terça-feira, 12 de janeiro de 2021

O dourador

          Penetrando mais e mais no coração da zona de cruzeiro do Japão, o Pequod logo se viu ocupado com a pescaria. Amiúde, com temperatura amena e agradável, por doze, quinze, dezoito e vinte horas seguidas, os marinheiros atarefaram-se nos botes, ora fazendo força, ora navegando à vela ou remando perseverantes em busca de baleias, ou então, durante intervalos de sessenta a setenta minutos, aguardando calmamente sua emergência; ainda que sem muito êxito em seus esforços.
Em tais momentos, sob um sol brando; flutuando o dia todo sobre ondas vagarosas e suaves; sentado em bote leve como uma canoa de bétula; e tão sociavelmente se misturando às próprias ondas macias que, como os gatos na lareira, ronronam ao bater na amurada; são esses os momentos de quietude sonhadora, quando, observando o fulgor e a beleza tranquila da pele do oceano, qualquer um esquece do coração de tigre que palpita submerso; e não quereria lembrar, em sã consciência, que essa pata de veludo esconde uma garra impiedosa.
São esses os momentos quando, em seu bote, o vagamundo dedica certo sentimento filial, íntimo, como que terrestre, ao mar; que toma por campo florido; e o navio distante, que mostra apenas o topo de seus mastros, parece avançar não através do agitado rolar das ondas, mas através da grama alta de uma pradaria ondulante: tal como os cavalos dos emigrantes do Oeste, quando só mostram as orelhas eretas, enquanto seus corpos escondidos abrem caminho pela assombrosa verdura.
Os longamente extensos vales virgens; o azul discreto das colinas; e, sobre estes, o silêncio e o sussurro insinuantes; você poderia jurar que crianças cansadas de brincar jazem dormindo nessas solidões, em algum alegre mês de maio, quando as flores dos bosques são colhidas. E tudo isso se mistura a seus modos mais místicos; de tal modo que fato e fantasia, a meio caminho reunidos, se interpenetram e formam uma totalidade compacta.
Tais cenas reconfortantes, embora efêmeras, não deixaram de produzir um efeito, ainda que efêmero, sobre Ahab. Mas, se essas secretas chaves douradas pareciam liberar seus próprios tesouros dourados, sua voz sobre elas fez com que perdessem o brilho.
Oh, clareiras verdejantes! Oh, intermináveis, sempiternas primaveras dessas paisagens da alma; em vós, – embora já há muito esturricadas neste deserto mortal da vida terrestre, – em vós, os homens podem rolar como potros no trevo recente da manhã; e, por alguns instantes fugazes, sentir o orvalho fresco da vida imortal por sobre eles. Quisera Deus que essas abençoadas calmarias durassem! No entanto, os fios misturados e enredados da vida são tecidos por textura e trama; calmarias atravessadas por tempestades, uma tempestade para cada calmaria. Não há progresso sem retrocesso nessa vida; não avançamos segundo progressões fixas, com uma pausa no fim: – através do encantamento inconsciente da infância, da fé imprudente da meninice, da dúvida da adolescência (o destino comum), e então o ceticismo, a descrença, descansando afinal no repouso meditativo do Se da madureza. Mas, mal percorridos, recomeçamos os caminhos; e somos crianças, meninos, homens, e eternos Ses. Onde fica o último porto, de onde não mais zarparemos? Em que éter arrebatador navega o mundo, de que os mais cansados jamais se cansarão? Onde se esconde o pai da criança enjeitada? Nossas almas são como aqueles órfãos cujas mães solteiras morrem ao trazê-los à vida: o segredo de nossa paternidade jaz em seus túmulos e ali devemos descobri-lo.”
E nesse mesmo dia também, do costado de seu bote, mergulhando os olhos pelas profundezas do mesmo mar dourado, Starbuck murmurou:
Encanto insondável, como amante nenhum encontrou nos olhos da jovem esposa! – Não me fales das fileiras de dentes dos teus tubarões, nem dos teus hábitos de canibal raptor. Que a fé expulse o fato; que a imaginação expulse a memória; olho para as profundezas e acredito.”
E Stubb, como um peixe, de escamas cintilantes, pôs-se de pé nessa mesma luz dourada:
Eu sou Stubb, e Stubb tem sua história; mas aqui Stubb jura que foi sempre alegre!”

Herman Melville, in Moby Dick

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