Limites da conversação

Há certas coisas que não haveria mesmo ocasião de as colocarmos sensatamente numa conversa — e que só num poema estão no seu lugar. Deve ser por esse motivo que alguns de nós começaram, um dia, a fazer versos. Um modo muito curioso de falar sozinho, como se vê, mas o único modo de certas coisas caírem no ouvido certo.

Mário Quintana, in Caderno H

Uma graça ainda por chegar

Estacionado na porta do homem da tesoura, reparava seus cortes. Tudo eu olhava devagar para bem imaginar. Sua mão firme retalhava os caminhos riscados sobre a casimira ou linho. O destino da tesoura era traçado. No meu caminhar não havia amparo. Nunca o alfaiate torturava o tecido para depois perguntar-se: para quê? Em princípio, os pedaços de panos lembravam mapas de tantos países: Itália, França, Cuba, Grécia, Portugal. Depois, a agulha alinhavava as fronteiras e o paletó mostrava-se completo. A ponta fina da agulha vazava o ar e amarrava, com perfeito amor, os estranhos pedaços. Suspeitava que o mundo não fora riscado antes de cumprir-se. Suspeitar é negar-se à certeza.
Mas também passarinho é uma vírgula pontuando o céu. Eu ensaiava ler as perguntas que preenchiam o azul vazio e os pássaros virgulavam. Descobri ser uma língua estrangeira a voz dos pássaros, e embaraçava-me. Então, subvertia respostas para tapear meu desconsolo. Não ter resposta é confirmar-se ausente. Viver exige perguntas e eu, mudo, não sabia responder.
Também pela superfície profunda da pele a memória se faz palavra. No roçar do frio as lembranças das mãos do amor desanuviam-se. Na água morna que enxágua o corpo nasce um desejo de desnascer. É atravessando os poros que sua voz, em música, alcança meus ouvidos. O aço frio da faca afiada encrespa-me da carne à alma.
A mãe colhia singelos buquês de flores e sepultava aos pés de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Imagem de gesso, colada com grude de polvilho — de muito tombar — na quina do quarto. Às vezes, uma vela permanecia acesa, sem pecado para queimar-se.
Comemorava-se uma graça ainda por chegar. Só as rosas não se intrometiam nessa indesvendável promessa. Desconheço o motivo, se pavor do espinho ou da dor. Agora, com sua ferida cicatrizada, ela nos deixou entre rosas, já sem medo dos espinhos, sem respirar o perfume, sem reparar nas cores.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

Familiaridade

Ando numa fase um pouco perigosa. É que estou estabelecendo contato com as pessoas com tanta facilidade que alguma ainda me acontece. Nesta fase, todo o mundo ou é meu irmão, ou meu filho, ou meu pai e minha mãe. No último domingo estive em perigo . Eu tentava pegar um táxi, o que nos domingos é mais difícil pois muita gente que nunca anda de táxi resolve sair do sério e tomar. Não encontrei nenhum no lugar onde geralmente acho com facilidade, e resolvi caminhar até um ponto deles: estava vazio, a rua limpa. Fiquei ali mesmo esperando que algum aparecesse. Depois de muito tempo quem apareceu foi um grupo de pré-adolescentes, de uns 14 anos cada, não mais. As duas mocinhas de saia pelo meio das coxas, um dos meninos de cabelos crescidos até metade do pescoço. Junto de mim pararam, e a conversa deles era insolente e falsamente livre. Pensei: estão esperando táxi, quem vai ganhar são eles, pois sempre me recuso a correr, acho feio correr. Pensamento vai, pensamento vem, resolvi perguntar: “Vocês estão esperando táxi?” Resposta em tom malcriado de um deles: “Estamos.” Eu disse: “Mas o primeiro que vier vai ser meu, pois estou aqui há mais tempo que vocês.” O menino cabeludo respondeu com o pior tom de voz: “E por que é que eu...” Interrompi-o: “Por causa do que eu já disse, e porque eu podia ser mãe de vocês e não pretendo disputar táxi com um filho meu.” Eles ficaram por meio segundo me olhando perplexos, e então o menino respondeu com a voz inteiramente obediente e de súbito como uma criança mesmo: “Sim senhora.”
O perigo passara.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

