É preciso muito bem esquecer para
experimentar a alegria de novamente lembrar-se. Tantos pedaços de
nós dormem num canto da memória, que a memória chega a esquecer-se
deles. E a palavra — basta uma só palavra — é flecha para
sangrar o abstrato morto. Há, contudo, dores que a palavra não
esgota ao dizê-las.
Queria, sempre, desaparecer com um circo,
mas circo não havia. Veio um dia. Armaram na praça central da
cidade, com aroma de pipoca e cor de amora. Minha mãe me levou. De
mãos dadas penetramos sob a lona quente, numa tarde quente. Naquela
noite me deitei, dobrei os joelhos e armei meu circo com o lençol
alvejado da cama. Debaixo da lona me dividi em três: me sonhei
equilibrando no arame, me imaginei girando no globo da morte e me
incendiando ao cuspir fogo. Meu irmão não se interessava pelo
circo, mas achava o vidro macio.
Um raso rio cortava ao meio minha cidade.
As águas opacas corriam sorrindo pelas cócegas dos pequenos peixes,
marinheiros à mercê da correnteza. A cidade partida me fazia,
sempre, um morador do outro lado. Não havia opção: em qualquer
lugar eu estaria em outra margem. Sem escolha, eu vivia o avesso por
habitar a outra orla. Havia uma pequena ponte de madeira amarrando os
dois pedaços, não como a exata costura dos alfaiates. Eu caminhava
de cá para lá, sem me esbarrar em outra pátria.
Que a vida não tinha cura, o tempo me
ensinou, e mais tarde. Na infância o calendário fora inventado para
marcar o Natal, a Semana Santa, as férias da escola, os
aniversários. Os dias deslizavam preguiçosos, repetindo manhãs e
tardes, entremeadas por serenas estações. Impossível para uma
criança viver a lucidez da ferida que se abre ao nascer, e não há
bálsamo capaz de cicatrizá-la vida afora. Nascer é abrir-se em
feridas.
Uma música desafinava a cidade.
Impossível interditar o ruído que arranhava os ouvidos. A vizinha
da rua direita não nos permitia o silêncio. O silêncio, ela
repetia, é casa para os fantasmas. Depois de abandonada pelo marido
— que viajou sem bilhete de retorno — abraçou com as pernas o
violoncelo. Insistia em dominar os acordes como tentara dominar o
esposo. Com o arco em punho — espada de aço frio — ela executava
pequenas e repetidas melodias que encrespavam até os ventos.
Seu olhar me promovia a seu prisioneiro.
Sempre, se ela me encarava ao mastigar o tomate, eu passava a existir
dentro de seus olhos. Seu olhar assaltava-me. Ser o menino de seus
olhos aturdia-me. Insistia em fugir, mas seu olhar me sequestrava.
Negava ser ela o meu espelho. Meu espelho habitava, secreto, dentro
de mim. E débil, naquele globo castanho e opaco, o medo mais se
anunciava, com superlativo pavor. Morar em seus olhos era o mesmo que
ser roubado de minha mãe. Eu traía, e assim padecia, ao me permitir
tamanho deslocamento. Quem ficara guardado — para sempre — na
menina dos olhos da morta?
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
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