domingo, 14 de fevereiro de 2021

Alexander von Humboldt

 

Humboldt e sua equipe escalando um vulcão


Eles estavam se arrastando a duras penas com as mãos e os joelhos no chão ao longo de um estreito espinhaço que, em alguns pontos, tinha apenas cinco centímetros de largura. A trilha, se é que assim poderíamos chamá-la, era revestida por uma camada de areia e pedras soltas que se deslocavam toda vez que eram tocadas. À esquerda, um íngreme despenhadeiro coberto por uma crosta de gelo que reluzia quando o sol transpassava as espessas nuvens. A paisagem à direita, com uma queda livre de mais de trezentos metros, não era muito melhor. Paredões negros e quase perpendiculares estavam revestidos de rochas protuberantes que se projetavam, salientes, feito lâminas de faca.
Alexander von Humboldt e seus três companheiros rastejavam em fila indiana, avançando bem devagar. Sem equipamentos nem trajes adequados, era uma escalada perigosa. O vento gélido havia entorpecido suas mãos e pés, a neve derretida tinha encharcado as finas solas dos sapatos, e os seus cabelos e barbas estavam salpicados de cristais de gelo grudados. A quase 5.200 metros acima do nível do mar, eles lutavam para respirar o ar rarefeito. Enquanto seguiam em frente, as pedras denteadas rasgavam as solas dos sapatos, e os pés dos homens começaram a sangrar.
Era 23 de junho de 1802, e eles estavam escalando o Chimborazo, um belo vulcão inativo em forma de cúpula nos Andes que se erguia a 6.400 metros, cerca de 160 quilômetros ao sul de Quito, no atual Equador. Na época, acreditava-se que o Chimborazo fosse a mais alta montanha do mundo. Não surpreende que seus carregadores tivessem abandonado os homens na linha da neve. O cume do vulcão estava amortalhado por uma densa bruma, mas mesmo assim Humboldt tinha prosseguido.
Alexander von Humboldt havia passado os três anos anteriores viajando pela América Latina, penetrando as entranhas de terras onde poucos europeus tinham colocado os pés. Obcecado por observação científica e então com 32 anos, Humboldt havia trazido consigo da Europa uma vasta gama dos melhores instrumentos. Para a escalada do Chimborazo, ele deixou para trás a maior parte de sua bagagem, mas estava equipado com um barômetro, um termômetro, um sextante, um horizonte artificial e um artefato chamado “cianômetro”, com o qual podia medir a “azulidão” do céu. Enquanto subiam, Humboldt fuçava e tateava com dedos dormentes os seus instrumentos, montando-os precariamente sobre estreitas arestas a fim de medir a altitude, a gravidade e a umidade. Meticulosamente, ia listando todas as espécies que encontrava – aqui uma borboleta, ali uma minúscula flor. Tudo era registrado em sua caderneta.
A 5.486 metros de altitude, eles viram um último pedaço de líquen agarrado a um matacão. Depois disso, todos os sinais de vida orgânica desapareceram. Naquela altura não havia plantas nem insetos. Até mesmo os condores que acompanharam suas escaladas anteriores estavam ausentes. Enquanto a névoa caiava o ar em meio a um arrepiante e fantasmagórico espaço vazio, Humboldt se sentiu completamente distante do mundo habitado. “Foi”, disse ele, “como se estivéssemos presos dentro de um balão de ar”. Então, subitamente, a bruma se dissipou, revelando o pico nevado do Chimborazo em contraste com o céu azul. Uma “vista magnífica”, foi o primeiro pensamento de Humboldt, que depois avistou a enorme fenda à frente deles – vinte metros de largura e cerca de 182 metros de profundidade. Entretanto, não havia outro caminho a seguir até o topo. Quando Humboldt mediu a altitude em que estavam, a 5.917 metros, constatou que faltavam menos de trezentos metros para o cume.
Ninguém havia chegado tão alto antes, e ninguém jamais havia respirado um ar tão rarefeito. No topo do mundo, olhando para as cordilheiras que se dobravam abaixo dele, Humboldt começou a enxergar o mundo de uma maneira diferente. Viu a terra como um único e imenso organismo vivo no qual tudo estava conectado, e concebeu uma nova e ousada visão que ainda hoje influencia a forma como compreendemos o mundo natural.
Descrito por seus contemporâneos como o homem mais famoso do mundo depois de Napoleão, Humboldt foi uma das figuras mais fascinantes e inspiradoras de seu tempo. Nascido em 1769 no seio de uma abastada família da aristocracia prussiana, ele abriu mão de uma vida de privilégios para descobrir por si só os mecanismos de funcionamento do mundo. Ainda jovem, participou de uma expedição científica de cinco anos pela América Latina, arriscando a vida muitas vezes e voltando para casa com uma nova noção sobre o mundo. Essa jornada moldou sua vida e seu pensamento e fez dele uma lenda em âmbito mundial. Humboldt viveu em cidades como Paris e Berlim, mas se sentia igualmente em casa nos mais remotos afluentes do rio Orinoco ou nas estepes cazaques na fronteira entre Mongólia e Rússia. Durante boa parte de sua longa vida, Humboldt foi o cerne do mundo científico, escrevendo cerca de 50 mil cartas e recebendo pelo menos o dobro disso. O conhecimento, acreditava Humboldt, deveria ser compartilhado, trocado e colocado à disposição de todos.