A excitação de Zorba

Estava pensando na linhita? — perguntou Zorba com alguma hesitação.
Em que queria você que eu pensasse? — respondi-lhe rindo. — amanhã começamos o trabalho. Era preciso fazer uns cálculos.
Zorba olhou-me com o canto do olho. Vi que ele ainda uma vez me pesava, sem saber se devia acreditar ou não.
E qual o resultado dos cálculos? — perguntou de novo, aprofundando-se no assunto com prudência.
Que dentro de três meses devemos estar extraindo dez toneladas de linhita por dia para cobrir as despesas.
Zorba olhou-me ainda, mas desta vez com inquietação. Logo depois:
E por que Diabos você foi para a praia para fazer cálculos? — Desculpe-me, patrão, lhe pergunto isso, mas é que não entendo. Eu, quando vou lidar com cifras, a vontade que tenho é de abrir um buraco no cão e me enfiar nele, para não ver nada em volta de mim. Se levanto os olhos e vejo o mar, ou uma árvore, ou uma mulher, até uma velha, lá se vão os cálculos e as porcarias das cifras desaparecendo a galope. Até parecem que nascem asas neles!...
A culpa é sua Zorba! — disse para implicar. — você não tem é força para se concentrar.
Não sei não, patrão. Isso depende. Há casos em que nem o sábio Salomão... Veja, um dia passei numa aldeia. Um velho de noventa anos estava plantando uma amendoeira. “Ei, avozinho, disse eu. Estás plantando uma amendoeira?” e ele, curvado com estava, vira-se e me diz: “meu filho, eu faço as coisas como quem não vai morrer nunca.” E eu lhe respondo: “Pois eu as faço com se estivesse para morrer a cada instante.” Quem de nós tinha razão, patrão?
É nessa que eu te pego — disse.
Calei-me duas trilhas igualmente íngremes e ousadas podem levar ao mesmo cume. Agir como se a morte não existisse e agir pensando na morte a cada instante é talvez a mesma coisa. Mas quando Zorba me perguntou eu não sabia.
E então? — perguntou Zorba com malícia. — não se importe, patrão, não tem saída mesmo. Falemos de outra coisa. Eu, neste momento, penso em almoçar, na galinha, no arroz com canela, e meu cérebro solta fumaça como o arroz. Amanhã, a linhita estará diante de nós; e o nosso pensamento será linhita. Nada de mais medidas, certo?
Entramos na aldeia. As mulheres estava sentadas às portas das casas e tagarelavam; os velhos, apoiados em seus bastões, estavam quietos. Sob uma romãzeira carregada de frutos uma velha encarquilhada catava algumas coisas do neto. Diante do café estava um velho espigado, o rosto severo e concentrado, nariz aquilino, ar de grão-senhor; era Mavrandoni, o notável da aldeia, que nos havia alugado a mina de linhita. Havia passado na véspera na casa de Madame Hortência para nos levar para sua casa.
É uma vergonha para nós que vocês fiquem no albergue, como se não houvessem pessoas para recebê-los.
Era austero, e media suas palavras. Havíamos recusado. Ele ressentiu-se, mas não insistiu.
Fiz meu dever — declarou ao sair. — vocês são livres.
Logo depois enviou-nos dois queijos, uma cesta de romãs, um prato com uvas secas e figos e uma jarra de raki.
Saudações da parte do capitão Mavrandoni! — disse o criado, descarregando o burrico — pouca coisa, mandou dizer, mas de coração.
Cumprimentamos o notável abundantemente, com palavras cordiais.
Longa vida a vocês — respondeu ele, colocando sua mão ao peito. E calou-se.
Ele não gosta muito de falar — murmurou Zorba: — é um homem fechado.
Orgulhoso — disse eu. — gosto dele.
Estávamos chegando. As narinas de Zorba palpitavam alegremente. Madame Hortência, assim que nos viu à entrada, deu um grito e voltou à cozinha.
Zorba preparou a mesa no pátio, sob a latada aberta e já sem folhas. Cortou grandes pedaços de pão, trouxe o vinho, botou os pratos e talheres. Voltou-se, olhou-me maliciosamente e apontou-me a mesa: havia posto lugar para três!
Morou, patrão? — soprou-me.
Morei — respondi. — morei sim, velho debochado.
São as galinhas velhas que fazem as boas canjas — disse ele passando a língua nos lábios. — disso eu entendo.
Movimentava-se, ágil, e seus olhos dardejavam enquanto cantarolava velhas cantigas de amor.
Isso é que é vida, patrão. Boa vida. Veja, nesse momento estou me comportando como se fosse morrer agora. E apresso-me a comer a galinha antes que me quebrem o pito.
À mesa! — ordenou Madame Hortência.
Ergueu a terrina e veio colocá-la diante de nós. Mas ficou de boca aberta: havia visto os três lugares. Vermelha de prazer, olhou para Zorba com seus pequenos olhos ácidos, azuis, e tremelicou as pálpebras.
Essa tem fogo — segredou-me Zorba.
Depois, com extrema polidez, voltou-se para ela:
Bela ninfa das ondas — disse-lhe, — somos náufragos e o mar jogou-nos em teu reino. Digna-te a repartir conosco nosso almoço, minha sereia!
A velha cantora abriu os braços e tornou a fechá-los, como se quisesse envolver nós dois num abraço; balançou-se graciosamente, passou por Zorba, por mim, e correu cacarejando para seu quarto.
Logo depois voltou, trepidante, rebolando-se com seu melhor vestido: um velho vestido de veludo verde, gasto, enfeitado de cordões de cetim amarelo. O corpete estava hospitaleiramente aberto, e no decote pendera uma rosa de pano, puída. Na mão trazia a gaiola do papagaio, que pendurou numa trave da latada.
Fizemos com que ela se sentasse ao meio, Zorba à sua direita e eu à esquerda.
Atiramo-nos sobre o almoço. Um longo momento passou sem que nenhum de nós dissesse palavra. Em cada um a fera alimentava-se e embriagava-se com o vinho; a comida se transformava depressa em sangue, o mundo ficava mais belo, a mulher a nosso lado a cada instante parecia mais jovem, e suas rugas se apagavam. O papagaio suspenso à nossa frente, roupa verde e colete amarelo, debruçava-se para nos olhar e parecia hora um homenzinho enfeitiçado ora a alma da velha cantora, vestida de verde e amarelo. E sobre nossas cabeças a latada desfolhada se cobria de repente com grandes cachos de uvas negras.
Zorba revirou os olhos e abriu os braços como se quisesse abarcar com eles todo o mundo.
O que se passa, patrão? — disse ele, estupefato, — bebe-se um copo de vinho e o mundo perde o rumo. E, assim mesmo, que coisa é a vida, patrão! Afinal, isso que pende sobre sua cabeça são uvas? São anjos? Não consigo distinguir. Ou então não é nada, e nada existe; nem galinha, nem sereia, nem Creta? Fale, patrão, fale ou fico louco!
Zorba começava a ficar excitado. Tinha terminado a galinha e olhava gulosamente para Madame Hortência. Seus olhos se jogavam sobre ela, subiam e desciam, esgueiravam-se para dentro de seu colo intumescido e apalpavam-na com as mãos. Os pequeninos olhos de nossa boa senhora brilhavam também, pois gostava de vinho, e havia tomado Deus quem sabe quantos copos. E o turbulento demônio do vinho a havia levado de volta aos bons tempos. Readquirida a ternura, alegre e expansiva, ela se levantou, trancou a porta de fora para que os aldeões não a vissem — “os Bárbaros” como ela os chamava — acendeu um cigarro e, com seu narizinho arrebitado à francesa, pôs-se a soltar espirais de fumaça.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego

