Voltei para casa apoiada em minha mãe e
em Belonísia, pulando de um só pé. Afora o corte profundo que me
impediria de colocar o pé no chão por muitos dias, senti certo
alívio ao perceber que minha irmã havia voltado a se comunicar
comigo; ela me serviu de apoio por semanas junto a Domingas,
permitindo que andasse com as mãos repousadas em seus ombros nos
deslocamentos que precisava fazer.
Sofri um tanto com o pé cortado, sem
poder andar por terreiro e quintal, por roça e beira de rio. Aquele
era o nosso pacto de vida, desde o fatídico dia em que a faca de
Donana havia fendido nossa história, decepado uma língua, impedido
a produção de sons, ferindo a vaidade de uma Mãe D’água, mas
unindo duas irmãs nascidas do mesmo ventre, em tempos diferentes,
pela vida até aquele instante. Meu encanto por primo Severo não era
maior do que o que sentia por minha irmã, do sentido de proteção
que lhe devia, da proteção que ela me devotava também. Não fosse
o pé ressentido pela ferida que a tarde de pesca me havia produzido,
talvez permanecesse ainda por mais tempo distante de Belonísia. Sem
a comunicação era como se nos silenciássemos mutuamente. Era
silenciar o que tínhamos de mais íntimo entre nós. Sem poder me
tocar, ela não poderia sentir a vibração da respiração em meu
corpo. Sem poder lhe tocar, não poderia sentir a velocidade com que
o rio de sangue corria em suas veias. Não poderia saber, a partir da
sua agitação interior, seus humores, se bravos ou mansos. Não
poderia olhar para meus olhos e perceber, apenas com o exame de meus
movimentos, o que intencionava.
Aos poucos, fomos superando a desordem e,
ao mesmo tempo que nos aproximávamos, evitávamos falar sobre
Severo. Ele passou a ser apenas mais um membro da família e, na
distância dos nossos sentimentos, todo o encantamento que ele nos
produziu pareceu estar enterrado. Era esperado que o tempo cuidasse
daquela paixão repentina e nos devolvesse apenas os laços de
família. Meu pai, misteriosamente, parecia não saber sobre o
ocorrido, ou, se sabia, preferiu não demonstrar, por qualquer motivo
moral ou místico que nunca poderíamos saber.
Voltamos a ver primo Severo em nossa casa
nas brincadeiras de jarê, acompanhado de tio Servó e Hermelina,
além dos primos menores, que cresciam espantando a praga do chupim
dos arrozais. Fazíamos cumprimentos formais, sem grandes emoções,
como quando o conhecemos ao chegar à fazenda. Crescíamos a olhos
vistos. Eu e Belonísia já enterrávamos nossos restos de regra com
um punhado de terra. Cobríamos nossos seios com um tecido para que
os mamilos não despontassem através do pano de nossos vestidos. Os
homens da fazenda cresciam seus olhos para nós duas. Mas nada mais
que isso, afinal, éramos as filhas do curador Zeca Chapéu Grande.
Meu pai era respeitado pelos vizinhos e filhos de santo, por seus
patrões e senhores, e por Sutério, o gerente. Era o trabalhador
citado como exemplo para os demais, nunca se queixava, independente
da demanda que lhe chegava. Por mais difícil que fosse,
arregimentava os vizinhos e trabalhava para entregar o que lhe foi
encomendado com o esmero que lhe era creditado. Represava água de
rio para algum pedido de irrigação que lhe era feito por Sutério.
Reunia os compadres para cortar madeira e conter com grande
engenhosidade um afluente. Pastoreava o gado da fazenda, levando-o
para comer onde houvesse verde. Era o trabalhador da mais alta estima
da família Peixoto. A ele recorriam para trazer novos trabalhadores
para Água Negra, porque confiavam na sua responsabilidade com a
fazenda. Confiavam na sua capacidade de persuadir e de reconciliar os
que viviam em conflito, por cerca ou por animal solto que acabava em
suas roças provocando prejuízo.
Por isso, diferente das jovens de nossa
idade, e mesmo com os olhares invasivos que nos despetalavam como
flores, éramos quase intocáveis ao assédio tão comum dos homens
sobre as meninas que chegavam à mocidade. Muitas caíam sob o peso
da insistência, não resistiam às abordagens, e com as bênçãos
dos pais se uniam com seus corpos ainda em formação. Sucumbiam ao
domínio do homem, dos capatazes, dos fazendeiros das cercanias.
A família Peixoto queria apenas os
frutos de Água Negra, não viviam a terra, vinham da capital apenas
para se apresentar como donos, para que não os esquecêssemos, mas,
tão logo cumpriam sua missão, regressavam. Mas havia os fazendeiros
e sitiantes que cresceram em número e que exerciam com fascínio e
orgulho seus papéis de dominadores, descendentes longínquos dos
colonizadores; ou um subalterno que havia conquistado a sorte no
garimpo e passava a exercer o poder sobre outros, que, sem
alternativa, se submetiam ao seu domínio.
Numa dessas manhãs, minha mãe chegou
inquieta e procurou dona Tonha para uma conversa. Eu me interessava
mais pela vida alheia do que Belonísia, dispersa que ela ficava
nesses momentos. Me pus a lavar as louças no jirau, enquanto
escutava as duas.
Falavam de Crispiniana, que estava com
barriga crescida. Que havia levado uma surra de compadre Saturnino.
Constatavam como era difícil para um pai, viúvo, criar filhos
sozinhos. E filhas dão mais trabalho. Vem com barriga para dentro de
casa. E depois? Quem cria as crianças? Diziam que Crispiniana se
recusava a dizer quem era o pai. Que tiveram que retirá-la de casa
por uns dias com receio de que Saturnino a matasse. E as conversas já
iam de boca em boca pela fazenda. Quem seria o pai da criança? Algum
trabalhador de fazenda vizinha? Alguém de Água Negra mesmo? “Se o
pai bateu tanto assim, comadre” – ponderou dona Tonha –, “será
que esse filho não é do cunhado que desgraçou a irmã na loucura,
por causa de Crispiniana mesmo?” Minha mãe semicerrou os olhos,
incrédula, “Será, comadre? Isidoro? Que se juntou com Crispina?”
Passaram-se dias, e Belonísia veio me
comunicar o que havia escutado de conversa de Salu com dona Tonha:
que as irmãs Crispina e Crispiniana estavam sem se falar. Que
Crispina estava de barriga de Isidoro, mas Crispiniana estava de
barriga mais avançada e ninguém sabia quem era o pai. Que havia
apanhado mais que mala suja. Que nossa mãe ficou ofendida porque
compadre Saturnino disse que deixaria a filha sem a língua, como a
filha de compadre Zeca. Que agora elas se miravam de sua porta e se
insultavam com toda a discórdia que poderia existir entre duas
mulheres, que ocuparam o mesmo ventre, mas que na vida se
desconheciam como irmãs. Que o pai estava desgostoso e havia dado
pra beber de descontentamento.
Belonísia demonstrava firmeza em seu
semblante. Estava muito claro que ela havia assumido um lado nessa
história. Embora primo Severo não fosse mais um empecilho para
nossa irmandade, e o encanto por ele parecesse ter se esvanecido. Seu
posicionamento me soou como uma advertência sobre até onde
poderíamos ir, enquanto irmãs.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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