A esposa do meu pai prezava o tomate sem
degustar o seu sabor. Impossível conter em fatia frágil — além
da cor, semente, pele — também o aroma. Quando invertida, a
palavra aroma é amora. Aroma é uma amora se espiando no espelho.
Vejo a palavra enquanto ela se nega a me ver. A mesma palavra que me
desvela, me esconde. Toda palavra é espelho onde o refletido me
interroga. O tomate — rubro espelho — espelhava uma sentença
suspeita.
O pai, que suportava o peso das caixas de
manteiga, agora andava leve, manso, tropeçando em penumbras e
suspiros. O amor encarnou em todo o seu destemido corpo e afrouxou
até seus pesares. Amava em dobro: o amor que sobra aos viúvos e
mais o amor reinventado, e capaz de camuflar o luto. E, para ganhar
mais amor, negociava com o tomate o destino dos filhos,
clandestinamente.
A parede da casa sustentava um espelho
cercado por moldura vermelha. Na ponta dos pés — equilibrista —
eu buscava meu rosto e deparava com outro e me estranhava. O espelho
é a verdade que, ainda hoje, mais me entorpece. Espelho sustenta o
concreto e prefiro a mentira dos sonhos nas manhãs frias e secas. Do
tomate exalava um gosto de cera, flor, reza e terra. Sempre engoli
minha fatia por inteiro. Descia garganta abaixo arranhando as cordas,
desafinando as palavras, esfolando o percurso. Libertava-me dela na
primeira colherada. “Garfo é arma, e menino não anda armado”,
sentenciava o pai. Talvez nos projetasse assassinos. Quanto mais amor
mais a morte se anuncia.
Aturdido. Eis uma palavra muda traçando
fronteira com a loucura. Só hoje descubro esta sonoridade surda
morando em mim, ainda menino. Aturdido pelo medo de, no futuro, não
ganhar corpo, e não suportar o peso das caixas de manteiga. Aturdido
por ter as carnes atrofiadas sobre os ossos. Aturdido por ter a alma
como carga, e suportá-la para viver o eterno que existia depois de
mim. Aturdido por ser mortal abrigando o imortal. Aturdido pelo
receio de descumprir as promessas deixadas aos pés dos santos.
Aturdido pela desconfiança de a vida ser uma definitiva mentira.
Aturdido por vislumbrar o vago mundo como fantasia de Deus, em
momento de ócio.
Antes, minha mãe, com muito afago,
fatiava o tomate em cruz, adivinhando os gomos que os olhos não
desvendavam, mas a imaginação alcançava. Isso, depois de banhá-los
em água pura e enxugá-los em pano de prato alvejado, puxando seu
brilho para o lado do sol. Cortados em cruzes eles se transfiguravam
em pequenas embarcações ancoradas na baía da travessa. E
barqueiros eram as sementes, vestidas em resina de limo e brilho.
Pousado sobre a língua, o pequeno barco suscitava um gosto de
palavra por dizer-se. Há, sim, outras palavras mais doces que o
açúcar.
A cidade sustentava-se por seus ares de
domingo. Aparentemente lerda, se alicerçava sobre secretos
sussurros. As casas dormiam no colo de um mentiroso silêncio. Havia,
contudo, as frestas das janelas por onde se perscrutava o vizinho.
Atrás das portas se escutavam assombros que se supunham segredos. E
todas as vidas se viam apregoadas em tom de confidências. As
intimidades eram sopradas de ouvido em ouvido e alteradas de boca em
boca. Mentiras sobre mentiras. O orvalho, ao cair manso, não
refrescava as invejas. Uma cidade afetuosamente cruel.
Havia na cidade a madrasta, a faca, o
tomate e o fantasma. A mãe morta ressuscitava das louças, das
flores, dos armários, das cadeiras, das panelas, das manchas dos
retratos retirados das paredes, das gargantas das galinhas. E
ressurgia encarnada em nós, sua prolongada herança. Impossível
para a madrasta assassinar o fantasma, que inaugurava seu ciúme, sem
passar por nós, engolidores do seu ódio. Ao cortar o tomate —
aturdido eu supunha — ela o fazia exercitando um faz de conta.
Todos recomendavam paciência e mais
paciência. Um dia — ninguém confirmava — ela se tornaria menos
impossível. Instalou-se bem muito longe de onde vivíamos. Para
tocá-la, só depois de muito depurados ou decantados. Por ser assim,
seria breve como arco-íris, feito de chuva e sol, frágil como as
horas. Felicidade era quase uma mentira e, para alcançá-la, só
depois de pisar muitas pedras.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
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