Impressionista

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

Adélia Prado

A pergunta inevitável

Recentemente, dei uma palestra num evento empresarial para duzentos executivos da área de seguros. Mesmo que tenha ocorrido fora do Brasil, minha experiência é que as coisas não teriam sido muito diferentes em qualquer cidade brasileira. Meu objetivo era inspirar o grupo a embarcar numa reflexão bem macro, provocando-os gentilmente com perguntas de caráter existencial que, na correria do dia a dia, tendemos, convenientemente, a deixar de lado. Os organizadores pediram que falasse sobre nosso lugar no Universo, sobre o que as descobertas da ciência moderna têm a nos dizer sobre nossas origens cósmicas e nossa busca por sentido, sobre nossa função como espécie pensante, e sobre nosso futuro na Terra.
Comecei explicando que somos criaturas flanqueadas por dois momentos essenciais no tempo, e que a história de nossas vidas se dá entre eles, o nascimento e a morte. Da mesma forma, as estrelas no Universo também têm suas histórias, com um começo e um fim. Considero a consciência que temos da passagem do tempo nossa característica mais marcante: sabermos que existimos e que nossa existência inevitavelmente chega ao fim. (Quando disse isso, percebi que alguns dos executivos sorriram, provavelmente os que trabalham com seguro de vida.)
Argumentei que muito da criatividade humana, os poemas e sinfonias, a literatura, as ciências e as ideias filosóficas, a soma de nossas obras culturais, pode ser visto como uma resposta ao fato de sermos criaturas cientes do nosso destino, tentativas, de alguma forma, de colorir a existência com o que temos de melhor, fazendo cada dia valer a pena. O amor, o sexo, o poder, as relações são as placas ao longo do caminho que, durante nossas vidas, nos levam nessa ou naquela direção.
Afinal, somos produtos de nossas escolhas, boas ou más. Continuei discutindo a questão das origens: do Universo, das estrelas, da vida, explicando que praticamente todas as culturas que existiram e existem, dos egípcios aos maias, dos ianomâmis à ciência moderna, ofereceram uma narrativa da Criação, uma tentativa de entender de onde veio tudo o que existe no mundo, inclusive o próprio. Olhar para as estrelas numa noite sem lua, longe das luzes da cidade, ver tantas delas, nos faz querer saber se existem outras criaturas vivendo nos planetas e luas que giram ao seu redor, ao mesmo tempo semelhantes e diferentes de nós.
Será que estão, também, olhando para as estrelas, se questionando se estão sozinhas no cosmo? E que tipo de inteligência teriam? Individual? Coletiva? Máquinas que ultrapassaram a fase da carne e osso? Ou serão elas algo completamente insuspeitado por nossas mentes? Quando pensamos que, apenas na nossa galáxia, existem em torno de 200 bilhões de estrelas, o Sol sendo apenas uma delas, fica difícil não imaginar essas coisas, especialmente agora, que sabemos que a maioria das estrelas tem planetas girando à sua volta, e que muitos destes têm luas.
São, portanto, trilhões de mundos lá fora, cada qual único, com sua história e possibilidades. Mostrei imagens belíssimas, tiradas pelo Telescópio Espacial Hubble e por outros, de robôs motorizados rondando pela superfície de Marte, fotos de outros mundos, revelando seus segredos, máquinas controladas por cientistas e engenheiros aqui na Terra, uma mágica que só não é mágica porque é real. Sugeri à minha audiência que essas máquinas maravilhosas, que tanto nos revelam sobre o Universo e, por consequência, sobre nós, deveriam ser celebradas como grandes feitos da humanidade, ao lado das pirâmides, das catedrais medievais, da arquitetura de Brasília ou Barcelona, da Mona Lisa, das sinfonias de Mahler e das canções dos Beatles e do Tom Jobim.
Expliquei que, ao contrário do que muitos pensam, e como argumento em meus livros A ilha do conhecimento e A simples beleza do inesperado, quanto mais aprendemos sobre o Universo, mais relevantes ficamos, máquinas moleculares que somos, capazes de imaginar e de descobrir aspectos da realidade muito além da nossa percepção. Tentei, com palavras e imagens, celebrar a criatividade humana e a beleza austera do Universo, capazes de criar e destruir com inacreditável beleza e fúria.
Argumentei que o trágico e o sublime são, como as duas faces de Jano, aspectos inseparáveis da existência, partes do mesmo todo. Argumentei, ainda, que somos relevantes por sermos únicos, que somos criaturas especiais justamente por não termos sido criadas como parte de algum plano maior. Terminei explicando que é justamente por sermos únicos no Universo, por nosso planeta ser único na galáxia, que devemos nos unir como espécie e lutar pela nossa sobrevivência e a do nosso planeta, indo, finalmente, além das divisões tribais que dominaram e que dominam até hoje nossa história coletiva, e que tanto destroem. Ao fim disso tudo, tão inexorável quanto a passagem do tempo, me fizeram a pergunta inevitável: “Mas, afinal, o senhor acredita ou não em Deus?”

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

Três razões

Penetra em tua própria razão, na do todo e na deste homem. Na tua, para fazeres teu espírito justo; na do todo para teres sempre na memória o conjunto de que és parte; na deste homem, para verificares se ele é ignorância ou reflexão e, ao mesmo tempo, para teres conta que ele é aparentado a ti.

Marco Aurélio, in Meditações

Retrato do nadador quando jovem

 


O carro dobra a esquina e me vejo perdido na confusão de sempre: em frente ao cinema Veneza, os que vão para a esquerda estão à direita e os que vão para a direita estão à esquerda. Dou por mim entrando no posto de gasolina junto à piscina do Botafogo.
Quantos litros?
Não, não quero gasolina: parei aqui por imposição do tráfego. Mas acho que obedeci, antes a um impulso do inconsciente: esta piscina sempre me intrigou. Uma construção esquisita, abaulada como o costado de um navio, sem revestimento, como uma obra inacabada – sempre que passo por aqui a caminho da cidade me dá vontade de ir lá dentro. Ver os nadadores, ver como vai indo a natação hoje em dia. Assistir talvez a uma competição um dia desses.
Como é que se vai lá dentro?
Orientado pelo empregado do posto, conduzo o carro até o estacionamento debaixo da piscina. Uma piscina suspensa. No meu tempo eu só podia conceber uma piscina como um buraco cavado no chão e cheio d’água.
O encarregado da portaria me diz que posso entrar à vontade. Pergunto pelo Sílvio Fiolo: seria bom assistir ao treino de um campeão. Mas ele não está – em compensação, Roberto Pavel deve chegar de uma hora para outra.
Subo os dois lances da rampa, o que não dá para me tirar o fôlego. Eis a piscina. Bela como a projeção de um slide, debruçada sobre a enseada, ao fundo do Pão de Açúcar. Parece flutuar sobre a corrente de tráfego que me trouxe até aqui. A água de um azul luminoso se agita com o movimento de dezenas de nadadores nas raias dispostas em sentido transversal. Alguns curiosos do mundo adulto, como eu – não serão ex-nadadores, mas simplesmente pais ou acompanhantes – se espalham na arquibancada, olhando distraidamente a meninada. Porque são todos bem jovens, nadador começa cedo. E, de repente, este ar úmido, esta atmosfera peculiar a todas as piscinas, este vago cheiro de cloro que me vem como uma emanação da minha juventude.
Dia de competição: o ambiente festivo, tenso de expectativa e emoção, longe da monotonia dos treinos e da despreocupação dos dias comuns. Havia qualquer coisa de silício naquela longa e obstinada mortificação do corpo para conquistar a vitória. Ou era a simples vaidade humana de ser um animal veloz? Participar de uma disputa a que ninguém nos obrigava, despender até o fim e além do fim o que tivéssemos de energia para conquistar alguns décimos de segundo – que ganhávamos com isso? Chegada a nossa vez, caminhávamos para a borda da piscina como condenados para o sacrifício. E no dia seguinte, passada a hora da provação, tudo recomeçava – o esforço minucioso e tenaz para conseguir baixar mais alguns décimos de segundo. Tudo isso para quê?
É o que a natação, como esporte, tem de mais trágico: tudo isso para nada. Sair da terra firme, fazer da água seu elemento e substância é para o nadador um desafio à sua própria natureza. Daí a tendência dos ex-nadadores para a aviação. Ou a fatalidade dos que morrem afogados.
Pavel é um ex-nadador de 34 anos, físico de atleta, fisionomia jovem e limpa, dedicado como um missionário à sua tarefa. Com dicção clara e elaborada, vai me explicando o que é a natação hoje em dia. Suas ideias são bem formuladas, denunciando excelente preparo em cursos especializados. Nada de noções empíricas do meu tempo, em que cada nadador era para o técnico um ser humano diferente, com maior ou menor jeito para o esporte. Fala em biomecânica, em endurance, em interval training, em método Cooper – não confundir com o teste Cooper, é o método mesmo. Estou sabendo. E em controle de pulsação cardíaca. Sei, sei. As emulações motivadoras. O campo somático e o campo psíquico. Tudo isso em meio à conversa, de maneira simples, despretensiosa e convincente. Estou sabendo. Natação hoje é uma ciência.
Sei, sei...

Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula

Embate

Na luta entre você e o mundo, apoie o mundo.

Franz Kafka, in Aforismos reunidos

O colecionador das almas sobradas

 


A Bagé, em Porto Alegre, seria uma rua igual a todas as outras do bairro Petrópolis. Seria, não fosse o número 81. Ele é o pedaço de caos na ordem cósmica da Bagé. O triângulo no meio da fileira de quadrados. O protesto bruto à sociedade de consumo, descartável e implacável. O número 81 da rua Bagé é a toca de um homem pequeno, não mais de metro e meio de altura, mirrado como um suspiro. É a toca de Oscar Kulemkamp. Lá dentro, há fragmentos de uma Porto Alegre inteira.
Ninguém sabe dizer quando foi que Oscar Kulemkamp iniciou sua resistência. O fato é que dia após dia ele peregrina pelas ruas de Porto Alegre. Começou resgatando banquinhos amputados e lhes devolvendo as pernas. Acabou tomando para si a missão de juntar os pedaços da cidade. Vai de lixeira em lixeira, até onde alcança, recolhendo nacos de pau e de canos, ventiladores estragados, vasos quebrados, brinquedos abandonados. Tarefa árdua, porque ele é um só combatente contra um exército de 1,3 milhão de pessoas que todos os dias botam fora as sobras de suas vidas.
Oscar Kulemkamp apropriou-se dessas vidas jogadas fora. E salvou-as do aterro sanitário do esquecimento. Foi assim que o chalé de madeira onde criou os sete filhos se transformou numa toca. Retalhos de existência foram tomando conta das peças da casa. Quando o interior ficou abarrotado, começou a ocupar o quintal, o corredor, os fundos. Quando todos os espaços foram preenchidos, passou a pendurar nos galhos dos cinamomos, dos abacateiros. Depois das árvores foi a vez da calçada. O casulo de Oscar Kulemkamp não parou mais de crescer. Agora as janelas já estão cobertas de obsolescências e ele só penetra na casa esgueirando-se por um túnel de restos.
Não fosse reinventar o mundo, Oscar Kulemkamp seria dono apenas de uma vida que partiu. Como a mulher, quatro anos atrás. E uma filha, de câncer. Garçom a maior parte de seus 85 anos, as mesas que serviu já não existem. São nomes do passado, quase pó, como o Restaurante Sherazade. Histórias não mais contadas, ruas que já se foram, personagens que só povoam os cemitérios.
Ele emerge de seu túnel sem tempo como uma toupeira miúda. Veste roupas pobres, puídas e encardidas pela poeira dos dias. Está mais surdo do que porta de igreja, como ele diz. E não fosse recolher restos de existências alheias, teria somente os dois filhos que compartilham de sua caverna – um que vive nas trevas e jamais sai de casa, outro que às vezes o ameaça de morte. Os quatro filhos que casaram e não compreendem a sua obsessão. E os dois gatos que travam infindáveis batalhas com o esquadrão de ratos que persegue o rastro do antigo habitante da Bagé.
Oscar Kulemkamp teceu sua colcha de retalhos com a vida dos outros. Com o refugo da vida dos outros. Cartões que jamais foram enviados a ele. “Rezei tanto para ficar com você nesse Natal.” Manuais de objetos que nunca lhe pertenceram. “Atenção: este televisor reúne várias inovações. Para entendê-lo e aproveitar todos os seus recursos é indispensável que o primeiro passo seja ler o manual de instruções.” Encomendas que nunca fez. “Trabalhos pagos com cheques só serão entregues após a compensação dos mesmos.” Identidades alheias, carteiras de profissões que nunca serão suas. Páginas de revistas, panfletos, santinhos. Quadro de uma família real, gravura de neve. Até mesmo um pedaço de papel escrito “Sou feliz!”. Bolas de Natal de uma árvore que não brilhou no seu dezembro.
No esconderijo de Oscar Kulemkamp, os balões murchos do aniversário de uma criança que não conheceu decoram todos os dias de sua vida. Um enfeite feito de palitos de picolé por um filho – e mais tarde abandonado pela mãe que o recebeu – foi acomodado no armário da sala. As bonecas tortas, quebradas, esbodegadas foram enfileiradas. E as meninas rejeitadas que sorriem das fotografias, penduradas como netas queridas.
Os vizinhos se assustam com aquele casulo que cresce sem parar, aquelas sombras metade árvores metade lixo que avançam sobre a rua. Uma moradora pediu providências ao Departamento Municipal de Limpeza Urbana, que carregou parte do tesouro de Oscar Kulemkamp. Tão desesperado ele ficou que mais ninguém teve coragem de ensaiar o protesto. Um vizinho compreensivo já deixou de prontidão a mangueira, para que no dia em que tudo aquilo virar chamas consiga pelo menos salvar o homem engastado em sua caverna. Então ele poderá iniciar novamente a sua jornada sem fim para salvar os pedaços da cidade.
Quando surge lá de dentro, desconfiado e sorridente, Oscar Kulemkamp já vai explicando que um dia, um dia em breve, vai levar tudo aquilo para construir uma casa na praia. Uma Pasárgada onde bonecas cansadas, fotografias de crianças que já se deixou de amar e cartões de aniversário que se foram não virem lixo. Um mundo onde nem coisas nem pessoas sejam descartáveis. Onde nada nem ninguém fique obsoleto depois de velho, quebrado ou torto. Um mundo onde todos tenham igual valor. E a nenhum seja dado uma lixeira por destino.
O número 81 da rua Bagé é o castelo de um homem que inventou um mundo sem sobras. Dando valor ao que não tinha, Oscar Kulemkamp deu valor a si mesmo. Colecionando vidas jogadas fora, Oscar Kulemkamp salvou a sua. Talvez seja esse o mistério do número 81. E talvez por isso seja tão assustador.

