Quando retirei a faca da mala de roupas,
embrulhada em um pedaço de tecido antigo e encardido, com nódoas
escuras e um nó no meio, tinha pouco mais de sete anos. Minha irmã,
Belonísia, que estava comigo, era mais nova um ano. Pouco antes
daquele evento estávamos no terreiro da casa antiga, brincando com
bonecas feitas de espigas de milho colhidas na semana anterior.
Aproveitávamos as palhas que já amarelavam para vestir feito roupas
nos sabugos. Falávamos que as bonecas eram nossas filhas, filhas de
Bibiana e Belonísia. Ao percebermos nossa avó se afastar da casa
pela lateral do terreiro, nos olhamos em sinal de que o terreno
estava livre, para em seguida dizer que era a hora de descobrir o que
Donana escondia na mala de couro, em meio as roupas surradas com
cheiro de gordura rançosa. Donana notava que crescíamos e,
curiosas, invadíamos seu quarto para perguntar sobre as conversas
que escutávamos e sobre as coisas de que nada sabíamos, como os
objetos no interior de sua mala. A todo instante éramos repreendidas
por nosso pai ou nossa mãe. Minha avó, em particular, só precisava
nos olhar com firmeza para sentirmos a pele arrepiar e arder, como se
tivéssemos nos aproximado de uma fogueira.
Por isso, ao vê-la se afastar em direção
ao quintal, olhei para Belonísia. Decidida a revirar suas coisas,
não hesitei em caminhar, nas pontas dos pés, em direção ao
quarto, para abrir a mala de couro envelhecida, com manchas e uma
grossa camada de terra acumulada sobre ela. A mala, durante toda a
nossa existência até então, estava debaixo da cama. Eu mesma fui
para o quintal espiar pela porta e ver vó Donana se arrastando em
direção à mata, que ficava depois do pomar e da horta, depois do
galinheiro com seus poleiros velhos. Naquele tempo, costumávamos ver
nossa avó falar sozinha, pedir coisas estranhas como que alguém –
que não víamos – se afastasse de Carmelita, a tia que não
havíamos conhecido. Pedia que o mesmo fantasma que habitava suas
lembranças se afastasse das meninas. Era uma profusão de falas
desconexas. Falava sobre pessoas que não víamos – os espíritos –
ou de pessoas sobre as quais quase nunca ouvíamos, parentes e
comadres distantes. Nos habituamos a ouvir Donana falar pela casa,
falar na porta da rua, no caminho para a roça, falar no quintal,
como se conversasse com as galinhas ou com as árvores secas. Eu e
Belonísia nos olhávamos, ríamos sem alarde, e nos aproximávamos
sem que percebesse. Fingíamos brincar com algo por perto só para
escutar e, depois, com as bonecas, com os bichos e as plantas,
repetirmos o que Donana havia dito como coisa séria. Repetíamos o
que minha mãe dizia baixo para o pai na cozinha. “Hoje ela está
falando muito, a cada dia fala mais sozinha.” O pai relutava em
admitir que minha avó estivesse com sinais de demência, dizia que a
vida toda a mãe havia falado consigo mesma, a vida toda havia
repetido rezas e encantos com a mesma distração com que revirava os
pensamentos.
Naquele dia, escutamos a voz de Donana se
afastar no espaço do quintal, em meio ao cacarejo e aos cantos das
aves. Era como se as rezas e sentenças que proferia, e que muitas
vezes não faziam sentido para nós, estivessem sendo carregadas para
longe, carregadas pelo sopro de nossas respirações ansiosas pela
transgressão que estávamos prestes a cometer. Belonísia se enfiou
debaixo da cama e puxou a mala. O couro de caititu que cobria as
imperfeições do chão de terra se encolheu sob seu corpo. Abri a
mala sozinha, sob nossos olhos luminosos. Levantei algumas peças de
roupa antigas, surradas, e de outras que ainda guardavam as cores
vivas que a luz do dia seco irradiava, luz que nunca soube descrever
de forma exata. E no meio das roupas mal dobradas e arrumadas havia
um tecido sujo envolto no objeto que nos chamou a atenção, como se
fosse a joia preciosa que nossa avó guardava com todo seu segredo.
Fui eu quem desatou o nó, atenta à voz de Donana que ainda estava
distante. Vi os olhos de Belonísia cintilarem com o brilho do que
descobríamos como se fosse um presente novo, forjado de um metal
recém-tirado da terra. Levantei a faca, que não era grande nem
pequena diante dos nossos olhos, e minha irmã pediu para pegar. Não
deixei, eu veria primeiro. Cheirei e não tinha o odor rançoso dos
guardados de minha avó, não tinha manchas nem arranhões. Minha
reação naquele pequeno intervalo de tempo era explorar ao máximo o
segredo e não deixar passar a oportunidade de descobrir a serventia
da coisa que resplandecia em minhas mãos. Vi parte de meu rosto
refletido como num espelho, assim como vi o rosto de minha irmã,
mais distante. Belonísia tentou tirar a faca de minha mão e eu
recuei. “Me deixa pegar, Bibiana.” “Espere.” Foi quando
coloquei o metal na boca, tamanha era a vontade de sentir seu gosto,
e, quase ao mesmo tempo, a faca foi retirada de forma violenta. Meus
olhos ficaram perplexos, vidrados nos olhos de Belonísia, que agora
também levava o metal à boca. Junto com o sabor de metal que ficou
em meu paladar se juntou o gosto do sangue quente, que escorria pelo
canto de minha boca semiaberta, e passou a gotejar de meu queixo. O
sangue se pôs a embotar de novo o tecido encardido e de nódoas
escuras que recobria a faca.
Belonísia também retirou a faca da
boca, mas levou a mão até ela como se quisesse segurar algo. Seus
lábios ficaram tingidos de vermelho, não sabia se tinha sido a
emoção de sentir a prata, ou se, assim como eu, tinha se ferido,
porque dela também escorria sangue. Tentei engolir o que podia,
minha irmã também esfregava rápido a mão na boca com os olhos
marejados e apertados, tentando afastar a dor. Ouvi os passos lentos
de minha avó chamando Bibiana, chamando Zezé, Domingas, Belonísia.
“Bibiana, não está vendo as batatas queimando?” Havia um cheiro
de batata queimada, mas tinha também o cheiro do metal, o cheiro do
sangue que ensopava minha roupa e a de Belonísia.
Quando Donana levantou a cortina que
separava o cômodo em que dormia da cozinha, eu já havia retirado a
faca do chão e embrulhado de qualquer jeito no tecido empapado, mas
não havia conseguido empurrar de volta a mala de couro para debaixo
da cama. Vi o olhar assombrado de minha avó, que desabou sua mão
grossa na minha cabeça e na de Belonísia. Ouvi Donana perguntar o
que estávamos fazendo ali, porque sua mala estava fora do lugar e
que sangue era aquele. “Falem”, disse, nos ameaçando arrancar a
língua, que estava, mal ela sabia, em uma das nossas mãos.
Itamar Vieira Júnior, in Torto Arado
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