Entro na venda para comprar uns anzóis,
e o velho está me atendendo quando chega um menino da roça com um
burro e dois balaios de lenha. Fica ali, parado, esperando. O velho
parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e
pergunta: “Quanto?” O menino hesita, coçando o calcanhar de um
pé com o dedo de outro: “Quarenta.” O homem da venda não
responde, vira a cara. Aperta mais os olhos miúdos para separar os
anzóis pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo coleiro-do-brejo
que está cantando. O velho: — Esse coleiro é especial. Eu tinha
aqui um gaturamo que era uma beleza, mas morreu ontem; é um bicho
que morre à toa.
Um pescador de bigodes brancos chega-se
ao balcão, murmura alguma coisa; o velho lhe serve cachaça, recebe,
dá o troco, volta-se para mim: “O senhor quer chumbo também?”
Compro uma chumbada, alguns metros de linha. Subitamente ele se
dirige ao menino da lenha: — Quer vinte e cinco pode botar lá
dentro.
O menino abaixa a cabeça, calado.
Pergunto: — Quanto é o coleiro?
— Ah, esse não tenho para venda,
não...
Sei que o velho está mentindo; ele seria
incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda; miserável como
é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de cantorias. Eu me
desinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar minhas
compras. O menino murmura: “O senhor dá trinta...” O velho
cala-se, minha nota na mão: — Quanto é que o senhor dá pelo
coleiro?
Fico calado algum tempo. Ele insiste: “O
senhor diga...” Viro a minha cachaça, fico apreciando o coleiro.
— Não quer vinte e cinco vá embora,
menino.
Sem responder, o menino cede. Carrega as
achas de lenha lá para os fundos, recebe o dinheiro, monta no burro,
vai-se. Foi no mato cortar pau, rachou cem achas, carregou o burro,
trotou léguas até chegar aqui, levou 25 cruzeiros. Tenho vontade de
vingá-lo: — Passarinho dá muito trabalho...
O velho atende outro freguês,
lentamente.
— O senhor querendo dar 500 cruzeiros,
é seu. Por trás dele o pescador de bigodes brancos me faz sinal
para não comprar. Finjo espanto: “QUINHENTOS cruzeiros?”
— Ainda a semana passada eu rejeitei
600 por ele. Esse coleiro é muito especial.
Completamente escravo do homem, o
coleirinho põe-se a cantar, mostrando suas especialidades. Faço uma
pergunta sorna: “Foi o senhor quem pegou ele?” O homem responde:
“Não tenho tempo para pegar passarinhos.”
Sei disso. Foi um menino descalço, como
aquele da lenha.
Quanto terá recebido esse menino
desconhecido por aquele coleiro especial?
— No Rio eu compro um papa-capim mais
barato...
— Mas isso não é papa-capim. Se o
senhor conhece passarinho, o senhor está vendo que coleiro é esse.
— Mas QUINHENTOS cruzeiros?
— Quanto é que o senhor oferece?
Acendo um cigarro. Peço mais uma
cachacinha. Deixo que ele atenda um freguês que compra bananas. Fico
mexendo com o pedaço de chumbo. Afinal digo com a voz fria, seca:
“Dou 200 pelo coleiro, 50 pela gaiola.”
O velho faz um ar de absoluto desprezo.
Peço meu troco, ele me dá. Quando vê que vou saindo mesmo, tem um
gesto de desprendimento: “Por 300 o senhor leva tudo.”
Ponho minhas coisas no bolso. Pergunto
onde é que fica a casa de Simeão pescador, um zarolho. Converso um
pouco com o pescador de bigodes brancos, me despeço.
— O senhor não leva o coleiro?
Seria inútil explicar-lhe que um
coleiro-do-brejo não tem preço. Que o coleiro-do-brejo é, ou devia
ser, um pequeno animal sagrado e livre, como aquele menino da lenha,
como aquele burrinho magro e triste do menino. Que daqui a uns anos,
quando ele, o velho, estiver rachando lenha no Inferno, o burrinho, o
menino e o coleiro vão entrar no Céu — trotando, assobiando e
cantando de pura alegria.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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