Enquanto no Rio os motoristas de praça
ainda cuidam de adaptar os taxímetros à nova tabela periódica de
preços, os seus colegas de São Paulo já vão de primeira na
corrida cultural, uma corrida diferente de qualquer outra. Junto à
direção, os carros ostentam pequena e variada coleção de livros.
Novidade de uma empresa de transportes coletivos.
— O senhor gosta de ler tanto assim nas
horas de folga? — pergunta o passageiro, que nunca vira livro algum
em táxi, salvo aquele que alguém esquecera, de propósito, para
livrar-se de um poeta-processo.
— Gostar eu gosto, doutor, mas é que
nunca tenho folga.
— Então por que carrega esses livros
todos no carro?
— Para vender. O doutor já leu Bar
Don Juan, do Antonio Callado? É o quente.
— Li logo que saiu, há tempos. Por
sinal que…
— Agora está em segunda edição, e
quem lê gosta, confere e comenta. E Milho pra galinha,
Mariquinha, daquela moça Marisa Raja Gabaglia, sabe que o
livrinho é uma graça? Pois é. Agora, se o doutor quer saber, Aonde
vamos?
— Eu sei, vamos para o Alto de
Pinheiros, como eu lhe disse.
— Não é isso. Aonde vamos?,
que eu disse, é uma novidade, olhe aqui. Do cientista Hannes Alfvén
e sua mulher, uns suecos que estudam a sério os problemas, e saem
com umas perguntas e umas respostas que obrigam a gente a parar pra
pensar. Espie só os assuntos: a idade do computador, a explosão
demográfica, os incompetentes no poder, o direito do homem se
multiplicar, e tal e coisa. Agora, se o doutor quer saber o que se
passa no Peru, tem aqui esse volume do Arnaldo Pedroso d’Horta, que
é tão bom no desenho como nos estudos políticos, conhece?
— Conheço e admiro. Mas me diga uma
coisa: os passageiros costumam comprar?
— Primeiro se espantam, como o doutor,
depois compram. Até me encomendam livros. São fregueses conhecidos,
que não têm tempo (eles dizem que não têm) de passar nas
livrarias. Uns compram pela primeira vez na vida, não é mentira
não. O livro fica tão perto do nariz deles, no carrinho, que
resolvem experimentar.
— Moça compra?
— Não posso me queixar das moças.
Garotões, nem por isso.
— E que é que elas preferem?
— Dá muito psicologia, ciências
sociais, comunicação, essas coisas. Os velhos é que…
— Que é que têm os velhos?
— Estão cada vez mais impossíveis.
Acham que eu devia botar aqui aqueles livrecos marotos, sabe como é?
Aquelas revistas de sobrecapa de plástico, que eles não têm
coragem de pedir ao jornaleiro. Há um que não cansa de perguntar,
quando entra no carro: “Como é, já me arranjou aquela edição do
Elixir do pajé, de Bernardo Guimarães?”. Deve ser alguma
receita de remédio para a faixa dos setenta, sei lá, nunca li.
— Ou senão, trata-se de um bibliófilo.
— Bíblio o quê? Pode ser. Mas caso
sério foi com o assaltante.
— Carregou com os livros?
— Pior. Queria rasgar tudo, só porque
eu não tinha o Manual do perfeito assaltante, que ele
garantia que saiu este ano nos Estados Unidos e já foi traduzido.
— E daí?
— Daí, que ele exigia o livro com a
pistola na minha nuca, e eu explicava a ele que não sabia da
existência do manual americano nem da tradução. Não saiu nada no
jornal, como é que eu podia vender uma coisa dessas, além do mais
um livro pouco… pouco tranquilizante, né?
— E ele?
— Pela cara que eu via no retrovisor, e
pelo frio da arma, não gostou da explicação. Me disse que era o
tradutor da obra, e que ela só podia mesmo ser vendida em táxi, ora
o doutor já viu? Sai um cristão promovendo a cultura do país, e
metem-lhe um cano no pescoço, pra ele fazer a divulgação de uma
barbaridade dessas.
— E como foi que o senhor saiu da
situação?
— Quem saiu foi ele. Me virei pra trás
e disse assim: “Olha aqui, meu distinto, se quer atirar, atira logo
de uma vez, que eu não estou aqui pra aturar tradutores de livros
desse tipo. Ou bem que você é tradutor ou bem que é assaltante.
Anda lá, não empata!”. Ele não esperava essa, nisso o carro
bateu num poste, batidinha leve, mas ele sentiu que a barra estava
ficando pesada e deu no pé. No que eu nasci de novo e nunca mais vi
o tipo. O doutor acredita mesmo que saiu esse livro, ou é lelequice
dele?
Como chegassem ao fim da corrida, o
motorista arrematou:
— Se permite, este livrinho aqui o
doutor vai levar. Só oito cruzeiros, uns versinhos sem pretensão
mas com muita alma, que andei rabiscando nas horas de folga. Como é
o nome do doutor? Para o autógrafo.
Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica
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