Se ela fosse louca por mim, eu pedia
licença ao Vinicius que já andou com problema parecido, comprava
toda a produção de pipoca da cidade e fazia chover, sal e mel,
sobre sua adorável cabeça de caracóis. Louca fosse ela, e
garantisse por mim tal apoplexia sentimental, eu lhe pegava o touro à
unha, tocava o terror, botava o galho dentro, purificava o Subaé,
fazia do gato sapato e corria para o abraço.
Não sei se ela ainda o é, digo, louca.
Sempre que pergunto, tartamudeia. Noção nenhuma, graças aos orixás
judaicos que regulam sua existência feliz, do que seja um verbo
horrível daqueles. E, no entanto, eu orquestraria os cânticos de
todas as religiões, eu harmonizaria os rocks de todas as tribos em
sua fabulosa lira abdominal.
Da primeira à última vez que a vi,
andava carregada de cores everywhere. Nasceu não faz muito. Não tem
idade para saber que se trata, pele e músculo, de um verso ao vivo
da fase psicodélica dos Rolling Stones. Era-lhe uma definição
perfeita, o arco-íris de Jagger e Richards, mas nunca o disse.
Jamais charlei em sua presença qualquer item cultural, e olhe que se
eu tivesse recitado o “amor/humor” do Oswald, certamente ela
teria customizado a piada numa camiseta de dormir da Acorda Alice.
Discreto, sequer demonstrei a pequena
lista de orgulhos sobrenaturais que herdei dos antepassados lusos,
como o dom de adivinhar o número de gomos de uma tangerina fechada,
a localização da Ursa Polar no céu de inverno ou a capacidade de,
pelo olfato, identificar cada uma das ladeiras da Fonte da Saudade.
Diante de sua sublime presença
matissada, ora louca ora subitamente mouca, calei-me sempre em pasmo
respeito. Deixei trancadas as palavras profissionais no computador e
em seu louvor preferi certa noite abrir os bolsos da jaqueta e deixar
voar duas borboletas, meia dúzia de esperanças, dois vaga-lumes e
um melro, num truque de circo que devo ter visto em algum filme do
Fellini e há tempos ensaiava para quem merecesse. Fi-lo, quero
repeti-lo.
Nunca verbalizei nenhum camões, mas
sempre e apenas o estupor sincero diante de tamanha beleza estar ali
daquele jeito que eu comecei a descrever com o verso dos Stones,
carregada de cores por todos os lados e boquiabrida com o realismo
mágico de pássaros e insetos voando ao léu. Por onde ela andava,
mesmo no Cosme Velho onde nunca as vira, nasciam joaninhas. Errou de
escritor, coitada. Garcia Márquez lhe faria crônica muito melhor.
Eu, de minha parte, me daria mais ao
respeito, respeitaria o sábado, não me queixaria ao bispo, comeria
mais cereais, melhoraria o backhand, controlaria o colesterol,
começaria tudo outra vez se ela por mim louca se pusesse fora de
casa agora - e, de uma vez por todas, me viesse. Viesse nas cores de
sempre.
E eu gosto de lembrar daqueles dias em
que ela radicalizava o processo cromático de ser naturalmente uma
paleta de cores vivas. Nessas horas, deixando de fora só os olhos
azuis, ela afundava, dentro de um gorro vermelho-e-verde do Max
Cavallera, os caracóis, os caracolitos louros que eu nomeei, um por
um, xarás das mais belas bromélias do Jardim Botânico. Vinte anos
atrás ela teria sido atriz, trabalhado em “Hair”. Hoje não
tenho a mínima de por onde desanda seu bamboleio.
Procura-se, mas não desesperadamente.
Até as borboletas que tatuou na pele do úmero ririam de tamanho
bolero.
Já me esteve louca, não pode negar, e
foi em sua honra, rainha entronizada numa cadeira amarela do
Maracanã, que Alex fez em certo domingo, na baliza logo em frente,
aquele gol de calcanhar contra o Flamengo; foi em seu fervor cívico
que Getúlio repetiu o tirambaço nos peitos num domingo de julho no
Museu da República; foi em troca de seu pânico, de sua luxúria e
excitação que os casais meteram bronca entre si numa madrugada de
agosto no clube suingueiro de Copa. Em setembro, quando ia ganhar um
corte de chinchila, saúda fila e ficar para sempre sob a guarda
deste cão fila, eis que essa camponesa tcheca, musa difusa do
usa-e-abusa do Baixo Gávea, sumiu-se de si própria, da minha
casmurrice lusa. Voltou atrás. Parou de rir. Declarou-se ledo, ivo,
lindo desengano.
Em outubro, me tem sido nada além, nada
além de uma ilusão. Tira o telefone do gancho e desde o dia quatro,
por volta das cinco, bota para quem estiver ouvindo do outro lado uma
balada triste dos Smiths falando em dúvida, adeus, quiçá, alhures
e amiúde, as palavras mais feias em qualquer língua.
Urge que se instale novembro, derradeira
esperança de que a cigarra, por mais feio que o verbo soe, zina –
e, inseto como a joaninha sobrevoando os melhores momentos dessa
trama, tudo nos abençoe. Sei, nesse período do ano, de mulheres
tomadas por súbita necessidade de também repetir a natureza, soltar
a casca, saudar o verão e, não fosse tanta família, tanto
compromisso, tanta tradição, cruzar o Horto Florestal pela copa das
árvores.
Nunca vi, e Deus permita que eu não
morra sem tal, essa que pretendo ainda louca açoitada pelo solstício
de 20 de dezembro. Acho que o calor lhe anestesiará os medos, o sol
do Posto 9 lhe desmilinguirá as culpas. Enfeitiçada – e em troca
renovo as promessas finais de pantanas, o sole mio, jogar nas onze,
soltar os bichos, matar a pau, tocar o bonde, leite no pires, beijo
de boca grossa, passar o pente-fino, honrar pai, mãe e o diabo a
quatro –, enfeitiçada enfim, docemente enfeitiçada por fim, ela
se me deixará para sempre raptar com todas as cores do seu sublime
arco-íris.
Joaquim Ferreira dos Santos, in Em Busca do Borogodó Perdido
Nenhum comentário:
Postar um comentário