sábado, 27 de março de 2021

Recalcitrante

O trocador olhou, viu, não aprovou. Daquele passageiro, escanchado placidamente no banco lateral, escorria um fio de água que ia compondo, no piso do ônibus, a microfigura de uma piscina.
Ei, moço, quer fazer o favor de levantar?
O moço (pois ostentava barba e cabeleira amazônica, sinais indiscutíveis de mocidade), nem-te-ligo.
O trocador esfregou as mãos no rosto, em gesto de enfado e desânimo, diante de situação tantas vezes enfrentada, e murmurou:
Esses caras são de morte.
Devia estar pensando: Todo ano a mesma coisa. Chegando o verão, chegam problemas. Bem disse o Dario, quando fazia gol no Atlético Mineiro: Problemática demais. Estava cansado de advertir passageiros que não aprendem como viajar em coletivo. Não aprendem e não querem aprender. Tendo comprado passagem por sessenta e cinco centavos, acham que compraram o ônibus e podem fazer dele casa da peste. Mas insistiu:
Moço! Ô moço!
Nada. Dormia? Olhos abertos, pernas cabeludas ocupando cada vez mais espaço, ouvia e não respondia. Era preciso tomar providência:
O senhor aí, cavalheiro, quer cutucar o braço do distinto, pra ele me prestar atenção?
O cavalheiro, vê lá se ia se meter numa dessas. Ignorou, olímpico, a marcha do caso terrestre.
Embora sem surpresa, o cobrador coçou a cabeça. Sabia de experiência própria que passageiro nenhum quer entrar numa fria. Ficam de camarote, espiando o circo pegar fogo. Teve pois que sair do seu trono, pobre trono de trocador, fazendo a difícil ginástica de sempre. Bateu no ombro do rapaz:
Vamos levantar?
O outro mal olhou para ele, do longe de sua distância espiritual. Insistiu:
Como é, não levanta?
Estou bem aqui.
Eu sei, mas é preciso levantar.
Levantar pra quê?
Pra quê, não. Por quê. Seu calção está molhado de água do mar.
Tem certeza que é água do mar?
Tá na cara.
Como tá na cara? Analisou?
Forrou-se de paciência para responder:
Olha, o senhor está de calção de banho, o senhor veio da praia, que água pode ser essa que está pingando se não for água do mar? Só se…
Se o quê?
Nada.
Vamos, diz o que pensou.
Não pensei nada. Digo que o senhor tem de levantar porque seu calção está ensopado e vai fazendo uma lagoa aí embaixo.
E daí?
Daí, que é proibido.
Proibido suar?
Claro que não.
Pois eu estou suando, sabe? Não posso suar sentado, com esse calorão de janeiro? Tenho que suar de pé?
Nunca vi suar tanto na minha vida. Desculpe, mas a portaria não permite.
Que portaria?
Aquela pregada ali, não está vendo? “O passageiro, ainda que com roupa sobre as vestes de banho molhadas, somente poderá viajar de pé.”
Portaria nenhuma diz que o passageiro suado tem que viajar de pé. Papo findo, tá bom?
O senhor está desrespeitando a portaria e eu tenho que convidar o senhor a descer do ônibus.
Eu, descer porque estou suado? Sem essa.
O ônibus vai parar e eu chamo a polícia.
A polícia vai me prender porque estou suando?
Vai botar o senhor pra fora porque é um… recalcitrante.
O passageiro pulou, transfigurado:
O quê? Repita, se for capaz.
Re… calcitrante.
Te quebro a cara, ouviu? Não admito que ninguém me insulte!
Eu? Não insultei.
Insultou sim. Me chamou de réu. Réu não sei o quê, calcitrante, sei lá o que é isso. Retira a expressão, ou lá vai bolacha.
Mas é a portaria! A portaria é que diz que o recalcitrante…
Não tenho nada com a portaria. Tenho é com você, seu cretino. Retira já a expressão, ou…
Retira não retira, o ônibus chegou ao meu destino, e eu paro infalivelmente no meu destino. Fiquei sem saber que consequências físicas e outras teve o emprego da palavra “recalcitrante”.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

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