segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Torto Arado / 3

          Salu disse que eu era a filha mais velha, a primeira de quatro filhos vivos e de outros tantos que nasceram mortos. Belonísia veio pouco tempo depois, enquanto minha mãe ainda me amamentava, contrariando a crença de que quem amamenta não engravida. Entre nós duas, diferente dos intervalos entre os outros filhos, não houve natimortos. Dois anos depois que nasceram dois filhos mortos veio Zezé e, por último, Domingas. Entre eles, mais duas crianças que não vingaram. Minha avó, Donana, foi quem ajudou minha mãe nos partos. Era nossa avó, mas também mãe de pegação. Esse era o título que dizia qual era o seu lugar em nossas vidas: avó e mãe. Quando deixamos o ventre de Salustiana Nicolau – os vivos, os que morreram tempos depois e os natimortos – encontramos primeiro as mãos pequenas de Donana. Foi o primeiro espaço no mundo fora do corpo de Salu que ocupamos. Suas mãos côncavas que muitas vezes vi se encherem de terra, de milho debulhado e feijão catado. Eram mãos pequenas, de unhas aparadas, como deveria ser a mão de uma parteira, dona Tonha dizia. Pequenas, capazes de entrar no ventre de uma mulher para virar com destreza uma criança atravessada, mal encaixada, crianças com os movimentos errados para nascer. Ela faria os partos das trabalhadoras da fazenda até poucos dias antes de sua morte.
Quando nascemos, nossos pais já eram trabalhadores da Fazenda Água Negra. Meu pai havia ido buscar Donana semanas antes do meu nascimento. Cresci ouvindo minha avó se queixar da distância da fazenda onde havia passado sua vida, nota evidente de uma saudade que não admitia sentir. Não exigia seu retorno, compreendia seu papel ao lado do filho, mas não deixava de externar seu lamento. Quando meu pai apareceu na fazenda onde havia nascido, para buscá-la, Donana já se encontrava sozinha na casa velha onde viveu quase todo o seu tempo. Seus outros filhos haviam partido em busca de trabalho, cada um na sua vez. A primeira a deixar a casa depois de meu pai havia sido Carmelita, que partiu sem indicar o rumo que tomaria, logo após a mãe ficar viúva pela terceira vez. Mas a própria Donana, em seu íntimo, quis que a filha seguisse seu destino.
Àquela altura, a terra da Fazenda Caxangá, que havia rendido fartura de frutos por toda a sua vida, estava retalhada. Cada homem com desejo de poder havia avançado sobre um pedaço e os moradores antigos foram sendo expulsos. Outros trabalhadores que não tinham tanto tempo na terra estavam sendo dispensados. Os homens investidos de poderes, muitas vezes acompanhados de outros homens em bandos armados, surgiam da noite para o dia com um documento de que ninguém sabia a origem. Diziam que haviam comprado pedaços da Caxangá. Alguns eram confirmados pelos capatazes, outros não. Meu pai, depois de chegar à Água Negra, retornou algumas vezes ao lugar onde havia nascido. Essas histórias nos foram contadas por Salustiana, enquanto crescíamos. Só preservaram Donana por lá por conta da idade avançada, por já terem de alguma forma se afeiçoado à sua presença. E também porque corriam de casa em casa, de boca em boca, os poderes da velha feiticeira, das viuvezes, provas do seu fardo, e do filho que enlouqueceu e foi viver no mato com uma onça por semanas.
Eu e Belonísia éramos as mais próximas e, talvez por isso, as que mais se desentendiam. Tínhamos quase a mesma idade. Andávamos juntas pelo terreiro da casa, colhendo flores e barro, catando pedras de diversos formatos para construir nosso fogão, galhos para fazer nosso jirau e nossos instrumentos de trabalho para arar nossas roças de brinquedo, para repetir os gestos que nossos pais e nossos ancestrais nos haviam legado. Disputávamos espaços, disputávamos sobre o que plantar, sobre o que cozinhar. Disputávamos os calçados feitos das folhas verdes e largas que encontrávamos na mata que circundava as nossas casas. Montávamos bastões de madeira que fazíamos de nossos cavalos, recolhíamos sobras de lenha para fazer nossos móveis. Quando as disputas se tornavam brigas e gritos, nossa mãe intervinha, pouco paciente, e nos levava de volta para casa nos retirando a liberdade de sair até que nos comportássemos. Prometíamos que não brigaríamos mais, até que saíamos para o quintal ou para o terreiro e recomeçávamos a brincadeira, para pouco tempo depois retornar à rixa, às vezes com direito a arranhões e puxões de cabelo.
Nos primeiros meses após perder a língua fomos tomadas de um sentimento de união que estava embotado daquele passado de brigas e disputas infantis. No início se instalou uma grande tristeza em nossa casa. Os vizinhos e compadres vinham nos visitar, fazer votos de melhoras. Minha mãe se revezava com as vizinhas, que olhavam os filhos menores enquanto ela cozinhava papas, mingau de cachorro para ajudar na cicatrização, purês de inhame, batata-doce ou aipim. Nosso pai seguia para a roça ao nascer do dia. Rumava com seus instrumentos depois de passar a mão nas nossas cabeças com suas preces sussurradas aos encantados. Quando retomamos as brincadeiras, havíamos esquecido as disputas, agora uma teria que falar pela outra. Uma seria a voz da outra. Deveria se aprimorar a sensibilidade que cercaria aquela convivência, a partir de então. Ter a capacidade de ler com mais atenção os olhos e os gestos da irmã. Seríamos as iguais. A que emprestaria a voz teria que percorrer com a visão os sinais do corpo da que emudeceu. A que emudeceu teria que ter a capacidade de transmitir com gestos largos e também vibrações mínimas as expressões que gostaria de comunicar.
Para que essa simbiose ocorresse e produzisse um efeito duradouro, as disputas ficaram, naturalmente e por um tempo, de lado. Ocupávamos o tempo com as apreensões do corpo da outra. No começo foi difícil, muito difícil. Era necessário que se repetissem palavras, que se levantassem objetos, que se apontasse para as coisas que nos cercavam, tentando apreender a expressão desejada. Com o passar dos anos, esse gesto se tornou uma extensão das nossas expressões, até quase nos tornarmos uma a outra, sem perder a nossa essência. Às vezes nos aborrecíamos por algo, mas logo a necessidade de comunicar o que uma irmã precisava, a mesma necessidade de comunicar à outra irmã o que precisava ser expressado, fazia com que esquecêssemos a causa de nossas queixas. Foi assim que me tornei parte de Belonísia, da mesma forma que ela se tornou parte de mim.
Foi assim que crescemos, aprendemos a roçar, observamos as rezas de nossos pais, cuidamos dos irmãos mais novos. Foi assim que vimos os anos passarem e nos sentimos quase siamesas ao dividir o mesmo órgão para produzir os sons que manifestavam o que precisávamos ser.

Itamar Vieira Júnior, in Torto Arado

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