De manhã cedo, ao sair do quarto, ela
deu com a filha espichada no sofá da sala. Chegou a se assustar: de
camisola, a menina dormia, parecendo ter passado a noite ali. Assim
deitada é que se via como estava crescida, uma mulher, ocupava o
sofá inteiro.
– O que é que você está fazendo aí,
minha filha?
A moça se espreguiçou, abrindo os
olhos:
– Meu quarto está cheio de abelhas.
– Abelhas?
As duas podiam se considerar felizardas,
pois ainda moravam numa casa – e casa ampla, confortável, de
pé-direito alto, daquelas antigas do Rio Comprido, com quintal e
árvores de frutas. Mas casa costuma ter dessas coisas: cupim na
cumeeira, caixa de gordura entupida e bichos de toda espécie.
Inclusive abelhas.
– O teto e as paredes estão cobertos,
são mais de mil. Eu não tinha como dormir lá.
– Por onde elas entraram?
– Pela janela, por onde havia de ser?
– Você devia ter me chamado.
– Para quê? Que é que você podia
fazer?
– Tirar as abelhas de lá.
– Tirar como? Só tocando fogo no
quarto.
– É uma ideia. Vamos até lá dar uma
olhada.
– Cuidado, mamãe, que elas te picam.
A mãe foi com cuidado, seguida da filha.
Pararam ambas na porta, sem coragem de entrar: dali mesmo as abelhas
podiam ser vistas, em grandes manchas negras espalhadas pelas paredes
e pelo teto. Muitas cruzavam o ar, zumbindo, chegavam a voejar ao
redor das duas, quase se enredando em seus cabelos. E ameaçando
invadir a sala.
– Vamos sair daqui antes que elas nos
ataquem.
Fecharam a porta do quarto, e enquanto a
filha voltava a se espichar no sofá, a mãe foi ao telefone, ligou
para o Corpo de Bombeiros.
– Abelhas? – o bombeiro de plantão
não estranhou, parecendo achar perfeitamente natural. – Quantos
punhados?
– Quantos o quê?
– Quantos punhados de abelha tem no
quarto da sua filha?
– Ah, sim. Uma porção. Uma porção
de punhados.
– Quantos, mais ou menos?
Ela não tinha a menor ideia da
quantidade de abelhas que perfazia um punhado:
– Uns dez, pelo menos. Daí pra mais.
Faz diferença?
– É que sendo assim então é caso
para um abelheiro – concluiu o bombeiro. – Me dá o telefone da
senhora que mando já um abelheiro ligar para aí.
Realmente, em poucos minutos o telefone
tocava:
– A senhora tem certeza de que é
abelha? – quis saber o abelheiro.
– Que é que podia ser? Mosquito é que
não é.
– Mosquito não digo, mas podia ser
vespa, marimbondo... Como é o corpo dela?
– Não reparei direito. Mas acho que é
como o de uma abelha.
– Pega uma, olha se tem bunda grande e
me diz. Vou ficar esperando.
Ela suspirou, resignada, chamou a filha:
– O homem quer saber se tem bunda
grande.
– Quem? – espantou-se a menina.
– A abelha! Vamos ter que pegar uma.
Empunhando uma vassoura, avançou
cautelosa quarto adentro, enquanto a filha, precavida, aguardava à
porta. Depois de desferir vassouradas a esmo nas paredes, alvoroçando
as bichinhas, conseguiu acertar numa, que tombou morta. Com a ponta
dos dedos apanhou-a pela asa, voltou ao telefone:
– Tem bunda grande sim.
– Riscadinha?
– Não. Toda preta.
– Está me parecendo vespa – disse o
abelheiro, pensativo. – Posso ir até aí verificar. Se for abelha
tudo bem, eu dou um jeito, não custa nada. Mas se for vespa a
senhora vai ter de pagar a gasolina, que anda muito cara.
– Se for vespa eu pago a gasolina. E se
não for também pago. A gasolina é a mesma, tanto para uma como
para outra.
– Vou até aí.
Em pouco batiam no portão. A filha, já
vestida, foi lá fora abrir:
– Mamãe, o abelhudo chegou.
Era um homem de meia-idade, acompanhado
de um garotão, provavelmente seu filho. Deixou no carro aquelas
roupas de astronauta das abelhas, só saltou de bonezinho na cabeça.
– Onde estão elas? – foi logo
perguntando.
No quarto, bastou uma olhada e anunciou:
– Como eu desconfiava: vespa.
– Qual é a diferença?
– Vespa é vespa e abelha é abelha. É
essa a diferença. Vespa não produz mel. Abelha, que produz mel, é
a Apis mellifera. A vespa é braconídea, calcidídea,
pompolídea, especídea ou vespídea mesmo. Chega?
– Chega – admitiu ela.
– Pois então vamos ver o que se pode
fazer.
Foi apanhar no carro uma bomba de
inseticida e entrou em ação. Em dois tempos, sob jatos
fumigatórios, as vespas morriam. Aos punhados. Depois de liquidar
com a última, o abelheiro informou:
– Não vou cobrar a gasolina, era mais
perto do que eu pensava.
E sorrisinho matreiro:
– É só a senhora me prometer que se
inscreve num curso de apicultura que eu tenho lá na Tijuca. Pra
nunca mais na sua vida confundir abelha com vespa.
Ela prometeu.
Fernando Sabino, in Fernando Sabino na Sala de Aula
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