Eliane Brum, in A vida que ninguém vê

A agulha

Na manhã seguinte, o mar ainda não apaziguado rolava em ondas longas e vagarosas, de um volume enorme, e empenhadas em meio aos borbotões do rastro do Pequod empurravam-no adiante como as mãos espalmadas de um gigante. A brisa forte e galharda era tão abundante que céu e ar se afiguravam imensas velas enfunadas; o mundo inteiro avançava ao vento. Encoberto em plena luz matinal, o sol invisível só se reconhecia pela intensidade irradiada de seu posto; de onde seus raios de baioneta partiam às medas. Adornos, como os dos reis e rainhas coroados da Babilônia, reinavam sobre tudo. O mar era como uma copela de ouro fundido, que, jorrando, salta com luz e calor.
Longamente impondo-se um silêncio encantado, Ahab permaneceu a distância; e sempre que o gurupés do navio, que jogava da popa à proa, afundava, ele se virava para olhar os raios brilhantes do sol que surgiam à frente; e, quando o navio mergulhava pela popa, virava-se para trás para ver o lugar do sol à retaguarda e como os mesmos raios amarelos se fundiam com o rastro incontornável.
Ha, ha, meu navio! Tu bem poderias ser tomado pela carruagem marítima do sol. Ho, ho! Vós, nações perante minha proa, eu vos trago o sol! Aparelhai-vos sempre mais, ondas distantes! Olá! Um tandem, eu dirijo o mar!”
Mas de repente, freado por um pensamento contrário, correu em direção ao leme, exigindo roucamente saber qual era a direção do navio.
Lés-sudeste, senhor”, disse o timoneiro assustado. “Mentes!”, acertando-lhe com o punho cerrado. “Rumo leste a essa hora da manhã com o sol à ré?”
Diante disso, todos os marinheiros ficaram confusos; pois o fenômeno então observado por Ahab escapara inexplicavelmente a todos; mas a própria evidência incompreensível deve ter sido a causa.
Avançando com a cabeça a meio palmo da bitácula, Ahab deu uma olhada nas bússolas; seu braço levantado tombou devagar; por um instante, pareceu a ponto de cambalear. De pé atrás dele, Starbuck olhou e, oh!, as duas bússolas indicavam leste e era certo que o Pequod estava navegando para oeste.
Mas, antes que o primeiro alarme tumultuoso chegasse ao meio da tripulação, o velho, com um riso seco, exclamou, “Entendi! Já aconteceu antes. Senhor Starbuck, o estrondo de ontem alterou as nossas bússolas – isso é tudo. Suponho que já ouviste falar disso antes”.
Sim, mas nunca antes me tinha acontecido, senhor”, disse o pálido oficial, com ar sombrio.
Aqui é necessário dizer que acidentes como esse ocorreram mais de uma vez com navios no transcurso de uma tempestade violenta. A energia magnética que se desenvolve na agulha de marear é, como todos sabem, essencialmente da mesma natureza da eletricidade do céu; portanto, não é de se estranhar que tais coisas aconteçam. Nos casos em que o raio de fato atingiu a embarcação, destruindo uma parte das vergas e do cordame, o efeito sobre a agulha foi por vezes ainda mais fatal; toda a força magnética da agulha ficou aniquilada, de tal modo que o aço, antes magnético, ficou tão útil quanto a agulha de tricô de uma velha senhora. Mas, seja como for, a agulha, por si mesma, nunca mais recupera a força original, assim estragada ou perdida; e, se as bússolas da bitácula são afetadas, o mesmo acontece às outras que se encontram a bordo; mesmo que a mais baixa delas esteja inserida na sobrequilha.
Deliberadamente de pé em frente à bitácula e olhando para as bússolas desreguladas, o velho, com a ponta da mão estendida na direção exata do sol e convencido de que as agulhas estavam exatamente invertidas, ordenou aos gritos que a rota do navio fosse alterada. As vergas foram colocadas com dificuldade; e mais uma vez o Pequod lançou sua proa intrépida ao vento contrário, pois o suposto vento favorável era mera trapaça.
Nesse ínterim, quaisquer que fossem seus pensamentos secretos, Starbuck nada disse, mas com calma expediu as ordens requeridas; enquanto Stubb e Flask – que em certa medida pareciam compartilhar de seus sentimentos – também aquiesceram sem um murmúrio. Quanto aos marinheiros, embora alguns deles resmungassem em voz baixa, seu medo de Ahab era maior que seu medo do Destino. Mas, como sempre se dera antes, os arpoadores pagãos permaneceram inabaláveis; ou, se abalados, apenas por um certo magnetismo injetado em seus corações amáveis pelo coração inflexível de Ahab.
Durante algum tempo o velho caminhou pelo convés em devaneios circulares. Mas, escorregando por acaso com o salto de marfim, viu os tubos de cobre esmagados do quadrante que no dia anterior atirara ao convés.
Tu, pobre e orgulhoso contemplador do céu e piloto do sol! Ontem eu te destruí, e hoje as bússolas quiseram destruir a mim. Bem, bem! Mas Ahab é ainda o senhor do ímã. Senhor Starbuck – uma lança sem o cabo; um pilão; e a menor agulha de coser velas. Rápido!”
Atreladas, talvez, ao impulso que ditava a ação que estava por fazer, havia certas razões de prudência, cujo objetivo seria reanimar o moral da tripulação com um gesto de sutil habilidade, num caso tão assombroso como o das agulhas invertidas. Ademais, o velho bem sabia que pilotar por agulhas desreguladas, embora fosse canhestramente praticável, não era coisa que marinheiros supersticiosos aceitassem sem alguns sobressaltos e maus presságios.
Homens”, disse ele, olhando fixamente para a tripulação, enquanto o oficial lhe entregava as coisas que pedira, “meus homens, o trovão inverteu as agulhas do velho Ahab; mas com esse pedacinho de aço Ahab pode fazer uma à sua maneira, que nos orientará tão bem quanto qualquer outra.”
Olhares desconcertados de admiração servil foram trocados entre os marinheiros, enquanto escutavam essas palavras; e com olhos fascinados aguardaram a tal mágica que se seguiria. Mas Starbuck olhou para longe.
Com um golpe de pilão Ahab tirou a cabeça de aço da lança e então, entregando a longa haste de ferro ao oficial, pediu-lhe que a segurasse reta, sem tocar no convés. Em seguida, depois de golpear repetidas vezes a extremidade superior da haste de ferro, colocou em cima do pilão a agulha cega e, com menos força, bateu ali diversas vezes, com o oficial ainda segurando a haste como antes. Então, fazendo alguns movimentos estranhos com ela – talvez indispensáveis para magnetizar o aço, ou com a simples intenção de aumentar o assombro da tripulação –, pediu um fio de linho; e, movendo-se para a bitácula, retirou as duas agulhas invertidas de lá e suspendeu horizontalmente a agulha de vela pelo meio, sobre uma das rosas-dos-ventos da bússola. De início o aço deu várias voltas, tremendo e vibrando nas duas extremidades; mas, por fim, fixou-se em seu lugar, quando Ahab, que esperava ansioso por esse resultado, se afastou ostensivamente da bitácula e, apontando-a com o braço esticado, exclamou – “Vede com os vossos olhos se Ahab não é o senhor do ímã! O sol está a leste e a bússola jura isso!”.
Um após o outro, eles espiaram, pois nada senão seus próprios olhos poderiam persuadir uma ignorância como a deles, e, um após o outro, retiraram-se furtivamente.
Com os olhos flamejantes de desprezo e triunfo, vocês então encontrariam Ahab em todo o seu orgulho fatal.

