terça-feira, 9 de março de 2021

O quadrante

          A temporada de caça no Equador por fim se aproximou; e todos os dias, quando Ahab, saindo da cabine, lançava os olhos ao alto, o timoneiro vigilante manobrava o leme com alarde e os marujos ansiosos corriam depressa aos braços das vergas e lá ficavam todos os olhos fixados no dobrão pregado; impacientes de receber a ordem de aproar para o Equador. Em boa hora a ordem foi dada. Era quase meio-dia; e Ahab, sentado na proa de seu bote suspenso, fazia a habitual observação diária do sol para determinar a latitude.
Ora, naquele mar Japonês, os dias de verão são como inundações de fulgor. E aquele sol Japonês, sem pálpebras que lhe escondam o fulgor, parece mais o foco abrasador do imenso vidro incandescente do oceano translúcido. O céu parece laqueado; nuvens, não há; o horizonte flutua; e a nudez dessa radiação a pino é como o esplendor intolerável do trono de Deus. Bom que o quadrante de Ahab estivesse guarnecido com vidros coloridos, através dos quais se podia observar o fogo solar. Assim, sentado, balançando seu corpo ao ritmo do navio, e com seu instrumento de astrólogo diante do olho, ele permaneceu nessa posição por alguns instantes para ver o exato momento em que o sol atingisse o meridiano. Nesse meio-tempo, enquanto nada mais o podia ocupar, o Parse se ajoelhava abaixo dele no convés do navio e, com o rosto também voltado para o alto, olhava com ele para o mesmo sol; apenas as pálpebras ocultavam um pouco os orbes, e seu rosto selvagem se reduzia a uma apatia terrestre. Afinal, fez-se a observação desejada; e com o lápis na perna de marfim Ahab logo calculou qual seria a latitude naquele preciso instante. Depois, abandonando-se a um devaneio momentâneo, olhou para o sol no alto e murmurou para si mesmo: “Tu, baliza do mar! Tu, alto e poderoso Piloto! Dizes-me verdadeiramente onde estou – mas não podes sequer lançar-me um sinal de onde estarei? Ou poderás dizer-me onde vive uma outra coisa além de mim neste momento? Onde está Moby Dick? Neste momento deves estar a vê-lo. Estes meus olhos contemplam agora os mesmos olhos que neste momento o veem; sim, e os olhos que agora também contemplam os objetos do lado desconhecido, do outro lado de ti, ó, sol!”.
Atentando então a seu quadrante e manejando, um após o outro, seus numerosos e cabalísticos dispositivos, pensou mais uma vez e murmurou: “Brinquedo estúpido! Joguete infantil de insolentes Almirantes, Comodoros e Capitães; o mundo vangloria-se de ti, de tua astúcia e poder; mas, afinal, o que sabes fazer, além de informar o pobre e miserável ponto em que por acaso te encontras neste vasto planeta e a mão que te segura: não! Nada além disso! Não podes dizer onde uma gota de água ou um grão de areia estarão amanhã ao meio-dia: e, no entanto, com tua impotência insultas o sol! Ciência! Maldito sejas, tu, brinquedo inútil; e malditas sejam todas as coisas que fazem levantar os olhos dos homens para aquele céu cujo fulgor incandescente apenas o fere, como agora estes velhos olhos são feridos por tua luz, ó, sol! Nivelados pela natureza ao horizonte da terra, são esses os vislumbres dos olhos humanos; nunca saídos do topo de sua cabeça, como se Deus quisesse que olhassem para o firmamento. Maldito sejas tu, quadrante!”, atirando-o ao convés, “não mais orientarei meu caminho terreno por ti; a simples bússola do navio e o simples cálculo de posição com a barquilha e a linha; estes hão de me conduzir e mostrar minha posição no mar. Assim”, descendo do bote para o convés, “assim piso em ti, ó, coisa insignificante que fragilmente apontas para as alturas; assim te quebro e destruo!”.
Enquanto o velho frenético assim falava e assim esmagava com o pé vivo e com o morto, um sorriso de triunfo, que parecia endereçado a Ahab, e um desespero fatalista, que parecia endereçado a si mesmo – ambos passaram pelo rosto mudo e imóvel do Parse. Sem ser visto, este se levantou e se afastou; enquanto, apavorados pelo aspecto de seu comandante, os homens do navio reuniram-se no castelo de proa até o momento em que Ahab, percorrendo agitado o convés, gritou – “Aos braços! Ao leme! – Cruzar as vergas!”.
Num instante as vergas giraram; e, enquanto o navio dava meia-volta sobre si mesmo, seus três elegantes e sólidos mastros, equilibrados verticalmente sobre seu casco comprido cheio de costelas, pareciam os três Horácios fazendo piruetas em um único cavalo.
De pé entre os fidalgos, Starbuck observava os modos agitados do Pequod e também de Ahab, enquanto cambaleava pelo convés.
Sentei-me diante do fogo denso do carvão e vi-o todo incandescente, cheio de sua atormentada e ardente vida; e vi-o diminuir por fim, mais e mais, até se reduzir ao mais silencioso pó. Velho oceânico! De toda esta tua vida irascível, o que sobrará de ti além de um punhado de cinzas?”
Sim”, gritou Stubb, “mas cinzas de carvão marinho – preste bem atenção, senhor Starbuck –, carvão marinho, não do teu carvão comum. Ora, então! Ouvi Ahab murmurar: ‘Há alguém que joga estas cartas nestas minhas velhas mãos; e jura que devo jogar com elas e não com outras’. E raios me partam, Ahab, mas tu ages de modo correto; que vivas no jogo e que nele morras!”

Herman Melville, in Moby Dick

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