Era domingo, e os trabalhadores deviam
vir no dia seguinte, das aldeias próximas, para começar o trabalho
da mina. Tinha, portanto, tempo para dar uma volta e ver sobre que
praias me havia jogado a sorte. A madrugada acabava de raiar quando
saí. Passei os jardins, e acompanhei a praia; travei apressadamente
relações com a água, a terra e o ar das redondezas; colhi plantas
selvagens e minhas mãos ganharam logo o cheiro da salsa, da
erva-doce, da hortelã.
Subi a uma elevação e olhei à volta.
Uma paisagem austera, de granito e pedra dura. Árvores sombrias,
oliveiras prateadas, figueiras e vinhedos. Em partes mais defendidas,
pomares com laranjeiras, limoeiros e nespereiras; perto do mar, as
hortas. Ao sul, o mar ainda irritado, imenso, vindo das costas
africanas, barulhento, lançava-se rosnando de encontro a Creta.
Pertinho uma ilhota baixa, arenosa, pintada de um tom rosa, virginal
sob os primeiros raios.
Essa paisagem cretense parecia
assemelhar-se à boa prosa: bem trabalhada, sóbria, sem riquezas
supérfluas, possante e contida.
Expressava o essencial com os meios mais
simples. Não brincava, e recusava-se a utilizar qualquer artifício.
Dizia o que tinha a dizer com uma austeridade viril. Mas, entre as
linhas severas, distinguia-se uma sensibilidade e ternura
inesperadas; nas partes mais defendidas os limoeiros e laranjeiras
recendiam, e mais longe, do mar infinito, emanava uma inesgotável
poesia.
— Creta — murmurei, — Creta... —
e meu coração batia.
Desci da pequena colina e retomei a
praia. Meninas alegres apareceram, mantilhas brancas como a neve,
altas botas amarelas, saias enfunadas; iam à missa no monastério
que se via ao longe, estonteante de brancura, à beira-mar.
Parei. Desde que me viram, seus risos se
apagaram. Seus rostos, ao ver um homem estranho, se fecharam. Da
cabeça aos pés seus corpos se puseram na defensiva, e seus dedos se
cruzavam sobre os corpetes estreitamente abotoados. Seus corações
se apressaram. Sobre todas as costas cretenses voltadas para a África
os corsários fizeram durante séculos incursões repentinas,
destruindo rebanhos, mulheres, crianças. Eles se amarravam com seus
cinturões vermelhos, jogavam-nas aos porões e levantavam-nas para
vender na Argélia, em Alexandria ou Beirute. Durante séculos, nesse
litoral cheio de tranças negras, o mar fez ecoar os prantos. Vi
aproximaram-se as meninas ariscas, coladas umas às outras como para
formar uma barreira intransponível. Movimentos seguros,
indispensáveis nos séculos passados, e que voltavam hoje sem razão,
seguindo o ritmo de uma necessidade já desaparecida.
Quando cruzamos, afastei-me
tranquilamente e sorri.
Imediatamente, como se percebessem de
repente que o perigo passara há séculos — acordando subitamente
na nossa época de segurança — seus rostos se iluminaram, a frente
de combate em fileira cerrada espaçou-se, e todas elas a um só
tempo me disseram bom dia com vozes alegres e límpidas. Nesse
minuto, os sinos do monastério, felizes e brincalhões, encheram o
ar com sua alegria.
O sol já ia alto, o céu estava limpo.
Acomodei-me entre os rochedos, aninhado como uma gaivota em seu
buraco, e contemplei o mar. Sentia meu corpo cheio de forças, fresco
e dócil. E meu espírito, acompanhando o movimento das ondas,
tornou-se ele mesmo uma onda e submeteu-se ao ritmo do mar.
Pouco a pouco meu coração enchia-se.
Vozes obscuras subiam dentro de mim, imperiosas e suplicantes. Sabia
quem chamava.
Bastava que eu ficasse a sós um instante
para que ele gritasse em mim, angustiado por pressentimentos
horríveis, de pavores loucos, de exaltações, e esperava de mim o
parto.
Abri rapidamente o Dante, o “companheiro
de viagens”, para não ouvir e calar o terrível demônio.
Folheava, lia um verso aqui, outro lá, vinha-me à cabeça o canto
inteiro e, dessas páginas ardentes, saíam uivando os condados. Mais
alto, almas feridas esforçavam-se em escalar uma alta e escarpada
montanha. Mais alto ainda, vagavam em planícies de esmeraldas as
almas dos bem-aventurados, como brilhantes vaga-lumes. Ia e vinha de
alto a baixo no terrível edifício do destino, circulava à vontade
no Inferno, no Purgatório e no Paraíso como em minha própria casa.
Sofria, aguardava ou desfrutava da beatitude, deixando-me levar pelos
versos maravilhosos.
De repente fechei o Dante e olhei ao
largo. Uma gaivota, deitada sobre uma onda, subia e descia com ela,
saboreando feliz a grande volúpia do abandono. Um jovem bronzeado
surgiu à beira da água, descalço e cantando cantigas de amor.
Talvez compreendesse ele o sofrimento que expressavam, pois sua voz
começava a enrouquecer como a de um jovem galo.
Durante anos, séculos, os versos de
Dante eram cantados assim na terra do poeta. E como as canções de
amor preparam os rapazes e moças para amar, os ardentes versos
florentinos preparavam os efebos italianos para a luta pela
libertação. Todos, de geração em geração, comungavam com a alma
do poeta, fazendo de sua escravatura a liberdade.
Ouvi um riso atrás de mim. Despenquei-me
de uma vez só dos píncaros dantescos, voltei-me e vi Zorba em pé,
rindo com todo o rosto.
— Que modos são esses, patrão? —
gritou ele — há horas estou a sua procura, mas de onde
desencravá-lo?
E, como me visse silencioso, imóvel:
— Já passa de meio-dia — gritou ele,
— a galinha está no ponto; se continua no fogo vai se desmanchar
toda, pobrezinha! Está me ouvindo?
— Ouvi, mas não tenho fome.
— Não tem fome, essa é boa! — Zorba
disse, batendo com ruído nas coxas. — você não comeu nada desde
manhã. É preciso cuidar também do corpo, tenha pena dele! Dê-lhe
de comer, patrão, dê-lhe de comer; é o nosso burrico, você sabe.
Se você não o alimenta, um belo dia ele irá largá-lo no meio da
estrada.
Há anos eu desprezava as alegrias da
carne, e, se fosse possível, teria comido escondido, como se fosse
uma ação feia. Mas, para que Zorba não se pusesse a resmungar:
— Está bem — disse, — já vou.
Fomos em direção da aldeia. As horas
sobre o rochedo haviam passado como horas de amor, rápidas como o
relâmpago. Sentia ainda sobre mim o sopro inspirado do florentino.
Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego
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