Herman Melville, in Moby Dick

Sementinhas

Professora, sabe sexo explícito?
Pronto, pensou a professora. Chegou a hora. A turma ainda não estava na idade para educação sexual, mas quem sabe qual é a idade, hoje em dia?
Professora, sabe sexo explícito?
Eu já ouvi, Maurício. É sobre isso que nós vamos conversar hoje.
Mas, professora...
Senta, Maurício.
O menino estava impaciente. Ela entendia. Todos deviam estar impacientes. O sexo estava por toda parte. Era natural a curiosidade deles.
Mesmo naquela idade.
Todos sabem o que é uma planta, não sabem? Agora eu quero o nome de uma planta. Judite?
Flor — disse a Judite.
Muito bem. E que tipo de flor?
Rosa! — apressou-se a dizer a Rosa.
Muito bem. Eu vou desenhar uma rosa. E a professora desenhou uma semente.
Isto parece uma rosa?
Não senhora.
Claro que não. Isto é uma semente. É o começo da rosa. Toda plantinha começa com uma semente. Alguém bota uma semente na terra e a plantinha vai crescendo, vai crescendo...
Professora…
O que é, Maurício?
Sabe sexo explícito?
Espera um pouquinho, Maurício. Nós já chegamos lá.
Mas, professora...
Senta, Maurício.
Mas...
Senta!
Tá bem.
E o menino sentou, com cara de mártir.
Primeiro tem a semente. Depois a plantinha vai nascendo da semente. Vocês também começaram de uma sementinha, como esta. Dentro da barriga da mamãe. E quem foi que botou a sementinha na barriga da mamãe? Alguém sabe?
Foi o meu pai — disse o Maurício. — Mas, professora...
Foi o papai, certo. Vejo que essa parte vocês já sabem. E como é que o papai põe a sementinha na barriga da mamãe? Quem sabe?
Silêncio.
Professora...
O que, Maurício...
Nós sabemos tudo isso.
Tudo?
Tudo — confirmou a Rosa.
Sabe sexo explícito? — insistiu o Maurício.
Sei — disse a professora, desconfiada. — Que que tem sexo explícito?
Passarinho faz sexo expíucito.
Como é?
Expíucito. Passarinho faz sexo expíucito.
Por um longo tempo, enquanto as crianças riam, a professora ficou paralisada. Depois apagou a semente do quadro-negro e disse para todo mundo pegar lápis colorido e desenhar uma paisagem bem bonita.

Luís Fernando Veríssimo, in O santinho

O sorriso da Mona Lisa

Será preciso
explicar o sorriso
da Mona Lisa
para que você
acredite em mim
quando digo
que o tempo passa?

Paulo Leminski

Gosto que me enrosco de botar os bofes pra fora

Aliás e não obstante, como eu estava dizendo. Meter a língua onde não se foi chamado é esticar a dita cuja cheia de palavrinhas antigas e deixar de lero-lero e mas-mas. Não amolar com nhenhenhém muxiba, mixuruca e xarope. É soltar o verbo como se fosse um bife do Lamas. No capricho.
Esticar a língua na maciota é se valer de todo o baita charivari de expressões que fomos deixando pra trás, mais ou menos lá onde o Judas perdeu as botas. É deixar de lado essa prosa cheia de nove horas, cheia de dedos desses otários metidos, gente que paga a maior goma para falar alavancar e customizar, achando que isso é coisa de quem tomou tenência na vida. Ora, vão pentear macaco, seus convencidos! Conversa mole pra boi dormir!
Gosto que me enrosco é de botar os bofes pra fora. Deixar a língua no vai-da-valsa, sacumé?, metendo bronca, ora aqui ora ali, sem lesco-lesco e derrubando os paradigmas tacanhos de que as palavras, como o bambolê e o óleo de fígado de bacalhau, foram feitas para passar. Eu te proponho nós nos amarmos, nos entregarmos e ainda por cima, por obséquio, arrumar o maior bololô com esse papo pancada. Ou quantos discursos mais desses serão necessários ainda até que se reinstaure na língua praticada a evidente beleza sonora de anunciar que fulano, ou que sicrano, ou que beltrano, infelizmente, não virá. Que o energúmeno tá borocoxô! Ou seja, garotada, o cara da pá virada tá totalmente down. Eu sei que um bom menino não faz pipi na cama, que uma boa menina não fica falada nem se de paquete e sei acima de tudo que um bom cronista, por mais que lá de baixo a turbamulta grite “pula, pula”, um bom cronista nunca deve repetir o truque sob o risco de, atendidos os pedidos, diante do corpo estendido no chão, alguém passe a muxoxar macambúzio – ih, caramba, olha aquele cocoroca tantã azucrinando de novo com a parada da língua retrô! Para alguns pode parecer que é fogo na roupa, de lascar o cano. Que ganhar o ordenado assim é sopa no mel. Mas, se vale a pena ver de novo as novelas da Globo, a leitora Cecília Pontual Romano quer ver de novo todo mundo, seja manteiga derretida ou aquela bruaca cheia de goró, todo mundo falando beleléu, cucuia, fuinha, desmilinguida e o que mais couber nesse estrogonofe de letrinhas que lembra a mãe dela, a minha escola, a nossa rua.
De uma mulher gostosa, boas pernas, dizia-se possuidora de um tremendo mocotó! Era uma uva. Vestida de négligé preto, era supimpa. O rapaz não tinha bíceps, mas muque. Era um pão, embora quase todos sofressem de espinhela caída. Uns bilontras. Parlapatões. Biltres. Jilós. É um tipo de memória verbal que foi sendo demolida do patrimônio comum da mesma maneira neurastênica, um faniquito, um fricote, que fizeram com o Monroe da Cinelândia. São ideias furrecas, estabanadas e escalafobéticas que entram de chanca, como se um quarto-zagueiro fossem, no joelho da nacionalidade.
Vamos, pois, meter de novo a língua, de fuzarca, frege ou fuzuê que seja, no borogodó delas. Feche os olhos e sinta o peso da bilabial explodindo sonora a boca do balão: tem bububu no bobobó! É bárbaro! Meu bambambã! Que buzanfã!
Ao contrário do Morro do Castelo, que caiu em 1922 mas se deixou registrar em milhares de fotos, algumas dessas palavras sequer foram dicionarizadas – e não adianta, no meio de algum rififi, quando estiver esculhambando geral com a patota, você ficar repetindo para os seus filhos que eles são garganta, ó, só gogó. Eles têm todo o direito de não acreditar que ainda há pouco, não só à boca pequena, não só num sururu rastaquera, todos falavam assim. Eles vão ter um treco de tanto rir e você, depois de gastar tamanho tremelique, depois de chamá-los de entupidos, é que vai ficar no ora veja.
À bangu, tá me entendendo? À neném, saca?
Língua também brinca de moda. É mais fácil, para um garoto de 15 anos, enfiar um piercing nela do que enfiar ela nas palavras muquirana, estrupício, desengonçado e encasquetar. Fazer o quê, mano maluco? As novas gerações ouvem essas palavras e, da mesma maneira que avaliam o mocotó das certinhas do Lalau, acham que eram apenas senhoras gordas. Embromação chué, perrengue invocado e o escambau a quatro.
É bem provável que se a vovó disser pára de se enrabichar por aquela porqueira, e o vovô responder que a oferecida quer rosetar mas não é com ele – é bem possível, e com toda a razão, que o netinho ponha ordem nessa balbúrdia gritando ei, óia o auê aí, ô!
Não se quer, de jeito nenhum, folgar com a evolução semântica. Seria de amargar, forçar a natureza do português. O vestido trapézio foi esquecido, é natural que tenha acontecido o mesmo com o conheceu, papudo!? De vez em quando, porém, tire uma onda. Da mesma maneira que o rock toda hora vai ao túmulo do Elvis e pega um fio de ideia no topete do cara, o papo deveria brincar também com essas sonoridades supimpas. É preciso apenas o timing certo.
Eu seria pamonha demais, coió mesmo, se chegasse com a corda toda para a estagiária e achasse que teríamos um cacho se lhe elogiasse a tribal no cóccix com o sussurrar galante uau, broto, ficou um estouro.
A língua, quando mexe e muda de lugar, você sabe, aí é que aumenta o prazer. Brinque com a memória dela. E que ninguém venha com o muxoxo de azia, não é minha tia. Língua é mãe.