Humboldt era também um homem de contradições. Ferrenho crítico do colonialismo, apoiou as revoluções latino-americanas, mas ocupou altos cargos na corte de dois reis prussianos. Admirava os Estados Unidos por seus conceitos de liberdade e igualdade, mas jamais deixou de criticar o insucesso do país no que tangia à abolição da escravidão. Dizia-se “meio americano”, mas certa vez comparou os Estados Unidos a “um vórtice cartesiano, destruindo e reduzindo tudo a uma enfadonha monotonia”. Era confiante, embora constantemente tivesse o desejo ardente de aprovação. Era admirado pela amplitude de seu conhecimento, mas também temido por sua língua afiada. Seus livros foram publicados em dezenas de idiomas e eram tão populares que as pessoas pagavam propina aos livreiros para receber primeiro os exemplares recém-lançados, e mesmo assim Humboldt morreu pobre. Ele podia ser vaidoso, mas também doaria até seu último centavo para um jovem cientista em dificuldades financeiras. Sua vida foi permeada por viagens e repleta de trabalho incessante. Ele sempre queria sentir na pele a experiência de algo novo e, idealmente, de acordo com o que ele próprio dizia, “três coisas ao mesmo tempo”.
Humboldt foi celebrado por seu conhecimento e seu pensamento científico, porém não era nenhum acadêmico erudito, um intelectual de gabinete. Nunca satisfeito em ficar confinado em sua sala de trabalho ou em meio aos livros, ele se arrojou na investigação de campo, no empenho físico, submetendo seu corpo aos limites. Aventurou-se nas profundezas da misteriosa floresta tropical úmida na Venezuela e rastejou ao longo de estreitas bordas de pedras a alturas vertiginosas nos Andes para ver as chamas no interior de um vulcão ativo. Mesmo já sexagenário, viajou mais de 16 mil quilômetros para os mais remotos rincões da Rússia, deixando para trás seus companheiros mais jovens.
Fascinado por instrumentos científicos, medições e observações, era igualmente movido por um senso de deslumbramento e encantamento. Claro que a natureza tinha de ser medida e analisada, mas ele acreditava também que grande parte de nossa resposta ao mundo natural deveria se basear nos sentidos e nas emoções. Ele queria instigar o “amor à natureza”. Numa época em que outros cientistas estavam em busca de leis universais, Humboldt escrevia que a natureza tinha de ser conhecida em primeira mão e vivenciada por meio dos sentimentos.
Humboldt era um homem sem igual porque tinha a capacidade de se lembrar, mesmo depois de anos, dos mais ínfimos detalhes: o formato de uma folha, a cor do solo, uma medição de temperatura, uma camada de rocha. Essa memória extraordinária permitia a Humboldt comparar as observações que tinha feito ao redor do mundo em um intervalo de diversas décadas ou a milhares de quilômetros de distância. Humboldt era capaz de “esquadrinhar a cadeia de todos os fenômenos do mundo ao mesmo tempo”, disse mais tarde um colega. Enquanto outros precisavam vasculhar suas lembranças, Humboldt – “cujos olhos são telescópios e microscópios naturais”, na definição do admirado escritor e poeta norte-americano Ralph Waldo Emerson – tinha à mão, em um instante, todo e qualquer pedaço de conhecimento e observação.
De pé no Chimborazo, exausto pelo esforço da escalada, Humboldt fitou e absorveu a paisagem. Aqui, as zonas de vegetação amontoavam-se, uma por cima da outra. Nos vales, ele tinha passado entre palmeiras e úmidas florestas de bambus onde havia orquídeas coloridas agarradas às árvores. Mais acima, vira coníferas, carvalhos, amieiros e bérberis arbustiformes semelhantes aos que conhecia das florestas europeias. Depois, plantas alpinas muito similares às que ele havia colhido nas montanhas da Suíça e líquens que o fizeram lembrar-se dos espécimes do Círculo Ártico e da Lapônia. Ninguém havia olhado para plantas dessa maneira antes. Humboldt as via não segundo as estreitas categorias de classificação, mas como tipos de acordo com a localização e o clima. Ali estava um homem que enxergava a natureza como uma força global com correspondentes zonas climáticas cruzando os continentes: um conceito radical à época, e que ainda tinge com um toque especial a nossa compreensão dos ecossistemas.
Os livros, diários e cartas de Humboldt revelam um visionário, um pensador muito à frente do seu tempo. Ele inventou as isotermas – as linhas de temperatura e pressão que vemos nos atuais mapas meteorológicos – e também descobriu o Equador magnético. Propôs a ideia de zonas de vegetação e de clima que serpeiam por todo o globo. O mais importante, contudo, é que Humboldt revolucionou a nossa forma de ver o mundo natural. Ele descobriu conexões e relações por toda parte. Nada, nem mesmo o mais diminuto organismo, era visto de forma independente ou separada. “Nessa grande cadeia de causas e efeitos, nenhum fato pode ser considerado de forma isolada”, escreveu Humboldt. Com essa arguta constatação, ele inventou a rede da vida, o conceito da natureza como a conhecemos hoje.

Andrea Wulf, in A invenção da natureza: A vida e as descobertas de Alexander Von Humboldt

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