sexta-feira, 26 de março de 2021

Canção descampada

Lá todo mundo é José
Lá todo mundo é João
Todo mundo se conhece
Não pelo nome
Mas pelo aleijão
Ei, cotó
Ei, corno
Ei, coxo
Ei, culatrão

Visto de longe parece tudo igual. De perto, no cheiro, na pele e dentro dos olhos, a gente se distingue facilmente. Já nascemos bastante carimbados. Por isso ninguém entendeu aquela manhã, quando os quatro cavaleiros da nova ordem baixaram no descampado e fizeram o serviço de identificação. Ninguém estava preparado. Ficou todo mundo assustado, um apontando o outro, pessoa querendo ser outra pessoa e dando explicação demais. Lá a gente é muito ignorante mesmo. Tem gente que só compreende a brasa quando ela entranha nas profundezas da carne. Sorte é que o pessoal do descampado, além de ignorante, é bem novidadeiro. O que passou de manhã, ninguém quer comentar depois do almoço. De noite então, quando entra no bar um desses mais magoados, desses que gostam de tirar a camisa e exibir as feridas, o povo diz iiiiihhh lá vem de novo o Zé-do-hematoma com aquela conversa. E sobra Zé sozinho com o galego, no botequim sem assunto, com cara de jornal amassado.

Ei, José
Ei, João
Conheço tua história
Como a palmatória
Na minha mão
Eh, José
Eh, meu saco

A novidade das oito era uma tela mágica ligada na praça do coreto. Haveria um pronunciamento. Largaram a sinuca e a sueca e foram todos ver a cara do pronunciamento. O novo Chefe, Juvenal, religioso, simpático, assim da minha estatura, dizem que um homem de bem e bom. Uma boa imagem, uma tela grande, falando com a gente. Mesmo o magoado, o chateado e o doente, até os mais doloridos apreciaram o programa assim que começou:
Há males que vêm para bem.
Tempo de olhar em frente. Esquecer as desavenças. Somos uma família. Marchando. Fé no destino. Grandioso a Fazenda confia. Confiar na nova Fazenda que. As classes. Os menos favorecidos (olha nós) tivessem um pouco de paciência. Ninguém fez Roma. Da noite para o dia a pressa é inimiga e devagar se vai. Os menos qualificados (olha nós de novo) esperassem no descampado que descampamos. E aí, pelo que entendi, estou de pleno acordo com esse Juvenal. Vocês acham que o descampado sempre foi descampado? O descampado é tão bom quanto as outras terras da Fazenda. Acabou desse jeito porque a gente pisoteia. Pisa no pasto que vai comer. Se a gente caminhasse com atenção e sensatez, ia ver a verdura que crescia. É por isso que precisamos ir ao rio, quando não é o rio que vem a nós. Que criamos calos por toda a carcaça, uma casca grosseira que nos faz imbecis, insensíveis à chuva e impermeáveis de dentro para fora. E seguimos vivendo aos tufos, enquanto houver tufos graças a Deus.
Depois do pronunciamento a tela mágica permaneceu ligada. O próprio Juvenal disse que era um modo da gente se habituar à linguagem e às imagens dos novos tempos. Manter o povo instruído e ilustrado do que se passa lá em cima: a lua, os tratores, as pastagens de acrílico. E vai dando uma inveja na boca do povo, uma inveja sadia de também querer as coisas boas. Vai dando um orgulho saudável de ser meio vizinho e contraparente daquelas coisas. Um ciúme daqueles reis e princesas por um dia, coisas que o povo gosta, vê nas revistas, coleciona as figurinhas, cola os posters na parede. Decora os distintos nomes daquelas figuras tão parecidas entre si de tão brilhantes, distantes e perfeitas que estão. Ao mesmo tempo que dá na gente um cuidado louco de não tocar as molduras, não mexer com as figuras nem se intrometer no sonho, confundindo, derrubando, quebrando e sujando o sonho. E o pavor da gente acordar suada nos braços dum João-braço-curto ou José-braço-sem, na cama onde a gente se chama pelo aleijão que tem.

Chico Buarque de Holanda, in Fazenda Modelo

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