Joaquim Ferreira dos Santos, in Em Busca do Borogodó Perdido

Bananeiras

Uma estrada ladeada de árvores é muito bonita, mas há quem seja contra, dizendo que uma árvore pode livrar o motorista de cair num abismo, mas também resultar numa batida mortal.
Hector Barnabé, vulgo Carybé, bom desenhista e mau motorista, cheio de especial senso baiano, tem uma ideia a respeito, que transmito ao DNER: ladear as estradas de bananeiras.
E explica as vantagens: segura o carro, a batida é mais mole e ainda por cima dá bananas, aos cachos.

Rubem Braga, in Recado de primavera

Dante, o “companheiro de viagens”

Era domingo, e os trabalhadores deviam vir no dia seguinte, das aldeias próximas, para começar o trabalho da mina. Tinha, portanto, tempo para dar uma volta e ver sobre que praias me havia jogado a sorte. A madrugada acabava de raiar quando saí. Passei os jardins, e acompanhei a praia; travei apressadamente relações com a água, a terra e o ar das redondezas; colhi plantas selvagens e minhas mãos ganharam logo o cheiro da salsa, da erva-doce, da hortelã.
Subi a uma elevação e olhei à volta. Uma paisagem austera, de granito e pedra dura. Árvores sombrias, oliveiras prateadas, figueiras e vinhedos. Em partes mais defendidas, pomares com laranjeiras, limoeiros e nespereiras; perto do mar, as hortas. Ao sul, o mar ainda irritado, imenso, vindo das costas africanas, barulhento, lançava-se rosnando de encontro a Creta. Pertinho uma ilhota baixa, arenosa, pintada de um tom rosa, virginal sob os primeiros raios.
Essa paisagem cretense parecia assemelhar-se à boa prosa: bem trabalhada, sóbria, sem riquezas supérfluas, possante e contida.
Expressava o essencial com os meios mais simples. Não brincava, e recusava-se a utilizar qualquer artifício. Dizia o que tinha a dizer com uma austeridade viril. Mas, entre as linhas severas, distinguia-se uma sensibilidade e ternura inesperadas; nas partes mais defendidas os limoeiros e laranjeiras recendiam, e mais longe, do mar infinito, emanava uma inesgotável poesia.
Creta — murmurei, — Creta... — e meu coração batia.
Desci da pequena colina e retomei a praia. Meninas alegres apareceram, mantilhas brancas como a neve, altas botas amarelas, saias enfunadas; iam à missa no monastério que se via ao longe, estonteante de brancura, à beira-mar.
Parei. Desde que me viram, seus risos se apagaram. Seus rostos, ao ver um homem estranho, se fecharam. Da cabeça aos pés seus corpos se puseram na defensiva, e seus dedos se cruzavam sobre os corpetes estreitamente abotoados. Seus corações se apressaram. Sobre todas as costas cretenses voltadas para a África os corsários fizeram durante séculos incursões repentinas, destruindo rebanhos, mulheres, crianças. Eles se amarravam com seus cinturões vermelhos, jogavam-nas aos porões e levantavam-nas para vender na Argélia, em Alexandria ou Beirute. Durante séculos, nesse litoral cheio de tranças negras, o mar fez ecoar os prantos. Vi aproximaram-se as meninas ariscas, coladas umas às outras como para formar uma barreira intransponível. Movimentos seguros, indispensáveis nos séculos passados, e que voltavam hoje sem razão, seguindo o ritmo de uma necessidade já desaparecida.
Quando cruzamos, afastei-me tranquilamente e sorri.
Imediatamente, como se percebessem de repente que o perigo passara há séculos — acordando subitamente na nossa época de segurança — seus rostos se iluminaram, a frente de combate em fileira cerrada espaçou-se, e todas elas a um só tempo me disseram bom dia com vozes alegres e límpidas. Nesse minuto, os sinos do monastério, felizes e brincalhões, encheram o ar com sua alegria.
O sol já ia alto, o céu estava limpo. Acomodei-me entre os rochedos, aninhado como uma gaivota em seu buraco, e contemplei o mar. Sentia meu corpo cheio de forças, fresco e dócil. E meu espírito, acompanhando o movimento das ondas, tornou-se ele mesmo uma onda e submeteu-se ao ritmo do mar.
Pouco a pouco meu coração enchia-se. Vozes obscuras subiam dentro de mim, imperiosas e suplicantes. Sabia quem chamava.
Bastava que eu ficasse a sós um instante para que ele gritasse em mim, angustiado por pressentimentos horríveis, de pavores loucos, de exaltações, e esperava de mim o parto.
Abri rapidamente o Dante, o “companheiro de viagens”, para não ouvir e calar o terrível demônio. Folheava, lia um verso aqui, outro lá, vinha-me à cabeça o canto inteiro e, dessas páginas ardentes, saíam uivando os condados. Mais alto, almas feridas esforçavam-se em escalar uma alta e escarpada montanha. Mais alto ainda, vagavam em planícies de esmeraldas as almas dos bem-aventurados, como brilhantes vaga-lumes. Ia e vinha de alto a baixo no terrível edifício do destino, circulava à vontade no Inferno, no Purgatório e no Paraíso como em minha própria casa. Sofria, aguardava ou desfrutava da beatitude, deixando-me levar pelos versos maravilhosos.
De repente fechei o Dante e olhei ao largo. Uma gaivota, deitada sobre uma onda, subia e descia com ela, saboreando feliz a grande volúpia do abandono. Um jovem bronzeado surgiu à beira da água, descalço e cantando cantigas de amor. Talvez compreendesse ele o sofrimento que expressavam, pois sua voz começava a enrouquecer como a de um jovem galo.
Durante anos, séculos, os versos de Dante eram cantados assim na terra do poeta. E como as canções de amor preparam os rapazes e moças para amar, os ardentes versos florentinos preparavam os efebos italianos para a luta pela libertação. Todos, de geração em geração, comungavam com a alma do poeta, fazendo de sua escravatura a liberdade.
Ouvi um riso atrás de mim. Despenquei-me de uma vez só dos píncaros dantescos, voltei-me e vi Zorba em pé, rindo com todo o rosto.
Que modos são esses, patrão? — gritou ele — há horas estou a sua procura, mas de onde desencravá-lo?
E, como me visse silencioso, imóvel:
Já passa de meio-dia — gritou ele, — a galinha está no ponto; se continua no fogo vai se desmanchar toda, pobrezinha! Está me ouvindo?
Ouvi, mas não tenho fome.
Não tem fome, essa é boa! — Zorba disse, batendo com ruído nas coxas. — você não comeu nada desde manhã. É preciso cuidar também do corpo, tenha pena dele! Dê-lhe de comer, patrão, dê-lhe de comer; é o nosso burrico, você sabe. Se você não o alimenta, um belo dia ele irá largá-lo no meio da estrada.
Há anos eu desprezava as alegrias da carne, e, se fosse possível, teria comido escondido, como se fosse uma ação feia. Mas, para que Zorba não se pusesse a resmungar:
Está bem — disse, — já vou.
Fomos em direção da aldeia. As horas sobre o rochedo haviam passado como horas de amor, rápidas como o relâmpago. Sentia ainda sobre mim o sopro inspirado do florentino.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego

Milagre

 Tudo é tão clandestino, tanta coisa é possível, que a vida é o não-resumo de um milagre.”

