terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Num canto da memória

         É preciso muito bem esquecer para experimentar a alegria de novamente lembrar-se. Tantos pedaços de nós dormem num canto da memória, que a memória chega a esquecer-se deles. E a palavra — basta uma só palavra — é flecha para sangrar o abstrato morto. Há, contudo, dores que a palavra não esgota ao dizê-las.
Queria, sempre, desaparecer com um circo, mas circo não havia. Veio um dia. Armaram na praça central da cidade, com aroma de pipoca e cor de amora. Minha mãe me levou. De mãos dadas penetramos sob a lona quente, numa tarde quente. Naquela noite me deitei, dobrei os joelhos e armei meu circo com o lençol alvejado da cama. Debaixo da lona me dividi em três: me sonhei equilibrando no arame, me imaginei girando no globo da morte e me incendiando ao cuspir fogo. Meu irmão não se interessava pelo circo, mas achava o vidro macio.
Um raso rio cortava ao meio minha cidade. As águas opacas corriam sorrindo pelas cócegas dos pequenos peixes, marinheiros à mercê da correnteza. A cidade partida me fazia, sempre, um morador do outro lado. Não havia opção: em qualquer lugar eu estaria em outra margem. Sem escolha, eu vivia o avesso por habitar a outra orla. Havia uma pequena ponte de madeira amarrando os dois pedaços, não como a exata costura dos alfaiates. Eu caminhava de cá para lá, sem me esbarrar em outra pátria.
Que a vida não tinha cura, o tempo me ensinou, e mais tarde. Na infância o calendário fora inventado para marcar o Natal, a Semana Santa, as férias da escola, os aniversários. Os dias deslizavam preguiçosos, repetindo manhãs e tardes, entremeadas por serenas estações. Impossível para uma criança viver a lucidez da ferida que se abre ao nascer, e não há bálsamo capaz de cicatrizá-la vida afora. Nascer é abrir-se em feridas.
Uma música desafinava a cidade. Impossível interditar o ruído que arranhava os ouvidos. A vizinha da rua direita não nos permitia o silêncio. O silêncio, ela repetia, é casa para os fantasmas. Depois de abandonada pelo marido — que viajou sem bilhete de retorno — abraçou com as pernas o violoncelo. Insistia em dominar os acordes como tentara dominar o esposo. Com o arco em punho — espada de aço frio — ela executava pequenas e repetidas melodias que encrespavam até os ventos.
Seu olhar me promovia a seu prisioneiro. Sempre, se ela me encarava ao mastigar o tomate, eu passava a existir dentro de seus olhos. Seu olhar assaltava-me. Ser o menino de seus olhos aturdia-me. Insistia em fugir, mas seu olhar me sequestrava. Negava ser ela o meu espelho. Meu espelho habitava, secreto, dentro de mim. E débil, naquele globo castanho e opaco, o medo mais se anunciava, com superlativo pavor. Morar em seus olhos era o mesmo que ser roubado de minha mãe. Eu traía, e assim padecia, ao me permitir tamanho deslocamento. Quem ficara guardado — para sempre — na menina dos olhos da morta?

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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