Lá todo mundo é José
Lá todo mundo é João
Todo mundo se conhece
Não pelo nome
Mas pelo aleijão
— Ei, cotó
— Ei, corno
— Ei, coxo
— Ei, culatrão
Visto de longe parece tudo igual. De
perto, no cheiro, na pele e dentro dos olhos, a gente se distingue
facilmente. Já nascemos bastante carimbados. Por isso ninguém
entendeu aquela manhã, quando os quatro cavaleiros da nova ordem
baixaram no descampado e fizeram o serviço de identificação.
Ninguém estava preparado. Ficou todo mundo assustado, um apontando o
outro, pessoa querendo ser outra pessoa e dando explicação demais.
Lá a gente é muito ignorante mesmo. Tem gente que só compreende a
brasa quando ela entranha nas profundezas da carne. Sorte é que o
pessoal do descampado, além de ignorante, é bem novidadeiro. O que
passou de manhã, ninguém quer comentar depois do almoço. De noite
então, quando entra no bar um desses mais magoados, desses que
gostam de tirar a camisa e exibir as feridas, o povo diz iiiiihhh lá
vem de novo o Zé-do-hematoma com aquela conversa. E sobra Zé sozinho
com o galego, no botequim sem assunto, com cara de jornal amassado.
— Ei, José
— Ei, João
Conheço tua história
Como a palmatória
Na minha mão
— Eh, José
— Eh, meu saco
A novidade das oito era uma tela mágica
ligada na praça do coreto. Haveria um pronunciamento. Largaram a
sinuca e a sueca e foram todos ver a cara do pronunciamento. O novo
Chefe, Juvenal, religioso, simpático, assim da minha estatura, dizem
que um homem de bem e bom. Uma boa imagem, uma tela grande, falando
com a gente. Mesmo o magoado, o chateado e o doente, até os mais
doloridos apreciaram o programa assim que começou:
— Há males que vêm para bem.
Tempo de olhar em frente. Esquecer as
desavenças. Somos uma família. Marchando. Fé no destino. Grandioso
a Fazenda confia. Confiar na nova Fazenda que. As classes. Os menos
favorecidos (olha nós) tivessem um pouco de paciência. Ninguém fez
Roma. Da noite para o dia a pressa é inimiga e devagar se vai. Os
menos qualificados (olha nós de novo) esperassem no descampado que
descampamos. E aí, pelo que entendi, estou de pleno acordo com esse
Juvenal. Vocês acham que o descampado sempre foi descampado? O
descampado é tão bom quanto as outras terras da Fazenda. Acabou
desse jeito porque a gente pisoteia. Pisa no pasto que vai comer. Se
a gente caminhasse com atenção e sensatez, ia ver a verdura que
crescia. É por isso que precisamos ir ao rio, quando não é o rio
que vem a nós. Que criamos calos por toda a carcaça, uma casca
grosseira que nos faz imbecis, insensíveis à chuva e impermeáveis
de dentro para fora. E seguimos vivendo aos tufos, enquanto houver
tufos graças a Deus.
Depois do pronunciamento a tela mágica
permaneceu ligada. O próprio Juvenal disse que era um modo da gente
se habituar à linguagem e às imagens dos novos tempos. Manter o
povo instruído e ilustrado do que se passa lá em cima: a lua, os
tratores, as pastagens de acrílico. E vai dando uma inveja na boca
do povo, uma inveja sadia de também querer as coisas boas. Vai dando
um orgulho saudável de ser meio vizinho e contraparente daquelas
coisas. Um ciúme daqueles reis e princesas por um dia, coisas que o
povo gosta, vê nas revistas, coleciona as figurinhas, cola os
posters na parede. Decora os distintos nomes daquelas figuras tão
parecidas entre si de tão brilhantes, distantes e perfeitas que
estão. Ao mesmo tempo que dá na gente um cuidado louco de não
tocar as molduras, não mexer com as figuras nem se intrometer no
sonho, confundindo, derrubando, quebrando e sujando o sonho. E o
pavor da gente acordar suada nos braços dum João-braço-curto ou
José-braço-sem, na cama onde a gente se chama pelo aleijão que
tem.
Chico Buarque de Holanda, in Fazenda Modelo
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