Guimarães Rosa, in Subles

Equívoco

 


A falácia do equívoco (também chamada de equivocação) explora a ambiguidade da linguagem, alterando o sentido de uma mesma palavra durante o argumento e usando esses significados diferentes para sustentar uma conclusão infundada. (Quando se emprega o mesmo sentido para uma palavra em todo o argumento, ela está sendo usada de modo unívoco ou inequívoco.) Considere o seguinte argumento: “Como você pode dizer que não tem fé, quando age com fé o tempo todo? Fecha negócios, confia em amigos e até fica noivo?” Aqui, o significado da palavra “fé” parte da crença espiritual num criador e depois muda para uma questão de confiança em outras pessoas.
Essa falácia é muito utilizada em discussões sobre ciência e religião, onde o termo “por que” pode ser adotado em sentidos diferentes. Num contexto, é a busca de causas – motivadora da ciência – e no outro, é a busca de um propósito, de um sentido maior – mais relacionada à moralidade e a questões pessoais em que a ciência pode não ter respostas. Veja este exemplo: “A ciência não pode nos dizer por que as coisas são como são. Por que existimos? Por que temos moral? Portanto, nós precisamos de outra fonte, como a religião, para nos dizer por que as coisas acontecem.”

Ali Almossawi, in O livro ilustrado dos maus argumentos

Uma coberta, uma manta

O hospedeiro é o senhor dos estranhos.
Esta é a história e a não história do mundo, desde o início até hoje, e foi com essa frase que tudo começou e não com “no princípio era o verbo” ou “no princípio Deus criou os céus e a terra”.
No princípio havia um habitante. De uma caverna, palhoça, cabana, estalagem, casa, castelo, mansarda, mansão, vivenda, moradia, domicílio, residência, armazém, estabelecimento, mercado, igreja, mosteiro, convento, templo, fazenda, chácara, sítio, entreposto, prédio, mercearia, edifício, estância, pousada, um abrigo. Veio alguém, um desconhecido, e bateu, pedindo pouso, comida e agasalho. Um habitante olhou desconfiado para o estranho, fez uma cara feia, uma careta, e bateu nele com um pau. A história ficou estagnada.
Outro habitante não teve medo. Abriu a porta, deu-lhe de comer sua melhor comida, mesmo pouca, cedeu-lhe a cama, o que tinha, uma coberta, uma manta e aproximou-o do fogo, aquecendo-o, para que, no dia seguinte, ele pudesse continuar a jornada. Não lhe perguntou a procedência nem o destino. Acolheu-o.
Assim teve início a viagem do tempo pelo espaço e a história das trocas, das línguas e das promessas, porque, depois que aquele estranho tinha se estabelecido em algum canto, foi ele a hospedar um outro estranho que lhe veio pedir guarida.
Hospedar é o gesto mais sagrado da humanidade. Para filósofos como Lévinas e Derrida e para um poeta como Edmond Jabés, a hospitalidade está acima da responsabilidade e da liberdade, porque as contém.
Host e guest, anfitrião e visitante, em inglês, têm a mesma origem, porque são a mesma coisa, apenas em lugares casualmente alternados. Ambos são estranhos um ao outro, embora aquele que hospeda já pertença a uma comunidade, enquanto quem pede abrigo vem de fora. Hospedar é trazer para dentro o que vem de fora, é tornar menos estranho o estrangeiro. Para Derrida, o hospedeiro deve fazer com que o hóspede se sinta como se fosse ele o anfitrião.
Estrangeiro, ou estranho, que são sinônimos, são os que não pertencem. O estrangeiro é vindo de um lugar a que pertencia para outro que ainda desconhece, e essa é a condição mais solitária possível, especialmente se não houve escolha. O o estrangeiro. Para Derrida, o hospedeiro deve fazer com que o hóspede se sinta como se fosse ele o anfitrião. Estrangeiro, ou estranho, que são sinônimos, são os que não pertencem. O estrangeiro é vindo de um lugar a que pertencia para outro que ainda desconhece, e essa é a condição mais solitária possível, especialmente se não houve escolha. O estrangeiro é tido como perigoso e para ele, contra ele, criaram-se fronteiras. Por causa dele, inventaram-se as ideias de dentro e de fora. Por causa dele, associou-se o estrangeiro, o estranho, à ideia de louco, esquisito. O estranho-louco é nada mais do que o que não está dentro. Ele fala palavras que não entendo; faz coisas a que não estou habituado. Ele me ameaça porque vem de fora. Estranho, em latim, é o mesmo que alienado. Também de fora. Alienação é perda de controle sobre alguma coisa ou sobre si mesmo; sinônimo de loucura e apatia. Só o hospedeiro é capaz de trazer o alienado de volta para um abrigo e indicar-lhe a estrada, para que ele reconquiste o controle sobre si.
Na Albânia, como conta Ismail Kadaré no seu Abril despedaçado, é-se obrigado a hospedar até mesmo o assassino do filho do hospedeiro e servi-lo com a melhor panela da casa, o melhor prato, a melhor porção. Quem transgride as regras da boa hospedagem estará sujeito a maldições e vingança. Aquele que não hospeda é o hostil, e o local que não hospeda é inóspito. Hostil é aquele que quer manter as fronteiras, fazer com que o de fora sinta-se permanentemente nessa condição e pense que é seu destino ser de fora e que a ideia de dentro só cabe ao hospedeiro hostil, o que teve a sorte e o acaso de estar dentro.
Diante da hostilidade, acabam-se os presentes e acaba-se também o tempo presente, que é o tempo da hospedagem, quando as coisas se dão. Dar-se ou acontecer, ocorrer, é fazer o presente existir. O agora é a hospedagem do ser no tempo, que nos recebe sem nada nos perguntar. Somos todos hóspedes do tempo, adentrando-o, mas sempre, de alguma forma, dele alienados, nele viajando temporariamente, por vezes mais dentro, outras mais fora. Ao recebermos um hóspede, cedendo-lhe abrigo e pousada, fazemos nós as vezes do tempo, concedendo-lhe efemeramente um cadinho no espaço.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou