sexta-feira, 5 de março de 2021

Lavoura Arcaica / 3

E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo, e que se eles eram bons é porque o corpo tinha luz, e se os olhos não eram limpos é que eles revelavam um corpo tenebroso, e eu ali, diante de meu irmão, respirando um cheiro exaltado de vinho, sabia que meus olhos eram dois caroços repulsivos, mas nem liguei que fossem assim, eu estava era confuso, e até perdido, e me vi de repente fazendo coisas, mexendo as mãos, correndo o quarto, como se o meu embaraço viesse da desordem que existia a meu lado: arrumei as coisas em cima da mesa, passei um pano na superfície, esvaziei o cinzeiro no cesto, dei uma alisada no lençol da cama, dobrei a toalha na cabeceira, e já tinha voltado à mesa para encher dois copos quando escorreguei e quase perguntei por Ana, mas isso só foi um súbito ímpeto cheio de atropelos, eu poderia isto sim era perguntar como ele pôde chegar até minha pensão, me descobrindo no casario antigo, ou ainda, de um jeito ingênuo, procurar conhecer o motivo da sua vinda, mas eu nem sequer estava pensando nessas coisas, eu estava era escuro por dentro, não conseguia sair da carne dos meus sentimentos, e ali junto da mesa eu só estava certo era de ter os olhos exasperados em cima do vinho rosado que eu entornava nos copos; “as venezianas” ele disse “por que as venezianas estão fechadas?” ele disse da cadeira do canto onde se sentava e eu não pensei duas vezes e corri abrir a janela e fora tinha um fim de tarde tenro e quase frio, feito de um sol fibroso e alaranjado que tingiu amplamente o poço de penumbra do meu quarto, e eu ainda encaixava as folhas das venezianas nas carrancas quando, ligeira, me percorreu uma primeira crise, mas nem fiz caso dela, foi passageira, por isso eu só pensei em concluir minha tarefa e fui logo depois, generoso e com algum escárnio, pôr também entre suas mãos um soberbo copo de vinho; e enquanto uma brisa impertinente estufava as cortinas de renda grossa, que desenhava na meia altura dois anjos galgando nuvens, soprando tranquilos clarins de bochechas infladas, me larguei na beira da cama, os olhos baixos, dois bagaços, e foram seus olhos plenos de luz em cima de mim, não tenho dúvida, que me fizeram envenenado, e foi uma onda curta e quieta que me ameaçou de perto, me levando impulsivo quase a incitá-lo num grito “não se constranja, meu irmão, encontre logo a voz solene que você procura, uma voz potente de reprimenda, pergunte sem demora o que acontece comigo desde sempre, componha gestos, me desconforme depressa a cara, me quebre contra os olhos a velha louça lá de casa”, mas me contive, achando que exortá-lo, além de inútil, seria uma tolice, e, sem dar por isso, caí pensando nos seus olhos, nos olhos de minha mãe nas horas mais silenciosas da tarde, ali onde o carinho e as apreensões de uma família inteira se escondiam por trás, e pensei quando se abria em vago instante a porta do meu quarto ressurgindo um vulto maternal e quase aflito “não fique assim na cama, coração, não deixe sua mãe sofrer, fale comigo” e surpreso, e assustado, senti que a qualquer momento eu poderia também explodir em choro, me ocorrendo que seria bom aproveitar um resto de embriaguez que não se deixara espantar com sua chegada para confessar, quem sabe piedosamente, “é o meu delírio, Pedro, é o meu delírio, se você quer saber”, mas isso só foi um passar pela cabeça um tanto tumultuado que me fez virar o copo em dois goles rápidos, e eu que achava inútil dizer fosse o que fosse passei a ouvir (ele cumpria a sublime missão de devolver o filho tresmalhado ao seio da família) a voz de meu irmão, calma e serena como convinha, era uma oração que ele dizia quando começou a falar (era o meu pai) da cal e das pedras da nossa catedral.

Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

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