geppe sai dessas refregas branquinho, branquinho. Mas Toldo jura que apenas instala Geppe debaixo do chuveiro e fica de guarda.
Quem é Geppe Coppini? Vocês decidem.
Enquanto isso, aos 90 anos, acomodado no vale cheiroso, entre tomates e repolhos, Geppe Coppini dá a sua inconfundível risadinha sem dentes. A sua risadinha em capítulos.
Ah, ah, ah.

Eliane Brum, in A vida que ninguém vê

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