quinta-feira, 18 de março de 2021

Cinco dracmas por alma!

          No fim da tarde chegamos à nossa praia arenosa. Uma areia branca muito fina, loureiros ainda floridos, figueiras, outras árvores e, mais longe, à direita, uma pequena montanha baixa e cinzenta, sem uma árvore, parecendo vagamente um perfil feminino. E abaixo de seu queixo, sobre seu pescoço, estavam os veios escuros da linhita.
Um vento de outono soprava, as nuvens embrulhadas passavam lentamente e adoçavam as formas da terra cobrindo-as de sombra. Outras subiam aos céus, ameaçadoras. O sol cobria-se e descobria-se, e a terra iluminava-se ou escurecia-se como uma face viva e perturbada.
Parei um instante sobre a areia e olhei. A solidão se estendia diante de mim, triste e fascinante como o deserto. O poema budista subiu do solo e insinuou-se dentro de meu ser. “Quando enfim, retirar-me-ei à solidão, só, sem companheiros, sem alegrias ou tristezas, apenas com a certeza santificada de que tudo não é senão sonho? Quando, coberto apenas de farrapos — sem desejos — poderei retirar-me alegremente para a montanha? Quando, vendo que meu corpo não é senão doença e crime, velhice e morte — livre, sem medo, cheio de alegria — poderei retirar-me para a floresta? Quando? Quando? Quando?”
Zorba aproximou-se, santuri embaixo do braço.
Lá está a linhita! — disse-lhe para esconder minha emoção. E estendi o braço em direção à colina que parecia mulher.
Mas Zorba franziu a testa sem se voltar:
Mais tarde, patrão; não chegou a hora — disse ele. — Primeiro a terra precisa parar. Ele está mexendo ainda, em nome do cão! A miserável mexe ainda, como a proa de um barco. Vamos depressa para a aldeia.
E partiu a passos largos.
Dois moleques descalços, bronzeados como pequenos felás, correram a pegar as malas. Um gordo guarda alfandegário, de olhos azuis, fumava um narguilé no barracão que fazia às vezes de alfândega. Ele nos espiou com o canto dos olhos, escorregou um olhar madraço sobre as malas, e mexeu-se em sua cadeira como para levantar-se. Mas, não teve coragem. Ergueu lentamente o bocal de seu narguilé.
Sejam bem-vindos! — disse ele num tom sonolento.
Um dos moleques aproximou-se de mim. Piscou os olhos negros, que mais pareciam azeitonas:
Ele não é cretense! — disse. — É um tolo!
Os cretenses não são tolos, são?
São sim... São sim... — respondeu o pequeno cretense. — Mas, de outra maneira...
A aldeia é longe?
Que nada! Ao alcance de uma espingarda! Veja, atrás dos jardins, naquela depressão do terreno. Uma bela aldeia, patrão. Uma terra muito boa. Tem abóboras, ervilhas, chicória, azeite e vinho. E mais além, na areia, crescem os pepinos e melões mais precoces de Creta. É o vento da África que os faz inchar. Deitando-se num canteiro você os poderá ouvir estalar crr! Crr! Crescendo durante a noite.
Zorba ia à frente, andando um pouco de lado. A cabeça ainda rodava.
Coragem, Zorba! — gritei — nós escaparemos desta, não tenha medo!
Andávamos depressa. O solo era uma mistura de areia e conchas. De tempos em tempos, um tamarineiro, uma figueira selvagem, uma moita de bambus, framboesas amargas. O tempo ia piorando. As nuvens desciam cada vez mais, e o vento começava a soprar.
Estávamos em frente a uma grande figueira, com o tronco quase que partido, torturado, que demonstrava nos espaços ocos sua idade. Um dos moleques parou. Com um movimento do queixo apontou-me a velha árvore.
A figueira da donzela! — disse ele.
Assustei-me. Em Creta, cada pedra, cada árvore, tem a sua história trágica.
Da donzela? Por quê?
No tempo de meu avô, a filha de um notável da aldeia apaixonou-se por um pastor. Seu pai não queria o casamento; e a moça chorava e gritava, suplicando-lhe. Mas o velho não mudava de ideia! E um dia os dois desapareceram, o pastor e a moça. Saíram em busca deles, e por dias, e depois semanas, ninguém os encontrou! Mas os cadáveres começaram e cheirar mal e então, seguindo o mau cheiro, foram encontrá-los abraçados num buraco que existe entre as raízes da figueira. Você entende, eles foram descobertos pelo fedor.
O menino ria. E comecei a ouvir os barulhos da aldeia: os cães se puseram a latir, mulheres conversavam, os galos anunciavam a mudança do tempo. No ar flutuava o cheiro de aguardente de uva que saía dos tachos onde se destilava o raki.
Lá está a aldeia! — gritavam os moleques, tomando novo alento.
Uma vez contornada a duna de areia, a pequena aldeia surgiu, subindo a encosta de uma suave elevação do terreno. Casas baixas com terraços na cobertura, caiadas de branco, coladas uma a outra; e as janelas eram como manchas pretas, fazendo as casas parecerem crânios esbranquiçados incrustados na pedra.
Aproximei-me de Zorba.
Presta atenção, Zorba! — recomendei-lhe em voz baixa, porte-se bem agora, que vamos entrar na aldeia. Eles não podem ter dúvidas sobre nós, Zorba! É preciso que pareçamos sérios homens de negócios; eu o patrão e você o contramestre. Os cretenses, você sabe, não perdem tempo. Desde que eles veem alguém acham logo o ponto fraco e põe o apelido certo. E nunca mais é possível livrar-se dele. Você fica como um cachorrinho a quem se amarrou uma caçarola no rabo.
Zorba passou a mão no bigode e mergulho em meditação.
Olhe, patrão — disse enfim, — se houver uma viúva nessas bandas, não há razão para medo. Se não houver…
Nesse momento, à entrada da aldeia, uma mendiga coberta de farrapos surgiu de mão estendida. Curtida pelo sol, imunda, com um pequeno buço negro e espesso.
Ei! Compadre! — gritou ela a Zorba. — Ei! Compadre! Tens alma?
Zorba parou.
Tenho sim — respondeu com seriedade.
Então me dá cinco dracmas!
Zorba tirou do bolso uma carteira de couro, velha, quase desfeita.
Tome! — disse ele.
E um sorriso abriu-se nos seus lábios ainda amargos. Ele se virou.
Pelo visto — disse, — não é caro aqui: cinco dracmas por alma!
Os cães da aldeia precipitaram-se sobre nós, as mulheres debruçaram-se dos terraços, as crianças atrapalhavam-se a marcha num falatório sem fim. Umas gritavam, outras imitavam a buzina de automóveis, outras nos ultrapassavam para olhar-nos com grandes olhos extasiados.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego

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