Salu disse que eu era a filha mais velha,
a primeira de quatro filhos vivos e de outros tantos que nasceram
mortos. Belonísia veio pouco tempo depois, enquanto minha mãe ainda
me amamentava, contrariando a crença de que quem amamenta não
engravida. Entre nós duas, diferente dos intervalos entre os outros
filhos, não houve natimortos. Dois anos depois que nasceram dois
filhos mortos veio Zezé e, por último, Domingas. Entre eles, mais
duas crianças que não vingaram. Minha avó, Donana, foi quem ajudou
minha mãe nos partos. Era nossa avó, mas também mãe de pegação.
Esse era o título que dizia qual era o seu lugar em nossas vidas:
avó e mãe. Quando deixamos o ventre de Salustiana Nicolau – os
vivos, os que morreram tempos depois e os natimortos – encontramos
primeiro as mãos pequenas de Donana. Foi o primeiro espaço no mundo
fora do corpo de Salu que ocupamos. Suas mãos côncavas que muitas
vezes vi se encherem de terra, de milho debulhado e feijão catado.
Eram mãos pequenas, de unhas aparadas, como deveria ser a mão de
uma parteira, dona Tonha dizia. Pequenas, capazes de entrar no ventre
de uma mulher para virar com destreza uma criança atravessada, mal
encaixada, crianças com os movimentos errados para nascer. Ela faria
os partos das trabalhadoras da fazenda até poucos dias antes de sua
morte.
Quando nascemos, nossos pais já eram
trabalhadores da Fazenda Água Negra. Meu pai havia ido buscar Donana
semanas antes do meu nascimento. Cresci ouvindo minha avó se queixar
da distância da fazenda onde havia passado sua vida, nota evidente
de uma saudade que não admitia sentir. Não exigia seu retorno,
compreendia seu papel ao lado do filho, mas não deixava de externar
seu lamento. Quando meu pai apareceu na fazenda onde havia nascido,
para buscá-la, Donana já se encontrava sozinha na casa velha onde
viveu quase todo o seu tempo. Seus outros filhos haviam partido em
busca de trabalho, cada um na sua vez. A primeira a deixar a casa
depois de meu pai havia sido Carmelita, que partiu sem indicar o rumo
que tomaria, logo após a mãe ficar viúva pela terceira vez. Mas a
própria Donana, em seu íntimo, quis que a filha seguisse seu
destino.
Àquela altura, a terra da Fazenda
Caxangá, que havia rendido fartura de frutos por toda a sua vida,
estava retalhada. Cada homem com desejo de poder havia avançado
sobre um pedaço e os moradores antigos foram sendo expulsos. Outros
trabalhadores que não tinham tanto tempo na terra estavam sendo
dispensados. Os homens investidos de poderes, muitas vezes
acompanhados de outros homens em bandos armados, surgiam da noite
para o dia com um documento de que ninguém sabia a origem. Diziam
que haviam comprado pedaços da Caxangá. Alguns eram confirmados
pelos capatazes, outros não. Meu pai, depois de chegar à Água
Negra, retornou algumas vezes ao lugar onde havia nascido. Essas
histórias nos foram contadas por Salustiana, enquanto crescíamos.
Só preservaram Donana por lá por conta da idade avançada, por já
terem de alguma forma se afeiçoado à sua presença. E também
porque corriam de casa em casa, de boca em boca, os poderes da velha
feiticeira, das viuvezes, provas do seu fardo, e do filho que
enlouqueceu e foi viver no mato com uma onça por semanas.
Eu e Belonísia éramos as mais próximas
e, talvez por isso, as que mais se desentendiam. Tínhamos quase a
mesma idade. Andávamos juntas pelo terreiro da casa, colhendo flores
e barro, catando pedras de diversos formatos para construir nosso
fogão, galhos para fazer nosso jirau e nossos instrumentos de
trabalho para arar nossas roças de brinquedo, para repetir os gestos
que nossos pais e nossos ancestrais nos haviam legado. Disputávamos
espaços, disputávamos sobre o que plantar, sobre o que cozinhar.
Disputávamos os calçados feitos das folhas verdes e largas que
encontrávamos na mata que circundava as nossas casas. Montávamos
bastões de madeira que fazíamos de nossos cavalos, recolhíamos
sobras de lenha para fazer nossos móveis. Quando as disputas se
tornavam brigas e gritos, nossa mãe intervinha, pouco paciente, e
nos levava de volta para casa nos retirando a liberdade de sair até
que nos comportássemos. Prometíamos que não brigaríamos mais, até
que saíamos para o quintal ou para o terreiro e recomeçávamos a
brincadeira, para pouco tempo depois retornar à rixa, às vezes com
direito a arranhões e puxões de cabelo.
Nos primeiros meses após perder a língua
fomos tomadas de um sentimento de união que estava embotado daquele
passado de brigas e disputas infantis. No início se instalou uma
grande tristeza em nossa casa. Os vizinhos e compadres vinham nos
visitar, fazer votos de melhoras. Minha mãe se revezava com as
vizinhas, que olhavam os filhos menores enquanto ela cozinhava papas,
mingau de cachorro para ajudar na cicatrização, purês de inhame,
batata-doce ou aipim. Nosso pai seguia para a roça ao nascer do dia.
Rumava com seus instrumentos depois de passar a mão nas nossas
cabeças com suas preces sussurradas aos encantados. Quando retomamos
as brincadeiras, havíamos esquecido as disputas, agora uma teria que
falar pela outra. Uma seria a voz da outra. Deveria se aprimorar a
sensibilidade que cercaria aquela convivência, a partir de então.
Ter a capacidade de ler com mais atenção os olhos e os gestos da
irmã. Seríamos as iguais. A que emprestaria a voz teria que
percorrer com a visão os sinais do corpo da que emudeceu. A que
emudeceu teria que ter a capacidade de transmitir com gestos largos e
também vibrações mínimas as expressões que gostaria de
comunicar.
Para que essa simbiose ocorresse e
produzisse um efeito duradouro, as disputas ficaram, naturalmente e
por um tempo, de lado. Ocupávamos o tempo com as apreensões do
corpo da outra. No começo foi difícil, muito difícil. Era
necessário que se repetissem palavras, que se levantassem objetos,
que se apontasse para as coisas que nos cercavam, tentando apreender
a expressão desejada. Com o passar dos anos, esse gesto se tornou
uma extensão das nossas expressões, até quase nos tornarmos uma a
outra, sem perder a nossa essência. Às vezes nos aborrecíamos por
algo, mas logo a necessidade de comunicar o que uma irmã precisava,
a mesma necessidade de comunicar à outra irmã o que precisava ser
expressado, fazia com que esquecêssemos a causa de nossas queixas.
Foi assim que me tornei parte de Belonísia, da mesma forma que ela
se tornou parte de mim.
Foi assim que crescemos, aprendemos a
roçar, observamos as rezas de nossos pais, cuidamos dos irmãos mais
novos. Foi assim que vimos os anos passarem e nos sentimos quase
siamesas ao dividir o mesmo órgão para produzir os sons que
manifestavam o que precisávamos ser.
Itamar Vieira Júnior, in Torto Arado
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